domingo, 22 de maio de 2011

Juan Carlos Onetti


"É uma lembrança, faz dois anos, em Necochea. Mami se levantava muito cedo para ir à praia e eu ficava dormindo até o meio-dia no hotel. Acho que ela madrugava porque já tinha aceitado que estava gorda e velha e àquela hora encontrava pouca gente na praia. Acordei e fiquei olhando pela janela; descobri-a lá embaixo, se movendo. Mas ninguém poderia descrever o modo como se movia. Tinha uns sujeitos pintando as paredes do hotel, e o caminho de areia por onde as pessoas voltavam para almoçar. Você teria de se transformar num bicho e lembrar e compreender como se move uma fêmea para atrair o macho. Mas Mami, naturalmente, precisava de pretextos e ia de um lado para outro, arrancava folhas das árvores, chamava um cão, sorria para as crianças, sondava o céu, se espreguiçava, corria alguns passos e parava como se alguém a tivesse chamado; agachava-se para levantar do chão coisas inexistentes. Tudo isso entre o caminho da praia ao hotel e com os pedreiros no andaime. Pensei, e continuo acreditando nisso, que era a última tentativa, o desespero na caça e na pesca, dê no que dê, desde que dê em alguma coisa. Pobre Mami! Entendi tudo isso e comecei a dizer pobre Mami olhando-a da janela do hotel. Só havia ela lá embaixo; ela e a possibilidade que representavam os pedreiros, um empregado do hotel, um dos que guiavam seus carros vindos da praia. Naquele meio-dia em Necochea tomei um pifão daqueles e na sesta me obriguei a fazer amor com ela até a exaustão. É impossível que ninguém, ninguém no mundo possa conceber a pureza, a humildade com que eu teria oferecido o que quer que fosse aos pintores ou pedreiros para que um deles se aproximasse de Mami e a cantasse com uma frase suja, brutal, como quando a pessoa não consegue mais controlar-se." (A Vida Breve)

14 comentários:

  1. É um ABSURDO eu nunca ter lido Onetti. Vou remediar isso. Ah... tua resenha de Dia de Finados não me sai da cabeça. Algumas passagem me pegaram de uma forma que ainda não me recuperei. Apenas digo: gracias!

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  2. Absurdo eu só o estar fazendo agora, Farinatti!! Posso dizer que devo dois dos maiores acontecimentos de minha vida de leitor, dos últimos anos, a duas figuras: Milton Ribeiro por ter me levado a Bernhard, e o seu xará aqui, Luiz, pelo Onetti. Assim como essa passagem acima, o A Vida Breve está cheia de outras memoráveis e de intensa beleza. Imprescindível!

    Obrigado.

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  3. "Mami se levantava muito cedo para ir à praia e eu ficava dormindo até o meio-dia no hotel. Acho que ela madrugava porque já tinha aceitado que estava gorda e velha e àquela hora encontrava pouca gente na praia. Acordei e fiquei olhando pela janela; descobri-a lá embaixo, se movendo"...

    Charlles,
    sinta o que eu criei nessa tarde...



    by Ramiro Conceição

    De dentro de uma dor,
    a melhor coisa – é a fé,
    que ensina a pensar-sentir de pé.
    O resto é fé que mata, e não cria!

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  4. Belíssima passagem! Recomendo fortemente a leitura dos contos publicados pela Companhia das letras.

    ass: Murilo Valadares

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  5. Li o livro todo, achei meio chato, passei para minha (?) esposa (?!) que não lei nem metade. Pode ser ótimo, mas não para nós aqui, ou pelo menos para mim, que li a coisa inteira me entediando até não mais poder.

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  6. Aprendi a ver o tédio na literatura como uma das facetas do entretenimento superior, de forma que esse conceito que usamos para uma longa tarde de domingo num apartamento solitário não condiz com o prazer de se ler uma longa tarde de domingo solitária extremamente bem escrita num livro. Pelo menos esse Onetti (sei que inevitavelmente vou ler os outros) está sendo um gozo sem igual da arte de escrever e do pensamento refinado.

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  7. Murilo, obrigado pela dica. Não sabia até então que tinha um Onetti pela Cia. das Letras.

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  8. Ô, Marcos. Não é que tenha ficado ofendido não...
    Você achou La Vida Breve entediante e considera Uno, Nessuno, Centomila uma de suas novelas favoritas?
    (Que fique claro que eu adorei esse Pirandello também)

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  9. Charlles, fico muito contente. Afinal - falo como leitor do seu blog - já não era sem tempo que eu também proporcionasse a você alguma felicidade literária.

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  10. Afinal, não é tão confortável assim ficar do lado de cá desse papel de Pigmalião... ;)
    Procurava ontem uma passagem do Construcción de la noche: La Vida de Juan Carlos Onetti de Maria Esther Gilio para postar aqui, but to no avail.
    Vou olhar hoje com mais calma. Trata-se de uma das últimas entrevistas suas, que, como de costume, ele deu de sua cama - homem que foi averso a ser entrevistado - e que é simplesmente maravilhosa.

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  11. Sempre gentil, Luiz. Adoraria ler essa entrevista. Como não sei nada sobre Onetti, isso poderia ser um bom começo no aprendizado. Claro que assim que terminar de ler o Vida Breve, vou encejar uma resenha. As qualidades de Onetti como escritor são visíveis demais para que sua presença no estilo dos demais escritores latino-americanos _ e espanhóis_ não seja buscada. Vi frases cortazarianas no romance, uma cadência reflexiva que foi bebida por Cortázar. E tem elementos na trama que são notórios em Coração Tão Branco, do Javier Marías. Curiso_ ou nem tanto_ que Borges não tenha dito nada sobre ele: que eu, em minhas insuficiências, pelo menos saiba.

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  12. Oia, o livro do Pirandello é bem econômico, mas há outro por caminhos mais ou menos afins que, apesar de menos econômico, não consegue ser entediante, que é "A consciência de Zeno". Quanto ao tédio ser superior, ahuah, que sono...

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  13. Zeno é ótimo! Sua inveja diante ao pretendente da mulher que almeja, ao vê-lo tocar violino, e a confusão que lhe dá a irmã desgraciosa como esposa, são de matar de rir. Mas os diálogos de Brausen com Julio Stein ("a cada sete minutos inauguro um dia de perdão"), em Onetti, são igualmente maravilhosos.

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  14. Eu tô sobretudo é muito puto porque o mundo não acabou no último dia 21. Não ligava de morrer: o que eu queria mesmo é a humanidade toda fosse junto...

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