A partir dessa tragédia da perda, Arthur Daane se sente como liberado a não mais participar da vida corrente, a ser um out-sider, um fantasma encarnado, alguém a quem não se deve cobrar mais nada nessa altura da vida e da história da humanidade em que os projetos levantados, a aposta na singeleza das alegrias domésticas, as grandes ideias e os grandes primores, mostraram-se inconsistentes demais para se manterem em pé diante as leis de um acaso incontrolável e de uma biologia meramente constituída pela violência e a animalidade. A única ação relativamente positiva que move os dias de Arthur é a dele se postar com a câmera em diversos pontos da Alemanha filmando um mosaico de imagens sem significados diretos, marcas de passos na neve, o vapor da respiração numa estação de metro após as pessoas embarcarem. Filmes que ele não sabe se um dia tornarão por sua vontade um produto acabado, mas que ele vai fazendo numa compulsão desiludida e angustiada não só na atmosfera ebuliente de emanações históricas da Alemanha, como pelos outros países que visita em seu trabalho de documentarista. Nesse sentido, o romance é tanto um romance ensaio como um muito bem engendrado diálogo da visão pessoal de um humanista desencantado com as teorias da história, mantendo uma indagação corajosa que lança através da liberdade de expressão desatrelada de especifismos da arte, a necessidade de se saber para que serve a história, qual seu propósito último; a história não nos imporia a obrigação de um aprendizado genuíno além do academicismo e dos jogos políticos? Não à toa que Nooteboom compõe aqui personagens hiper-cerebrais mas com uma profunda reserva espiritual, personagens extenuados pelo conhecimento, para os quais já estão estrapolados o valor das palavras e da erudição e por debaixo da vaidade do saber estão os escombros e os tantos mortos que a ciclicidade da incoerência da passagem sem domínio do homem pelo mundo repete em infinita sucessão. Para Daane e seus amigos o rótulo heráldico da história não resiste mais ao fato de que ele serve apenas a uma vaidade efêmera de estar colado sobre o catálogo da brutalidade, afim de exercer controle organizacional sobre uma hermenêutica do puro terror e do pragmatismo da fúria.
Mediante isso, pode-se interpretar as longas cenas filmadas por Daane como uma investigação espontânea sobre a passagereidade, uma imersão na interferência do esquecimento sobre os toques e as impressões de pegadas desvanecentes na neve, em busca do humano naquilo que nos grandes espaços significativos mostrou-se não existir, e por isso o humano talvez esteja no inapreensível, na comunicação destinada a ninguém feita na neve e no piso das gáreas das estações de metrô pelo anônimo padrão fadado a figurar nos livros de história entre as cifras da quantidade daqueles que foram exterminados, destituídos ou exilados. No frio de um pátio de construção à noite, quando as máquinas estão paradas e o cenário deserto, Daane atrás de sua câmera ligada dirigida ao nada, simula ser o receptor desses gestos invisíveis. Afinal, a última lembrança que tem da esposa e do filho antes de entrarem no avião é a dos gestos de adeus, o sorriso, o símbolo do beijo que, dentro da normalidade plausivelmente requerida, promete o retorno. Aqueles sinais de ausência que tanto seu olhar sofrido acostumou a perceber no oferecimento do mundo quanto na leitura da história. E é justo nessa sua exposição a essa fonte de conhecimento da verdade_ de que o que distinguiria o homem como potência específica longe da bestialidade e da des-razão não está no rigorismo vazio da impessoalidade da história_ que Doane descobre o quanto é leviano para um fantasma encarnado sair de seu espaço de refúgio. Uma gangue de neonazistas o ataca, o espancando quase até a morte.
