terça-feira, 21 de setembro de 2010

É Natural que Seja Assim



A bola que nos passam na infância a título de instrução do que escapa por um triz da efemeridade dos assuntos humanos, a camisa do time multicolorida, que junto àquela nos engata à tradição da macheza tribal para garantir um lugar seguro contra a irracionalidade e as incertezas da vida, ambas atributos herdados do pai que conseguem calar a evidência de que tudo o mais fora do futebol é um fracasso retumbante, a área perigosa espraiada para além do gramado e da televisão no horário nobre dos domingos cruelmente não submetida ao controle de uma paixão afiadamente forjada e severamente cimentada pelo exemplo de grandiosidade que o pai tem o dever de mostrar ao filho antes mesmo que o apito seja tocado. Esse tipo de rito de passagem que se estende por toda a vida com seus momentos emocionalmente solenes apresentando, tal qual os atos de iniciação religiosa, o conhecimento, o manejo dos objetos sagrados, a conquista da ascenção a novos níveis de aprofundamento, a devoção cega, a suntuosidade da vaidosa capacidade de segurar até um limite civilizacional a opção pela violência, tudo não sendo nada mais do que uma brincadeira vitalícia, um adedonha ou um passa anel que mesmo os nossos mais sisudos antepassados sentiam poder atuar sem constrangimentos infantis ou afeminados, uma região garantida por uma zelosa observação de grupo em que os calções largos e as meias acaneladas, a perseguição frenética à bola e os dribles para arremessá-la à rede, eram assepciados de suas correlações ou suspeitas com as frivolidades de criança, sua adoração por exemplares talentosos que elevaram à condição de arte o abraço comunitário para celebrar o gol e sua proficiência de ser um macho mais rápido e esperto que os outros, expurgados da apreciação reservada até então apenas às mulheres. Uma brincadeira que se avolumava para ser mais séria do que outras estipulações domésticas que acabavam por serem relegadas a um segundo e terceiro planos.

O futebol sendo não apenas o superficial clichê acadêmico da substituição que nos deu a sociedade desautorizada da violência às arenas dos cristãos lançados aos leões e as lutas até a morte dos gladiadores, mas um espontaneo aplicativo da natureza humana em fugir do vazio e espiar a culpa que os grilhões da urbanidade submeteram a paternidade sem tempo. Desde muito pequeno, minha total aversão a ser engolfado pelas tentativas suadas de meu pai para me render ao futebol me fez ver com uma martirizante agonia o vazio desses esquemas infrutíferos. Quanto mais ele me levava aos estádios, já de antemão tendo-me aparamentado com as insígnias do gosto nas chuterinhas, nas calças curtas e nas camisas oficiais, sentando-me com as pernas passadas por trás do seu pescoço, mais eu era completamento inepto a me prestar às mitificações exigidas. Quanto mais ele astutamente atulhava as imediações em torno de mim com os rádios sintonizados no grande locutor repleto de frases de efeito geniais, da festa das bandeiras, da companhia de outros meninos eruditamente entendedores, por mais que pelo canto do olho não lhe escapava o estudo sistematizado de minhas reações àquela corrida histórica de um jogador com a bola no pé sob a qual a "pátria", o "sangue" e a "raça" recolhiam-se de apreensão para a subsequente fluência do gozo desobstruído, mais eu não conseguia ouvir outra coisa que a ladainha autista vinda do rádio, a gritaria e o desespero que não me mostravam a razão e o por quê, a conversa sem nexo sobre divindades estranhas que caiam e se erguiam ao mote do quanto a sorte exórdina ao controle desses deuses trazia a taça para este ou outro time, mais me era inacessível entender a causa de se perder o fôlego e se jubilar de alegria única e exclusivamente por um atleta ter posto a bola no fundo da rede, um atleta que, afora essa sorte de exigência tão radicalmente resumida que lhe caía sobre os ombros, era uma tigela rasa de outros atributos.

Nesse tipo de aflição de se ver excluído e, num grau de mudez compadecida, ser alvo da resignação do pai diante a traição de tê-lo privado das cumplicidades invejosamente observadas nas famílias alheias, a única forma de escapar é pela maturidade. Assim como toda a negação natural que o filho faz do pai, para não soçobrar ao exemplo acabrestador do pai, não apagar sua própria personalidade para repetir em reverência a personalidade do pai, a independência e a saída da casa paterna lhe dá a autoridade de legitimar todo o repúdio que cultivara também contra a grande estupidez do titerismo do futebol. Só depois de formado e ganhando minha própria subsistência, meu pai e eu pudemos falar levemente sobre o assunto. O riso surpreendente sobre a apequenezação do tabu visto pelo outro lado da luneta temporal nos permitiu a intimidade de não mais nos reconhecermos como rivais. Numa inversão irônica, as flâmulas e o choro de dor do futebol apareceram para ele com toda sua pomposidade ridícula, sua absoluta perda de tempo e sentido, e para mim, a veneração dos corredores, as noites em claro preparando a posição dos ornamentos da sala para a recepção da histórica decisão, assomaram-se como um estofo de sentido para a vida que eu, estupidamente, não soube preencher o consolo sobre o qual poderia ter deitado minha cabeça. Ele ainda era relativamente jovem, mas não podia cultivar mais que a esperança de enlaçar alguns nós soltos nos meses que lhe restavam, e eu me encaminhava para a dita meia idade. Ele se desprovia com corajosa falta de apego das velhas tralhas, dos antigos espaços de significação. Eu sentia que a selvageria me contaminava em todo meu insípido heroísmo de me manter ativamente fora do estrondo, impaciente  de um modo muito cordato em não me misturar, e, diante o fato de que seria eu também pai, queria ter aprendido a ter a hipocrisia salvaguadora de herdar o futebol para passá-lo adiante.

3 comentários:

  1. Eu passei a mesma coisa, só que com carnaval. Meu pai fez de tudo pra eu gostar de pular carnaval na Bahia, como ele mesmo faz: durante uma semana (só na idade adulta foi descobrir o quanto realmente dura, porque em Salvador as coisas começam a parar no início de fevereiro), seguindo a maratona de estar de pé nas ruas durante 10, 12 horas atrás do trio elétrico. Acho que você já me conhece o suficiente pra entender o absurdo da situação.

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  2. Uma bailarina (em todos os amplos sentidos da dança_ que não me desminta aquele pobre rapaz repudiado do seu post)com o senso crítico e a percepção bem humorada, igual a você...no carnaval da Bahia? Realmente sei do que se trata.

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  3. baita texto. acho interessante como enche tudo com essas adjetivações. parece querer dar conta de tudo, no q não se importaria se houvesse excesso. acho melhor.

    tudo o q escreveu me parece evidente tanto qto minha paixão por futebol. fico evidenciado aqui.

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