pintura rupestre de 14.000 anos, de homens dançando |
Segue um excerto de um dos meus dez melhores livros de todos os tempos, que planejo resenhar para a próxima semana. Sempre que leio esse trecho, me vem lágrimas nos olhos. Há uma infinidade de partes sublinhadas que tem maior força dramática, mas esse afago que Victor acha para despertar seu amigo Arthur, que está convalescente numa cama de hospital se recuperando de sérios ferimentos provocados por um ataque de neo-nazistas, e renová-lo à vida, é por demais tocante.
Arthur sentiu como teve de lutar contra as lágrimas, mas o que veio em seguida foi ainda mais difícil de aguentar. Victor, que se pusera um pouco à parte dos demais, foi até um canto do quarto onde Arthur não o podia ver direito, ajeitou o seu lenço de seda pontilhado, endireitou a jaqueta, curvou-se, pareceu contar e aí começou a sapatear, enquanto olhava fixamente para Arthur. O clique do metal no assoalho de pedra, os pés invisíveis, os contidos movimentos de braço, o silêncio em que tudo isso aconteceu, não durou talvez nem sequer um minuto até que a enfermeira entrasse chispando pelo quarto e pusesse fim à cena, mas Arthur sabia que nunca mais iria se esquecer, fora uma dança cerimonial, um exorcismo, o clique-te-claque-te significara algo como uma exortação, que ele se levantasse, desse passos, seus pés deviam levá-lo para longe dali, o que passou, passou, essa mensagem tácita fora mais clara do que teriam podido ser quaisquer outras palavras, alguém, Victor, redespertara-o dançando para a vida, e ele compreendera, ainda demoraria muito, mas já se encontrava a caminho. Aprenderia de novo a andar, sua cabeça seria enfaixada com curativos sempre novos. Outra vez a enfermeira teve de lhe enxugar a lágrimas. Clique-te-claque-te, os sapatos de verniz de Victor. Não sabia que Victor era capaz daquilo. (Dia de Finados, Cees Nooteboom, tradução de José Marcos Macedo, Companhia das Letras)
DANÇARINOS
ResponderExcluirby Ramiro Conceição
Vem comigo,
mas contigo.
Dancemos…
leves.
Vou contigo.
Vai comigo.
Somos…
terrestres.
Vem contigo,
mas comigo.
Viemos…
do celeste.
Vai contigo…
Vou comigo…
O tempo:
é breve!
Então, Charlles,
querido amigo de reveses,
só nos resta cantar o fado
ao Magistral, que
não se conhece:
QUASE MALDITO
by Ramiro Conceição
Escrever, rabiscando.
Rabiscar, escrevendo.
Pois na realidade
a literatura é arte:
um desconhecido gemido,
um quase maldito vagido
dado, dito, por um animal!
Essa mistura de afazeres cotidianos, lembranças pessoais, trechos de livros e a nuvem indistinta que se forma com tudo isso, produz quase sempre boas crônicas, e esta crônica-citação é mais uma delas. Sincera, sensível, que nos faz percorrer nosso dicionário interna na busca do adjetivo perfeito, até que encontramos a barreira da não adjetivação como expressão de técnica literária superior. Penso nisso: por que a predileção da crítica por livros despidos de adjetivações? Esse gênero de escrita que o autor Autran Dourado chamou de "descarnada"? Será que os críticos literáarios gostam apenas de ossos? Antevejo uma solução: que tal entregá-los, todos, ao Miles?
ResponderExcluirObrigado Rachel. É esse calor que a literatura e o abraço familiar oferecem que importa.
ResponderExcluirRamiro, novamente, redundantemente, te ler é sempre muito bom.
Concordo com a Rachel e deixo uma sugestão culinária. Picá-los todos em redundantes picadinhos. A seguir temperá-los com limão à peruana. Afinal, se deve facilitar a digestão do Miles com tais indigestos.
ResponderExcluirO engraçado da coisa é que eu gosto de dançar mas não suporte espetáculos de dança, acho-os sumamente ridículos. Talvez por isso a delicadeza do encontro no hospital, onde importa mais o barulho dos passos que os passos mesmo. Bá, bacaninha, meio sentimentalóide, mas vá lá, melhor do que o azedume dos cínicos (essa palavra é sempre usada de forma errônea, tanto que o faço aqui, mais uma vez, e foda-se).
ResponderExcluirMarcos, talvez por ser uma cena que distõe do tom do romance é que funcione. A começar pelo título.
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