Dia de Finados é também um romance de amor entre Arthur Daane e uma estudante de história chamada Elik Orange. Os dois se conhecem na seção de periódicos de uma biblioteca alemã, e o relacionamento dos dois é deficitário de todas as normas da convivência entre um homem e uma mulher. Um capítulo do livro, narrado por observadores metafísicos, revela através de uma série de intuições cronológicas o passado traumático de Elik, dando as linhas de explicação de seu intuito de se refugiar no estudo de uma obscura rainha ibérica. É um romance surpreendentemente terno em detrimento da pesada carga de reflexão contestatória sobre a inocuidade de um estudo a-moral da história. A linguagem de Nooteboom é arrebatadoramente poética sem ser pedante; os diálogos entre os amigos de Daane _ o escultor holandês Victor Leven, o filósofo alemão Arno Tieck e a física russa Zenobia_ são intensamente concentrados mas desapegados da frieza asséptica do distanciamento da filosofia; e Elik, a estudante molestada pelos seus esquecidos fundamentos do resguardo da infância (fazendo lembrar a bela cena analisada por Hannah Arendt, em Homens em Tempos Sombrios, de quando Isak Dinesen percebe que os braços do pai que a levava carregada pelo jardim já não poderiam protegê-la do mundo lá de fora) é mais uma usina de forças represadas do que diz a impressão despertada por seu indevassável isolamento. A força de Dia de Finados está na cordialidade de uma novo posicionamento do pensamento frente a desproteção do humano. Para consolar Arthur Daane na cama de convalescência do hospital, seu amigo Victor demonstra a vitória temporária que se pode ter o poder da amizade por sobre a prisão das palavras: sem proferir uma só palavra, avesso ao ridículo ou aos padrões normatizados de comportamento, Victor demonstra a superação que resta à fragilidade humana de seus erros e pesadelos, através da dança. Na solidão da pequenez daqueles que se refugiaram da história, intimamente à espera de novas alternativas, Victor não refaz a dança de Davi a deus, mas a dança de um homem para outro, com todos seus caracteres de desvalidez. Todo o livro desmente numa visão particular a poesia de Yeats de que por detrás de cada olho há oceanos de gelo incorporados ao coração.
Entendo. Mas são tantas coisas. Tantas dimensões. Não tenho, por agora, o que comentar. Minha mente fica voltando aos terrores das notícias dos jornais da manhã e penso. Só.
ResponderExcluirsensacional, charlles. está claro q tu ama esse livro e, se isso é possível, por quê. parece q o leu mtas vezes, mesmo q tenha sido um par delas.
ResponderExcluir[creio ter entendido, mas pareceu confuso isso aqui: " E é justo nessa sua exposição a essa fonte de conhecimento da verdade_ de que o que distinguiria o homem como potência específica longe da bestialidade e da des-razão não está no rigorismo vazio da impessoalidade da história_ "]
volto a parabenizar-te por conseguir expressar assim um sentimento, em palavras, pois pra mim foi a questão das ausências q mais ficou aparente.
"a te parabenizar"
ResponderExcluirNikelen, cada vez mais difícil assistir aos assuntos do cotidiano. Aqui não o fazemos mais.
ResponderExcluirRômulo, essas frases rebuscadas acontecem quando escrevo depressa e não tenho tempo de revisar o texto. Por mais que ligue o sensor da autocrítica, essas coisas me escapam.
Obrigado e abraço aos dois.
Bem, se você olhar desapaixonadamente para a própria vida e relações, e mais desapaixonadamente ainda para todas as vidas e todas as relações, e todos os seus subprodutos que podemos chamar sinteticamente de "cultura", veremos que essa porra toda é uma grande perda de tempo, mais do que perda de significado (que, de antemão, não há) ou dos parentes e amores, mais ou menos queridos.
ResponderExcluirSó tem uma coisa: se você conseguir olhar desapaixonadamente para qualquer coisa, você não é um ser humano, mas uma pedra de gelo. E como pedra de gelo não olha, compadre, estás condenado, como disse o Sartre, à Liberdade, logo à vida, agarrando-se a qualquer sentido ínfimo de qualquer coisa, que lhe oferece esperanças, até eternidade, qualquer coisa que te faça suportar as boas, as más e as péssimas fodas cotidianas, só porque, no final da história, tudo o que você quer mesmo é gozar com qualquer coisa que a experiência mesma da vida te dá, em termos dos sete sentidos mesmo, enquanto tua inteligência, pode ter certeza, vai tentar, cotidianamente, te sabotar até levá-lo ao suicídio, que, de todas as causas, é a mais inútil, mesmo porque você se confundiu que nem Descartes, que sua causa é só uma consequência, seu idiota, e não fica me olhando com essa cara de que já sabe dessa porra toda e não tá nem aí com chamados à razão, à desrazão ou qualquer gênero de advertência. Pensando bem, todos nós, que nos fodemos uns aos outros, podemos muito bem nos foder mais uma vez.