sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A neve estava suja


Suspeito que seja por ter ouvido meio erraticamente um desses intelectuais brasileiros presos pela ditadura militar dizer que três meses de prisão foi ótimo para ele poder ler Guerra e paz em sossego. Assim, tendo retornado de forma involuntária a um ciclo de leituras de Dostoiévski (em busca das leituras essenciais), me vem à mente a fantasia de que estou preso em uma cela individual de um presídio de proteção máxima, com um absoluto tempo livre pela frente para ler Os irmão Karamazóv. De certa forma bastante concreta, essa é uma das felicidades do leitor. Ninguém ficaria feliz em ficar sozinho em uma cela individual, mesmo que elas apareçam na tv com toda sua brancura e sua higiene e seu silêncio abençoado, vide os pedidos de clemência dos condenados e o esforço que os advogados fazem em vão para os retornarem ao cenário da superpopulação das cadeias comuns. Um leitor ficaria feliz. Que maravilha abrir a história dos Karamazóv e se inserir para o mundo daquelas páginas em um ambiente mais recolhido que o de uma biblioteca. Dostoiévski mesmo escreveu que a maior selvageria que acontecia com os detentos era a impossibilidade de se estar sozinho, a ponto de ser um esforço sem tamanho conseguir pensar.

Nesse jogo de correlações entre Dostoiévski e o ambiente criminal, visito o site da Companhia das Letras e me deparo com o romance que mais se aproximou à intensidade dos livros do russo no século XX. E aqui com o título traduzido com maior fidelidade ao original: A neve estava suja. E com uma belíssima capa. O romance de George Simenon que me deu um soco no estômago quando o li em meus vinte anos e do qual mesmo após tanto tempo conservo boa parte de suas imagens impactantes. Visito o site da Cia com certa apreensão, me dividindo entre a vontade de ter uma boa surpresa e da necessidade de não encontrar nada substancial por algum tempo até que ponha minhas leituras em dia. E A neve estava suja com certeza é uma excelente surpresa.

A meu ver, este romance traz uma das melhores primeiras frases da literatura, uma abertura que tem a violência velada e a premonição sufocante das aberturas de Kafka. É um romance cujo desbaratino por não se saber o que fazer com sua impressão de grandiosidade, uma vez que os esteriótipos o enquadram na área dos romances populares e baratos, faz com que suas qualidades fiquem ainda mais evidentes. O fato de ser pulp-fiction, de ser de um autor que escrevia romances inteiros no enquadro temporal de uma semana, de um autor que, voluntariamente, retirou tudo do texto até uma limpidez comercial astuciosa, faz com que o romance seja de uma crueza quase sobre-humana_ ou sub-humana, considerando a brutalidade animalesca dos personagens. Na minha vida de leitor, nunca encontrei uma cena de assassinato que fosse tão vil, tão obscena e pavorosa, tão gratuita e insofismável quanto a relatada neste romance. Em Crime e castigo, acompanhamos todas as elucubrações filosóficas do assassino, e o assassinato ganha avaliações profundas por todo o restante da obra. Mas neste Simenon, a linguagem de romance de banca e o propósito evidente de sub-literatura, faz com que o crime prescinda de toda bijuteria, de todo eufemismo, de toda vênia à tradição clássica de não ofender o leitor; o ambiente livre da descartabilidade e do lixo dão uma força única à desumanidade de Simenon. Este romance é tão único e doloroso, que mesmo seu gêmeo mais próximo, Brighton Rock, de Graham Greene, parece um tanto palavroso e inglês, um tanto polido e lento. A neve estava suja talvez possa ser apontado como literatura francesa em respeito a uma corrente um tanto efêmera mas representativa daquela literatura, em que a nudez se apresentou com um poder imbatível, o que fez com que Beckett escrevesse seus romances em francês: tem a linguagem chula de beco, o traquejo de gangue, a falta de piedade dos que nasceram sem a precisão de lentes ideológicas para ver a realidade de morticínio. E neste romance vemos essa escola de maneira pura, bebemos todo o proveito que ela traz para, hoje, sabermos por onde se pode renovar a escrita e torná-la sanguínea e essencial.

Ainda não tenho esse livro, e ele ainda não foi lançado. Assim que lançado, serei um dos primeiros a comprá-lo.

8 comentários:

  1. Acompanho suas conversas com Ssó no blog dele. Por causa delas já fiz uma lista de Simenons (quero muito A Janela dos Rouet, cuja trama me lembrou de Hitchcock). Comprei e já comecei O Burgomestre de Furnes.

