terça-feira, 3 de maio de 2011

Queimar a Casa Para Assar o Porco


Em qualquer bom livro de História sobre o século XX obtem-se a informação de que os Estados Unidos são o único país desenvolvido que cultua seus militares e gasta três dígitos de bilhões com armas e forças especializadas para manter seu poderio bélico sobre o mundo. Em nenhum outro país ocidental a persona militar ocupa o centro da mentalidade com um poder de gerar finanças e proporcionar domínio pacificador da forma tão superiormente funcional quanto acontece naquele cantão das Américas que a própria auto-conceituação imperial assume-se como A América. As outras Américas, uma vez já abrigadas sob a asa da rapina norte-americana,  tem parte substancial de seus enredos do século XX restringido à busca da independência contra as formas derivadas do militarismo norte-americano. Mesmo hoje só se espanta quem tem uma percepção incorreta dos últimos 30 anos em ver que no Brasil ainda se emulam a veneração e o temor devocional à farda, às caras de saturno  dos velhos generais e coronéis que não devem ser incomodados, salvaguardados pela relativização semi-oficial em que o crime e o extermínio silenciam-se sob o tapete da  não-revisão histórica e do perdão incondicional. Mas, a nosso favor, conta o fato de não sermos como os norte-americanos, ao menos nessa paixão plena pelo militarismo, nessa sandice de uma alienação que a ortodoxia manipula em fazer-se como patriotismo declarado pela transfiguração do amor ao país pelo amor aos milhares de tanques, caças, bombas ditas inteligentes, dezenas de porta-aviões, milhares de capitães américas soldados e um aparato tecnológico único que organiza tudo. Temos a vantagem de que aqui, apenas uma parte das camadas mais desabrigadas da sociedade se deixa deslumbrar pela ideia de um poder irrestrito da polícia, enquanto a polícia real é vista pela maioria de brasileiros com uma suspeita e controle social admonitório da experiência dos anos de truculência militar.

Somente nos E.U.A, portanto, pode acontecer o joguete dos últimos dias cuja manobra principal é o anúncio da morte de Osama bin Laden. As razões de Osama bin Laden reaparecer no cenário internacional, após quase dez anos de latentes menções a alguém restringido a ser o esteio mental de atos concretos de terrorismo praticados por outros, são tão gritantemente evidentes que chega-se a cogitar se esse caminho  de controle de crise de imagem externa e interna dos E.U.A tem um amparo sólido por debaixo  ou é apenas  uma tentativa mal elaborada e apiedante de dar a volta por cima. Pois o que aparece grotescamente por sob a declaração de que mataram bin Laden é a evidência de um presidente em queda livre nos índices de aprovação nacionais, de um país cujos extratos de radicais experimentos capitalistas indica que perdeu sua estrela e se encaminha para a bancarrota, de uma capacidade de alienação do norte-americano médio que pede para ser ludibriado a qualquer preço para voltar à crença tradicional de serem os donos do mundo. Obama tem se mostrado tão carregado de anti-clímax diante as esperanças que norte-americanos progressistas e de visualizadores mundiais em geral tem colocado sobre ele para o início de uma revitalização moral d`A América, que gera um choque por mostrar o quanto é possível ser tomado pela ingenuidade mais descomedida diante as fortes evidências históricas. O prêmio Nobel lhe dado precocemente revela o quanto o emocional converte doutores em singelos espectadores sentimentais da novela da tarde. O desemprego batendo níveis recordes, o sistema de saúde pública e previdência social ainda não reiterados pelas promessas de campanha, mas estacionados num modelo arcaico que agora promete abater-se para acabar de vez com a força dos sindicatos (como começou fazendo o governador do estado do Wisconsin), as corporações como efetivas donas do poder e mandatárias das regras financeiras e políticas, todo esse quadro gerador de uma  iminência reviravolta histórica mostra que o país símbolo do capitalistmo predatório poderia ser, na suposição fantástica  mais descabível, onde a nova revolução do século XXI arrebentará.

