William Golding |
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Não é uma simples coincidência que dois grandes romances sobre o bullying tenham vindo daquele país de tradicionais escolas com severa hierarquia interna e alta seletividade de alunos como a Inglaterra. William Golding escreveu duas das maiores análises sobre a violência inerente ao comportamento de grupo em O Senhor das Moscas e Visível Escuridão. Explorou o tema do caos pré-social, do estado natural hobbesiano, em outros títulos, como Os Herdeiros, mas foi nesses outros que estabeleceu seu tema central: a concepção anti-rousseana de que o mal é próprio da natureza humana, que a barbárie é uma estação elementar de partida de onde o homem dá seus primeiros passos. O Senhor das Moscas, publicado em 1954, contraria o gosto britânico pelas histórias juvenis de formação, mexendo no solo sagrado da visão infantil colocando um grupo de crianças náufragas em uma ilha deserta, e usando-o para compor um ensaio narrativo chocante, tortuoso, em que as teorias da etologia desenvolvidas por Konrad Lorenz são levadas à última consequência na esfera humana. Como ficou comprovado no estudo de várias comunidades de símios, o mais forte exerce uma supremacia quase tirânica sobre os demais do grupo. O macaco alfa possui todas as fêmeas (mesmo que seja comum os deslizes de distração debaixo das quais as fêmeas cedem para os mais fracos), e reforça a aceitação do seu poder supremo simulando a cópula oprimindo os outros machos do grupo debaixo de seu corpo. O que acontece nessa ilha deserta onde não existe nenhum adulto, é uma emulação minimalista da história, onde as crianças se defrontam com a exigência de buscarem espontaneamente os arquétipos sociais que permitem a coerência primitiva que os unem contra o caos da seleção natural, do isolamento geográfico, e de, abruptamente, perderem o vínculo com a civilização e se verem na base da cadeia alimentar. Aos poucos, a sinergia do estado natural, os cheiros, sons, gosto e adrenalina viciantes da selvageria (a caça ao javali, o banho nu na praia, a liberdade paradisíaca de dispensarem as etiquetas metropolitanas, as insinuações latentes de entendimento sexual), vão limpando da memória o fragmento de que pertenciam a uma enorme comunidade firmada pelo apuro evolutivo sobre regras e diretrizes rígidas, e essa descoberta de que tudo pode ter um novo começo dispensa que continuem esperando por um resgate. A evolução, em sua onipotência mais generosa de não descartar um grupo de crianças deserdadas pela sorte em uma ilha há milhas da costa povoada mais próxima, lhes dá a ferramenta necessária do esquecimento para poder construir uma ordem sui generis em que se adapte ao meio. E essa ordem se firma progressivamente como a mais violenta, desenfreada e tirânica possível, desintegrando junto a visão de que todos ali são crianças. Como numa sociedade de macacos, agravada pelas infinitas sutilezas da imaginação violenta de um cérebro mais biologicamente refinado, o grotesco dos regimes autoritários que estavam no auge na época do romance (com clara convergência na intenção representativa de Golding), a aptidão assassina, o vazio espiritual diante a falência dos sistemas de pertença cultural, tudo se evidencia numa sociedade tribal onde o infantilismo na mais baixa acepção etmológica reduz o grupo a seres autômatos maléficos e auto-destrutivos.
Já em Visível Escuridão, essa solidão intranscendente se incorpora numa só criança, o menino de rosto seriamente deformado por uma das bombas que caíram sobre Londres. Desprezado por todos, órfão, sendo-lhe negado as mínimas interações de grupo, a maudade maior é a inércia de permitirem-lhe o esboço de uma vida juvenil normal sem que ela seja lhe dada efetivamente. Os colégios, a residência, a religião, tudo que lhe é falsamente oferecido, o mesmo caráter adaptativo roubado da biologia que permitira ao grupo de crianças náufragas ter uma sobre-vida na ilha, faz com que ele assimile essas molduras e configure por si mesmo, com sua imaginação infantil infinitamente solitária, seu próprio colégio, sua própria religião, e sua própria residência_ em suma, sua própria ilha. Romance mais impactante ainda que seu predecessor, o menino cria para si uma religião pagã original, um conceito de deidade desprovida de paixão e coração afetivo que sempre e cada vez mais exige dele penitência, pecador inveterado cujo pecado maior é seu rosto corrompido.
Num ensaio de Salman Rushdie sobre Desonra, o romancista anglo-indiano diz que J.M. Coetzee compôs um belo romance, falho em suas intenções, não conseguindo dar a proposição segura sobre o grande problema da miscigenação racial na África do Sul. (Aliás, Rushdie não só teve essa leitura, mas alega que seu autor desviou-se de uma solução útil pela interposição perigosa da desistência de David Lurie à realidade.) Assumindo que um romance possa ser um utensílio equivalente a um tratado social, esses dois romances de Golding falam mais das teorias Hobbesianas do que viram os críticos que ressaltaram o desencanto do autor pela perda espiritual do século XX. Os dois protótipos experimentais de Golding conseguem fins diferentes do previsível. O menino mutilado não opta pela ação violenta. É absorvido de maneira efetiva por seu universo pessoal, o que não deixa de ser considerado como sucesso. As crianças náufragas, quando estavam por atravessar a linha mais centrífuga da bestialidade, são resgatadas pelos aviões de busca.