    Ah, esses dias li O Talentoso Ripley. Rapaz, Highsmith escreve bem demais. O livro é impecável, desde a primeira linha. Não consigo imaginar mais ninguém transformando em algo tão interessante aquela história de um cara viajando e mentindo sem parar (ah, vá lá, fora Mark Twain).

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    1. Eu já li dezenas de Simenon. Gostei de todos, os do Maigret e os romances mais sérios dele. É difícil afirmar, mas se tivesse que escolher um, escolheria este do post, que é sensacional.

      Gosto muito de literatura policial. Li este Highsmith há muito tempo, e ele é tudo isso que você falou. E o filme é um desses casos raros em que consegue ser tão bom quanto o livro.

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  2. John Banville colocou este livro entre os 10 melhores do século xx.

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    1. Corrigindo, entre os 10 de todos os tempos.
      http://www.toptenbooks.net/authors/john-banville

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  3. Reapareço por aqui (continuo leitor fiel, apenas pouco participativo nos comentários) para dizer-lhes que, enfim, depois de tanto acompanhar vocês falarem a respeito, estou lendo o Saul Bellow. Leio "O Planeta do Sr. Sammler". Comecei ontem, li apenas umas 20 e poucas páginas, mas já estou achando fantástico, já estou completamente capturado. Devem ter sido algumas das primeiras 20 e tantas páginas mais intensas que já li: Bellow/Sammler, nesse breve trecho, já falou de Hannah Arendt, Dostoievski (o "Crime e Castigo" citado aí em cima), plantas tristes e descoloridas em apartamentos, o homem que queimou a casa para assar o porco (lembrei imediatamente de um post antigo do Charlles) e tem aquela frase que é tipo um soco na testa, "ninguém é capaz de concluir um acordo satisfatório, sóbrio ou decente com a morte". Li o "Sidarta" do Hermann Hesse não faz muito tempo, que é um livro que te deixa todo feliz e inspirado com suas possibilidades de serenidade, de unidade com a natureza, de domínio sobre a vida, de uma futura morte tranquila ricos que estaremos com o conhecimento já adquirido e que ainda estamos por adquirir nesta jornada neste belo planeta... E daí vem o Bellow e, bem, soco na testa. E o impacto é particularmente forte porque, no fundo, e não importa quantos Hesses leiamos, a gente sabe que ele, Bellow, fala a verdade.

    Apenas que a tradução me parece meio esquista, por vezes... É daquela velha coleção de clássicos, capa branca e nome do autor em dourado, da Abril, sabem? Achei num sebo... Mas por enquanto nada que me impeça de continuar a leitura.

    Bem, obrigado a todos aí que sempre falaram tanto do Bellow, precisei só dessas poucas páginas para descobrir que demorei demais para lê-lo, mas antes tarde do que nunca. Desculpem o off-topic. Agora, on-topic: do Simenon, li alguns do Maigret, todos ótimos, dessas edições de bolso da LPM. Leitura perfeita para preencher um desses vôos mais longos... Fossem as companhias aéreas mais espertas, ao invés daqueles jantares horrendos, elas serviriam aos passageiros um livro do Simenon cada, e fora isso uns amendoins e uma taça de vinho seriam suficientes, e uma fruta de sobremesa. Ficaria uma impressão bem melhor!

    Charlles, já leu o Ross Macdonald? Li o "Dinheiro Sujo" há algum tempo, e lembro que fiquei com a impressão de tê-lo achado tão bom quanto as melhores coisas que já li de literatura noir...

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    1. Fabricio, quanta coincidência. Hoje mesmo estava relendo as partes sublinhadas por mim de Sr. Sammler. Pego muito os livros do Bellow, praticamente todos os dias (o que diminui consideravelmente a coincidência), e releio as tantas partes sublinhadas. Esse Sammler é um dos que não tenho em inglês e não li no original, e o tenho nesta edição da Abril. Pode ser uma paixão pessoal, mas gosto muito dessa tradução. A primeira frase é soberba, o que se pode identificar a dedicação da sra. Denise Vreuls no trabalho. Eu adoro e sei quase de cor as páginas 72 e 73. Esse livro faz parte dos romances sombrios de Bellow, conforme classificou Philip Roth (em oposição aos romances mais ensolarados, como Humboldt e Augie March); mas, conforme você irá descobrir ao ler o restante da obra dele, o pessimismo de Bellow foge das regras de catalogação.

      Está na previsão de lançamentos para o próximo ano da Cia das Letras uma nova edição de Sammler.

      Ainda não li Macdonald; vou anotar para futuras aquisições.

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