Numa matéria na Le Monde Diplomatique de abril intitulada "A Luta de Classe no Wisconsin", o articulista  Rick Fantasia analisa a súbita reação de trabalhadores norte-americanos de todo o país às disposições  do poder em restringir legalmente a atuação dos sindicatos. Um movimento apelidado de "walk like an egyptian" (uma referência a um sucesso musical dos anos 80 que expressa a expansão  a que chegaram as revoltas árabes pela democracia) iniciada contra o governador do Wisconsin, Scott Walker, que impôra uma lei severa sobre o sindicalismo público do estado. A ação do governador do Wisconsin, lê-se no artigo, teve efeito reverso: ao tentar solapar os direitos dos trabalhadores, ressaltou sua importância, ao mesmo tempo que decepcionou milhões de eleitores da classe trabalhadora (chamados de "democratas de Reagan") há décadas manipulados para votar contra seus próprios interesses. Não deixa de ser interessante imaginar que algum político norte-americano possa ter um conhecimento da história mundial num nível menos raso que a do também Nobel Henry Kissinger, para se lembrar que a Alemanha Oriental ruiu através dos atos populares. Como relata Tony Judt, as demonstrações programadas de repúdio às segundas-feiras em Leipzig começaram com 30 mil pessoas diante o palácio do governo de Honecker; uma semana depois haviam 90 mil pessoas, e, na fração de um dia, eram 300 mil pessoas sentadas em mortífero silêncio. Para quem são conhecidos como geógrafos criativos de territórios imaginários onde a Amazônia é distrito norte-americano, alguém que possivelmente esteja aconselhando atitudes de apaziguamento popular para Obama só poderia sintomatizar o quanto os escalões políticos e corporativos poderiam estar na premência de uma ação imediata.

Anunciar a morte de Osama bin Laden se afigura como a utilidade mais ingênua e contra-produtiva para falar de novo ao norte-americano patriota, bélico, ufanista, obesiado pela indústria de alimentação e distração mais poderosa do planeta. Se a reação interna se limitar a ser essa que aparece nos noticiários (o povo dançando as danças tribais modernas do hip-hop revanchista), então demontra o que todo mundo imagina, que o norte-americano padrão é o sujeito mais alienado e conduzível do mundo ocidental. Obama, que tem demonstrado ser um continuador disfarçado sob a pele de reformador, não faz mais do que o plausível em retirar os E.U.A. da estratosfera de exigência moral  que seu nome, sua cor, sua biografia e seu ar kennedyano de bom pai de família fizeram os de bom coração cogitar. O corpo despejado ao mar do hipotético bin Laden é o sinal de que os E.U.A. retornam à era Bush, e informam ao norte-americano apelando por sua consciência emocional mais profunda, sua memória mais hollywoodiana de que o grande filme, os grandes efeitos especiais continuarão, eternos e imperecíveis como toda fantasia imortal.

14 comentários:

  1. Excelente texto, Charlles.

    Incrível a apoteose do "mais do mesmo" que esse evento (no minúsculo, no sentido Hegeliano) exacerba.
    Entre a cobertura das eleições aqui no Canadá na CBS e o mais do mesmo da cobertura de Bin Laden na CNN, manipulava o remonto de cá pra lá, entre a decepção de uma nova presença majoritária dos Tories no parlamento e a narrativa farsesca do assassinato do algoz da Al-Qaeda.
    Primeiro como tragédia, depois como farsa. Soa meio cafajeste bater nessa tecla, mas me parece que a máxima de Marx ainda terá sobrevida por quantos anos ainda se maquearem as fissuras do império.
    Tem acompanhado a cobertura televisa de perto? Cara, como é possível emular a efusão e acriticismo da cobertura do 9-11 tão fielmente?
    Desde o triunfalismo na repetição dos, aqui civilizados, urros patrióticos nas ruas comemorando um assassinato que burla as mais óbvias convenções do direito internacional; até as risíveis gafes e o desavergonhado apelo ao univocismo - (aparentemente, de acordo com especialista em Islam da CNN, não há a menor chance de que Bin Laden seja transformado em mártir no mundo mulçumano, isso, claro, a despeito da longa tradição de mártires no Xiismo, de Hussain, do Twelver Mahdi, etc, etc) - não consegui prender o riso quando o âncora da CNN ontem, em razão de conferir a opinião internacional sobre o assassinato do Bin Laden, cita o Daily Mail e o Haaretz (ponto).

