O post de hoje do Milton Ribeiro me fez recordar de um longuínquo livro que li há cerca de 8 anos. Milton fala sobre o romance Pontos de Vista de um Palhaço, do escritor alemão Heinrich Böll. Não li esse romance de Böll e já o havia procurado sem sucesso em uma livraria. Mas a temática do palhaço e do nazismo me fez ir a uma das estantes de livro daqui de casa e desencalhar Adam Filho de Cão, uma das obras mais perturbadoras e estranhas, escrita por uma autor quase desconhecido chamado Yoram Kaniuk (quase um anagrama de Ohran Pamuk). Lembro-me que cheguei a ela numa tarde de peregrinação à livraria do shopping, que por acaso é a mesma Saraiva (que Deus te dê longa vida!), e estava sedento por encontrar algo novo, alguma leitura inolvidável que escapasse das cansativas placas de identificação dos autores conhecidos. Algo que não fosse badalado e que eu nunca tivesse visto, mas que me chamasse a atenção de forma imediata, ou pela capa, ou pela editoração, ou pelo comentário daquele arroz de festa do elogio a autores desconhecidos que foi Susan Sontag. Claro que estava preparado para a decepção e cogitava sair dali com o último livro do V.S.Naipaul debaixo do braço, o que me levaria a passar a insônia das noites na metrópole transitando por cidades de burocracia capengas da América Central ou sentado em uma avião ao lado de algum negro promissor que ganhara bastante grana com a especulação imobiliária, tão típicos dos livros do Naipaul.
Mas achei o que estava procurando, severamente dentro das expectativas, até com a seguinte frase na contra-capa: "Dos escritores que descobri em tradução [...] os três que mais admiro são Gabriel Garcia Márquez, Peter Handke e Yoram Kaniuk". Adivinha de quem? Dela: Susan Sontag. (Na época ainda não tinha como saber que ela diria quase a mesma coisa de Roberto Bolaño.) Um livro muito bonito da Editora Globo, com o nome do autor e a repetição minimalista do título em vinil, e um comunicado interno dizendo que se tratava da segunda_ e aprimorada_ tradução da obra por uma editora brasileira. (Havia um tom de que a primeira era coisa por demais execrável para se levar a sério.) O resumo da contra-capa é um dos que mais faz cair na rede os amigos que me vem pegar livros emprestados, pois apresenta uma história irresistível: o palhaço judeu Adam Stein que consegue sobreviver em um campo de concentração entretendo os prisioneiros (inclusive a mulher e a filha), "antes que estes fossem encaminhados às câmaras de gás." Quem consegue se manter inócuo à comichão da leitura diante uma coisa destas?
Os amigos catalogados para o empréstimo (aqueles que sei que gostam de ler e me devolverão o livro no rigoroso prazo marcado) direto sucumbem sob o impacto desse resumo e leem Adam Filho de Cão. Desses amigos, uns 3 ou 4 gostaram muito, 1 ou 2, os leitores convencionais que estão apenas à busca de um bom enredo, disseram que se tratava de um livro maluco demais para eles. O problema é que, assim que comecei a ler o livro, já percebi que Kaniuk, ai!, é um dos grandes. Isso quer dizer não só que encontrei um produto raro onde a embalagem e o comercial correspondem ao conteúdo, como também que a história de Adam Stein não limita a ser um conto retilíneo, o que submerge na decepção os que queriam ter de imediato as lágrimas e o espetáculo à la Roberto Benigni.
E vejo que, após tantos anos, não me é difícil recordar desse livro. Não que o houvesse esquecido. É estranho mesmo que não tenha retornado a ele durante esse tempo, devido à minha devoção a autores judeus. Minha supeita é que, após procurar e não achar mais outros títulos de Kaniuk, o releguei a um milagre isolado, e lá ele permaneceu debaixo de uma pilha de outros livros, até o texto do Milton dar o ensejo de resgatá-lo. A prosa de Kaniuk é elétrica, de frases curtas, muito rápida às vezes. Revela o leitor global por detrás da formação do escritor cujo conhecimento da literatura o permite decantar o estilo até um coloquialismo em que aparece fontes do cinema e da música moderna, sobretudo o jazz. (Há um capítulo em que Adam transita pelo hospício no deserto em que está internado, ouvindo pelos autofalantes do corredor uma obra de Rimsky-Korsakov, e eu juro que não pode ser apenas efeito da lembrança truncada que os pensamentos do personagem seguem a cadência de O Príncipe Kalender. Um dos principais amigos de Adam, interno desse hospício, diz ser ninguém menos que Miles Davis.)
