quarta-feira, 4 de maio de 2011

A Solidão e a Dança


pintura rupestre de 14.000 anos, de homens dançando


Acordei hoje com a cama vazia, a luz do corredor acesa. Sempre deixo a luz acesa quando estou só na casa, para caso acorde à noite no meio de algum pesadelo esporádico de que estou num labirinto de banheiros, possa me situar na meia sombra como o cara regatado da antiga solidão por uma alma piedosa. Um amigo meu me visitou um dia, sentou-se ao sofá e, depois de cinco minutos de silêncio, suspirou aliviado. Estava a tanto tempo só em sua casa, que temeu desmaiar. Precisava apenas disso, do contato com o mesmo ar respirável de um amigo. Isso já aconteceu comigo diversas vezes. Fui ao serviço, voltei às dez horas e telefonei para a Dani. Tentei trabalhar nos projetos pessoais, depois tentei ler, fui ver a quantas andam aquela suruba canina lá nos fundos da casa (os vizinhos gostam tanto do Miles que não se importam com os ruídos; me dizem que se sentem seguros contra assaltantes só de saberem do porte majestoso de onça que o Miles tem, e isso me faz lembrar uma ode ao gato, escrito pelo Neruda, insignia de um desaparecido veludo). Assim que me vê, como se me devesse gratidão por ter-lhe trago a namorada, o Miles levanta-se de seu canto, cheio de preguiça, e começa a bulinar a moça, essa com uma cara de enfado de quarta-feira de manhã. Tento escrever os textos sobre A Montanha Mágica e Dia de Finados, vejo a quantas andam o download dos concertos para violino de Mozart que cato do PQPBach, que de 14 minutos de previsão sobem inesperadamente para 1 hora e 13 minutos, como a pedir que eu não adie a formatação do computador. Daí decido! Vou parar tudo, arrumar as malas e, de manhazinha nessa quinta-feira, parto para Goiânia, para a casa de minha mãe, onde estão todos. E só volto no domingo. Aproveito e compro alguns dos livros da lista, A Viúva Grávida e A Resistência.

Segue um excerto de um dos meus dez melhores livros de todos os tempos, que planejo resenhar para a próxima semana. Sempre que leio esse trecho, me vem lágrimas nos olhos. Há uma infinidade de partes sublinhadas que tem maior força dramática, mas esse afago que Victor acha para despertar seu amigo Arthur, que está convalescente numa cama de hospital se recuperando de sérios ferimentos provocados por um ataque de neo-nazistas, e renová-lo à vida, é por demais tocante.

Arthur sentiu como teve de lutar contra as lágrimas, mas o que veio em seguida foi ainda mais difícil de aguentar. Victor, que se pusera um pouco à parte dos demais, foi até um canto do quarto onde Arthur não o podia ver direito, ajeitou o seu lenço de seda pontilhado, endireitou a jaqueta, curvou-se, pareceu contar e aí começou a sapatear, enquanto olhava fixamente para Arthur. O clique do metal no assoalho de pedra, os pés invisíveis, os contidos movimentos de braço, o silêncio em que tudo isso aconteceu, não durou talvez nem sequer um minuto até que a enfermeira entrasse chispando pelo quarto e pusesse fim à cena, mas Arthur sabia que nunca mais iria se esquecer, fora uma dança cerimonial, um exorcismo, o clique-te-claque-te significara algo como uma exortação, que ele se levantasse, desse passos, seus pés deviam levá-lo para longe dali, o que passou, passou, essa mensagem tácita fora mais clara do que teriam podido ser quaisquer outras palavras, alguém, Victor, redespertara-o dançando para a vida, e ele compreendera, ainda demoraria muito, mas já se encontrava a caminho. Aprenderia de novo a andar, sua cabeça seria enfaixada com curativos sempre novos. Outra vez a enfermeira teve de lhe enxugar a lágrimas. Clique-te-claque-te, os sapatos de verniz de Victor. Não sabia que Victor era capaz daquilo. (Dia de Finados, Cees Nooteboom, tradução de José Marcos Macedo, Companhia das Letras)



6 comentários:

  1. DANÇARINOS
    by Ramiro Conceição


    Vem comigo,
    mas contigo.
    Dancemos…
    leves.

    Vou contigo.
    Vai comigo.
    Somos…
    terrestres.

    Vem contigo,
    mas comigo.
    Viemos…
    do celeste.

    Vai contigo…
    Vou comigo…
    O tempo:
    é breve!



    Então, Charlles,
    querido amigo de reveses,
    só nos resta cantar o fado
    ao Magistral, que
    não se conhece:


    QUASE MALDITO
    by Ramiro Conceição


    Escrever, rabiscando.
    Rabiscar, escrevendo.
    Pois na realidade
    a literatura é arte:
    um desconhecido gemido,
    um quase maldito vagido
    dado, dito, por um animal!

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  2. Essa mistura de afazeres cotidianos, lembranças pessoais, trechos de livros e a nuvem indistinta que se forma com tudo isso, produz quase sempre boas crônicas, e esta crônica-citação é mais uma delas. Sincera, sensível, que nos faz percorrer nosso dicionário interna na busca do adjetivo perfeito, até que encontramos a barreira da não adjetivação como expressão de técnica literária superior. Penso nisso: por que a predileção da crítica por livros despidos de adjetivações? Esse gênero de escrita que o autor Autran Dourado chamou de "descarnada"? Será que os críticos literáarios gostam apenas de ossos? Antevejo uma solução: que tal entregá-los, todos, ao Miles?

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  3. Obrigado Rachel. É esse calor que a literatura e o abraço familiar oferecem que importa.

    Ramiro, novamente, redundantemente, te ler é sempre muito bom.

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  4. Concordo com a Rachel e deixo uma sugestão culinária. Picá-los todos em redundantes picadinhos. A seguir temperá-los com limão à peruana. Afinal, se deve facilitar a digestão do Miles com tais indigestos.

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  5. O engraçado da coisa é que eu gosto de dançar mas não suporte espetáculos de dança, acho-os sumamente ridículos. Talvez por isso a delicadeza do encontro no hospital, onde importa mais o barulho dos passos que os passos mesmo. Bá, bacaninha, meio sentimentalóide, mas vá lá, melhor do que o azedume dos cínicos (essa palavra é sempre usada de forma errônea, tanto que o faço aqui, mais uma vez, e foda-se).

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  6. Marcos, talvez por ser uma cena que distõe do tom do romance é que funcione. A começar pelo título.

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