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  2. After Bin Laden,
    can anyone bit Obama in the race for the White House now?

    Mote do programa de hoje do multitalentoso (gabaritado em muito mais do que garimpar diamantes brutos para o mercado pop aparentemente) Piers Morgan na CNN.
    I kid you not, acabei de ver o anúncio na CNN agora.

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  3. Companheiro Charlles,

    Diante do que só aguardo a mudança de seu nome artístico para Carlos Cardoso*

    Será que ficará a cargo do roc'n'roll salvar realmente os EUA do autoflagelo de seu terrorismo de Estado?

    * não em homenagem ao Efeagagá, mas a outro Cardoso, autor de "Crônica da Casa Assassinada".

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  4. Fui pego totalmente de surpresa pela notícia da morte de bin Laden na página do bol, Luiz. Cheguei a pensar que fosse uma pegadinha. Quando verifiquei que era notícia de fato, pensei: mas o que eles estão fazendo?!?! Não vai haver retaliação? De novo os intelectuais da histriônica inteligência norte-americana fizeram das suas: ontem vi um líder muçulmano que atirar o corpo ao mar é uma ofensa de elevado grau aos dogmas do Alcorão. Percebe a gafe? Se existir mesmo um corpo, mostrá-lo incidiria na martirização radical por todo o mundo islâmico e nas reações terroristas de praxe; não mostrá-lo exigiria uma prova maquiadamente "do mercado negro" como o celular que filmou o enforcamento de Saddam Hussein, o que envolveria uma carga passional muito maior que a do ditador iraquiano. Então arranja-se a asséptica solução de um poético enterro marítimo, achando que estão capitulando em não ofender preceitos sagrados e...tal coisa é uma ofensa sem tamanho.

    Me espanta a total falta de criatividade desse arranjo por parte de Obama. Imitar Bush, gratuitamente? Ninguém pensava mais em bin Laden, e eles desencavam e turbinam o problema. Se não houver uma intenção estratégica GENIAL por detrás, algo que imagino inacreditável, esse vai ser visto como um dos mais idiotas feitos da história!

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  5. Marcos, vistes? Sou o último esquerdista, real, genuíno, raivoso, cheio da empáfia de ser o dono da lucidez nesses tempos circenses...

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  6. Eu morro de rir só em pensar as asneiras que a turma do Manhattan qualquer coisa e os biliosos da Veja dirão sobre o assunto. Esse Obama tá saindo um babaca de carteirinha, mas isso não surpreende: quando eu o vi, ainda em campanha, almoçando hamburgueres em lanchonetes e pedindo nelas mesmo refeições idênticas para viagem pressenti estar diante de um demagogo amador. E fica tranquilo - "Se não houver uma intenção estratégica GENIAL por detrás, algo que imagino inacreditável, esse vai ser visto como um dos mais idiotas feitos da história!" - que não há; afinal, estamos falando do País dos Idiotas Mesmo.

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  7. pois eu me surpreedi ainda [certamente por não acompanhar de perto] com um discurso q pensava ser bushista, mas, agora vejo claramente, não é. só agora vi q fôra promessa de campanha, num desses milhares de discursos q fazem na peregrinação eleitoral. "nós vamos matar osama..." O Jornal Nacional DEU O CU pro obama ontem, às vezes dá pra ficar quase feliz de as pessoas não entenderem nada de nada, pq se depender da imprensa (porra, parece tudo matéria comprada direto da casa branca) eu me alisto amanhã no exército do capitão américa.
    gostaria de ler o q idelber teria a dizer - o milton já mostrou desilusão.
    pensem num chefe de Estado dizendo "nós mataremos...". Não é à toa q assassinam ATÉ chefes de Estado por lá...
    me sinto, é claro, o maior dos ingênuos pois só agora percebo q tudo, desde o começo, era matéria comprada embalada no marketing de ponta - o espírito de nosso tempo.

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  8. aliás, não caberia aqui o marcador zeitgeist?