Nesse romance, os eventos no campo de concentração surgem aos poucos, intercalados à rotina de Adam no hospício. Os que não gostaram do livro devem ter sido barrados nas cenas quase psicodélicas dos loucos, no programa de conversão paulatina de Adam no messias que julga retornar à Terra para salvar as vítimas da Shoá. Para mim, que agora sei fadado a uma nova leitura, Adam Filho de Cão assume tudo o que a boa tradição dos grandes romances requer em envolvimento e originalidade. Uma sinfonia de ira, uma crítica joyceana que não se limita ao lugar comum de uma narrativa facilmente assimilável, uma condenação de uma humanidade que, nos dizeres de Moacir Amâncio no texto das orelhas do volume, "produz Dante, Wagner, Goethe, Heidegger e a Shoá."
É, Charlles,
ResponderExcluirvocê teve sorte… Eu também…
SÉTIMO
by Ramiro Conceição
Não cantarei às sete
fontes, às sete cores,
nem sequer aos sete anéis.
Nada direi dos sete
amores ou dos sete
selos do louco João
ou dos sete pecados
cometidos, num só dia,
por Sete, filho de Adão.
Do sábado? Nem falar,
após sete cervejas!
Não vou narrar os sete
tiros na encruzilhada:
seis mortos e 1 em coma.
A coisa aqui tá branca,
não tá pra brincadeira,
tá pra bicho de sete
cabeças muito doido.
Não contarei dos sete
tombos do demônio, nas
sete esferas celestes,
até o abismo, o sétimo,
esse inferno terrestre
onde se quebra os dentes
e não se escapa nem com
botas de sete léguas,
fé ou versos de sete pés.
DESFRUTA
by Ramiro Conceição
É, eu tive sorte…
Por não perder o norte
mesmo sem embarcação.
Sim, eu tive sorte…
Por inventar jogos, artifícios,
ofícios – ao pó sedimentado
no corredor, entre a sala-de-estar
e o quarto do insone computador.
É, eu tive sorte…,
pois, a tempo, aprendi
que a vida é uma fruta
que a morte… desfruta.
Uma variante mais comercial (certamente!) é o livro O faz-tudo, de Bernard Malamud; combine este com Jakob, O Mentiroso, de Jurek Becker, e chegaremos a um denominador comum, talvez, com este filho de cão que não li. Uma grande bosta é que a Shoá gerou uma enorme indústria audiovisual, e já estamos, todos, com certeza, saturados de seus subprodutos, tanto que deixamos passar muitos, até que ficamos quase tão babacas quanto a Lars von Trier, que disse, um dia ou dois atrás, sei lá, que compreendia Hitler, e estava deixando de ser judeu para ser um nazista (depois ele se desculpou, disse que só buscava uma frase de efeito para provocar, etc, o que é bem próprio do cinema de merda que ele faz), em suma, o churrasco de judeu passa a nos lembrar um carneirinho assado, que é bom - o carneirinho, pobre coitado.
ResponderExcluirRidículo o que disse o Lars Von Trier. Liberdade de expressão é uma coisa, mas a gravidade, ainda mais para alguém que se pressupõe intelectual como o dinamarquês, de uma borracha na história é indesculpável. Ainda mais que a medianidade de Hitler em todos os sentidos não se presta à adoração. Eu mesmo não levo cinema a sério. Assisto o que me dá prazer, sorte sendo que dentro dessa categoria estão Feline e Bergman. O Anticristo gerou todo aquele frisson lá no blog do Milton, mas...depois de dois anos, que filminho cacete!
ResponderExcluirPois é, lembro-me do Anticristo; desci o pau no filme e só faltaram (quer dizer, acho que não faltaram) me chamar de ignorante. Uma bosta dum filme misógino de merda feito por um puto dum corno. Tipinho pernóstico, tá na lista dos piores cineastas do mundo em todos os tempos.
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