Eu diria que não devemos (embora possamos) utilizar da literatura como "referência" para examinar problemas humanos que são mais bem estudados no campo médico, embora com as insuficiências e carências de praxe.
ResponderExcluirA literatura é um campo específico de "saber" que se elabora a partir de "não saberes", de percepções forjadas em múltiplas disciplinas, sensibilidades e educações, mas não tem como dizer "a verdade" ou examinar "cientificamente" alguém como o rapaz de Realengo, cuja reação se deve a uma mixórdia de fatores não coordenados, inclsuive (mas não só) por ele mesmo.
Podemos entender, assim, o "perdão" extensivo do personagem literário Jesus Cristo à humanidade como algo bem simples: independentemente dos horrores que possamos perpetrar, a morte rompe com qualquer sentido de hierarquia e, como, no longo prazo, estaremos todos mortos, qualquer ódio é inútil, todo ressentimento se perde nos séculos e toda revolta encontra o mesmo pouso ao lado da conformação; o sangue nos une de várias maneiras, exprime nossa culpa e nossa pungente materialidade. Feito o mal, cabe-nos o registro e o combate; nenhuma vingança consola, nenhuma justiça secular satisfaz, pois queremos o que não temos e paradoxalmente nos dá sentido, que é a eternidade e, por pensarmos a partir dessa crença na eternidade, achamos que podemos deixar mais do que pálidos exemplos aos nossos contemporâneos, mas isso não é verdade, o que podemos é tão pouco que é quase nada.
Penso, então, que, o rapaz de Realengo, não revelado e impossível de compreender, nos faz compreender mais os que vivem após dele e não conseguem perceber que seus atos "significativos" eram apenas isso, significâncias de alguém que, talvez por ter secreta consciência de sua insignificância, reforçada ainda pelos maus tratos recebidos, lutou contra ela remetendo-se a exemplar único de uma revolta que procurou o desdobramento da eternidade, mas todos seus pressupostos eram tão ruins que tudo que ficará dele será recomposto em dados estatísticos para uso das próximas gerações, até que todos sejam esquecidos, ele e as próximas gerações.
Isso tudo, é claro, é triste, mas não infinitamente triste. A medida que temos de nós mesmos é muito maior do que deveríamos ter; talvez a literatura seja, tão somente, o sintoma dessa nossa doença ontológica: a propensão (e a pretensão) do juízo.
http://www.sensacionalista.com.br/?p=4828
ResponderExcluirConcordo com seu belo comentário, Rachel. Ninguém melhor que uma professora para expressar uma opinião coerente sobre o assunto. Já fui professor de escola pública durante dez anos, no tempo em que era universitário. Vivi cenas de atentado moral e físico de aluno contra aluno, bulinação de aluno com aluna, e uma série de outros bullyings sobre o qual a regra da diretoria era fazer vista grossa e não interceder. O bullying mais cruel são os próprios professores que fazem pela conivência. Lembro bem que um aluna da quinta série (ela deveria ter 17 anos, porém), veio confessar para mim, que na época tinha bastante paciência e humor para essas arenas de expurgação que são as salas de aula, que havia tido um diagnóstico de câncer no nervo da perna direita, que o médico havia dado duas opções, que era a cirurgia em que essa belíssima menina ficaria manca, ou a evolução da doença se a vaidade contasse mais alta. Ela não havia tido coragem de pedir opinião aos pais nem ninguém. Aconselhei-a firmemente a fazer a cirurgia, daí ela desapareceu do colégio e nunca mais a vi.
ResponderExcluirHavia casos em que alunas me perguntavam se só se engravidariam se ela e o parceiro chegassem juntos ao orgasmo, no ato sexual. Garotos que eram tão empobrecidos intelectualmente pela afasia dos pais e dos professores, que não achavam que mereciam o conhecimento, que declaravam que seus destinos eram ou a marginalidade aventureira ou serem empacotadores de supermercado.
Eu era_ modéstia à parte_ um bom professor, e cativava esses alunos. Fui eleito simultaneamente nos 3 colégios em que dava aula como o melhor professor, pelos alunos. Mas não dava mais. Esses dias um amigo de trabalho pediu minha opinião sobre o que fazer pois seu filho de cinco anos estava chegando com hematomas todos os dias da escola particular. Eu lhe disse o que EU faria: chamaria a polícia e abriria um processo contra a diretora, a professora, e o responsável pelo aluno espancador. Simples assim. Creio que a exposição do assunto, a punição dos culpados, evita o surgimento de assassinos vingadores. Além da teoria, nesses casos o Estado deveria intervir. É isso que eu penso.
Pô, Fernanda! Assim não tem como falar sério.
ResponderExcluirHahahahahahhahaha!
Eu diria que não devemos (...) a propensão (e a pretensão) do juízo.
ResponderExcluirIsso é uma meneira de dizer que, diante do acima, eu fico por baixo e quietinho.