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  9. White House Briefing de agora,

    O correspondente da Casa Branca acaba de embaralhar a narrativa do assassinato do Bin Laden mais uma vez: agora o Bin Laden não estava armado no momento do assault, mas "resistiu" a ponto de tomar um balaço na cabeça; a versão que a mulher do Usama fora usada como escudo também não existe mais; também não é mais morta, levou um tiro na perna quando tentou atacar os marines.

    Saudades dos anos 80 quando assassinatos a ditadores/terroristas, encarnações do mal, longe do Estado de soberania americana ocorriam
    na surdina e secrecy, como nos filmes do Rambo.

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  10. Gostei muito do post, Charles. Poderia ser publicado em qualquer grande e bom veículo da imprensa, tendo mesmo o tom dos textos do Le Monde. A luta de classes que o artigo do Rick Fantasia se refere vem despertando os americanos (bom frisar: NORTE- americanos, como vc fez :-)) para a situação crítica do país que segue uma linha de máfia corporativa desde o governo Nixon. Os novos documentários, por mais populares que são (razão de alcançarem tantas mentes), como Trabalho Interno e Capitalismo, fazem a sua parte para abrir os olhos do norte americano idiotizado padrão. Parabéns pelo texto.

    Abz.

    Murilo Valadares

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  11. Obrigado, Murilo! Baita elogio. Houve o Carter numa pequena pausa, mas a coisa já estava desenhada e em franco declínio com o Nixon, mesmo.

    Realmente, Marcos, o show está armado. Como disse o Rômulo, o JN já era um porre, ontem foi de matar. Será que existe mesmo essa quantidade de teleguiados? Com essa plenipotência toda de descerebralismo?

    Rômulo, apesar dos pesares, ainda acredito em muito do que está ali no Zeitgeist. A história definitiva dessa mixórdia toda ainda é muito precoce.

    Luiz, estou acompanhando. Essa saudade irônica que você sente mostra o quanto perdeu os EUA o território de "montarem" a história a seu bel prazer. Um dia, a sessão de cinema acaba. Como disse o Raul, o cinema se incendiou.

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  12. Demétrio Magnólio está a falar tantas sandices pré-fabricadas no Jornal da Cultura nesse instante, que me arrependo de ter prestado atenção a esse cara.

    Rômulo, divido com você a mea culpa por ter sido ingênuo nesse sentido.

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  13. Do opúsculo First as Tragedy, then as Farce, Zizek (2009),

    However, as already noted, the real tragedy of Obama is that he has every chance of turning out to be the ultimate savior of capitalism and, as such, one of the great conservative American presidents. There are progressive things that only a conservative with the right hard-line patriotic credentials can do: only de Gaulle was able to grant independence to Algeria; only Nixon was able to establish relations with China - in both cases, had a progressive president done these things, he would have been instantly accused of betraying national interests, selling out to the communists or to terrorists, and so on. Obama's predicament seems to be exactly the opposite one: his 'progressive' credentials are enabling him to enforce the 'structural readjustments' necessary to stabilize the system.

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  14. Eu acho que a farsa está imitando a farsa, discaradamente e sem a mínima criatividade. O século começa para os EUA (e, inadvertidamente, para o restante do mundo), com um presidente que é tão moldado pelo corporativismo que não gera nem uma indignação real. Afinal, todos esperavam isso, até os mais otimistas. Lendo o trecho do Zizek percebemos que o último no bastião dos presidentes que tinham alguma representatividade real, mesmo para um mal absoluto, foi...Nixon!!! Obama não se presta a uma sátira nos moldes que a turma do Futurama fez acidamente colocando a cabeça reanimada de Nixon como imperador mundial.

    Ontem, no jornal da cultura, perguntou-se a um dos professores convidados (o outro foi o decepcionante Magnoli) se ela se compactuava com "essa turma que não acredita que bin Laden foi realmente morto", ao que esse fez coro com o Demétrio em "mas claro que não isso nunca", como se tivessem lhe encostado na parede e perguntado se ele havia visto o coelhinho da páscoa com a sacola de ovos de chocolate esse ano. A resposta mais isentamente coerente?: Acredito na apresentação dos fatos!

    Esse episódio ainda vai gerar grandes discussões e análises que extrapolarão o simples meio do domínio cultural de massas.

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