Ele o viu descendo pelo tronco do pé de manga logo que abriu a janela do quarto, em uma espécie de telecinese inter-espécie, a sombra dele com uma facilidade vetorial atravessando os extremos da altura da árvore com uma imaterialidade que quase era sinistra naquela hora da manhã. Acordara praticamente pensando nele, e fora dormir na noite anterior analisando as incômodas reformulações no seu cotidiano que já tinha que fazer desde que ele começara a ocupar sua casa, com seus miados cuja palavra cinismo condizia bem e tinha um sentido todo adequado ao mundo dos gatos. Pensava nele e, tcharã, lá estava, se aproximando pelo quintal com uma prontificação ególatra que com certeza já tinha o senhor parado do outro lado da janela em seu campo visual. E nem podia dizer que esse senhor, ele, era de agora para frente seu novo dono. Gatos não tem donos, Dani, ele disse à sua mulher, em uma das várias discussões erraticamente com erudita seriedade que passaram a ter sobre o novo inquilino; gatos são seres indiferentes e dominadores, ela dissera em resposta, com a caneca de café pendurada imóvel na mão diante de si, e um monte de clichês que saíam em profusão do fundo da mente dos dois como se suas infâncias combinadas em que ouviram falar sobre gatos os tivessem preparados para aquele momento em que, finalmente, conviviam com um gato na prática. Mas ele é macho, ele dissera à esposa, pensando nas enormes bolas do bicho, ele que nem sabia que as bolas de um gato poderiam ser vistas assim com tamanha evidência. Ele sabia, através de outra das redes de conexões com seus pre-conceitos infantis incutidos, que os animas dessa espécie que tinham três cores eram fêmeas, e os com duas cores, machos. Mas e os gatos angorás brancos?, a esposa perguntou, com um risinho sardônico, e ele esperou, chegou a contar três segundos, até que a previsível frase viesse: Você é veterinário, deveria saber dessas coisas. Dessas coisas o quê, Dani, que gatos machos tem testículos que de tão grandes devem estar por detrás da capacidade deles de se equilibrarem com tanto sucesso? E aí ele rebate: me cite o nome do escritor que fundou a literatura etrusca, você deveria saber já que é formada em letras.
As bolas do gato eram realmente espantosas de grandes, o que ficava em maior realce diante a magreza do modelo geral em que elas vinham acopladas. Não sabia por quê, mas ele pensou imediatamente no Mick Jagger, quando se deparou com o felino magérrimo se distanciando pelo alpendre assim que o flagrou saindo por detrás do sofá de fora. Não sabia se Jagger tinha testículos tão imponentes, era bem provável que não os tinha assim, mas na concisão das verossimilhanças automáticas sua mente de imediato outorgou uma respeitosa capacidade sexual ao gato. Ao deitar o livro que estava lendo, sentado na cadeira de fio, para ver aquele prodígio anatômico, ele não conteve uma exclamação: "Nossa!". Seja o que havia impregnado de amistoso na voz, o gato parou a fuga e se voltou para ele, e deu uma de suas miadas sedutoras, a telecinesia passando a ser um contrato de ligação instantânea entre os dois d`agora pra frente. O gato parecia mesmo saber quem era Jagger, ou ter compreendido o código de valores por detrás da ideia, pois mudou a sua forma de andar, de simuladamente tímida para um gingado de ricos poderios malandros, um demorar entre o espaço das passadas dos membros dianteiros e anteriores que tinha algo de beco, de perigoso, com um "e aí malandragem, o que tá pegando" em eco ao fundo. Houve uma entrega completa e sem reservas, algo bem maquiavélico, pois o gato instituíra a obrigação de que ele, o gato, seria o dono da casa. Um gato magro, amarelo de duas cores e dois sacos enormes libidinosos que levantava a questão de se teria que tirar as crianças de perto para evitar aquelas perguntas cabulosas. Um vira-lata inglês oriundo da classe industrial de altas chaminés das fábricas de tinta de tecidos, conhecedor profícuo daquelas ruelas de muros de cores carbonizadas e chuvas frias constantes, antes que o destino o fizesse cair nas graças do mercado fonográfico incipiente. Ele veio para debaixo de suas pernas e com uma desavergonhada quebra de sutilezas diplomáticas alisou-se nelas, ronronou com uma consciência telecinética simultânea entre os dois de que além da constituição de posse estabelecida, se assinava um acordo em que também contava um cortejamento com alvo feminil que, é claro, os grandes testículos heráldicos deixavam claro quem era o macho ali. Ele passou a alimentá-lo; deixava restos da janta no canto da garagem, restos de pizza, de pães de queijo. Fazia isso de modo clandestino, pois ainda não sabia o que a Dani iria pensar disso, e também porque não sabia o que ele mesmo deveria pensar, ele que era um devoto criador de cães, o que deveria ter alguma regra de comportamento quanto ao inimigo natural dos cães. (Os gatos antes eram todos mortos assim que ousavam pular pelo muro de sua casa, pelo rottweiler que eles criavam e que se atirava sobre os bichanos com uma crueldade silenciosa cultivada por séculos de ciência destrinchadora, e que eles ouviam, na madrugada, os gritos de desespero sem escape das vítimas, a maneira como o cão as atirava contra as paredes e mesmo de contra o carro, e as jogava atleticamente para o alto, e como os gatos, ao voltarem para o chão, emitiam sons ainda mais apiedantes diante a imposição natural do resto de martírio que tinham que passar até que a matemática sanguínea cheia de resquícios selvagens do cão se cumpria e eles podiam morrer em paz, depois de tanto sadismo_ e o cão, em sua absoluta e perfeita mudez, denotando ao fim de tanto prazer, o tédio que vinha depois da queda abrupta dos níveis de serotonina, o que o obrigava a empurrar a evolução para esse novo infinito caminho de nuances filosóficas ainda primitivas mas prometedoras.)
Mas ele não deu um nome ao gato, isso seria levar o imperialismo histriônico do bichano à sério. E se o gato apostava que naqueles metros quadrados onde vinha dormir, receberia a obviedade do nome de Jagger, teria que tirar o cavalinho da chuva. Não iria enriquecer ainda mais indevidamente aquele ritual de conquista com um batismo. Mas, como acontece com todas as piadas temerosas, a ocasião acabou dando-lhe um nome. E foi graças a outra banda de rock, pois ouviam muito um disco do Grateful Dead, e sua filha Júlia, de 4 anos, cantava o refrão "I had to move, really had to move", de Bertha, como "O gato bluu, uuu", e ela quem deu o nome ao inquilino de Gato Bluu, assim mesmo como ele literalizou as duas palavras, com dois us. E o Gato Bluu, uma vez com um nome, achou por direito que era a hora e o momento de dar sua nova quebra de diplomacia, pois foi descoberto uma vez que não estava limitado a deitar no sofá velho de fora, mas brincando com uma alegria genuína na piscina de bolinhas da Júlia dentro do quarto de bonecas. A Dani foi ficando mais enfurecida. O Gato Bluu voou por debaixo das pernas de uma Júlia possuída por gargalhadas de euforia, e atravessou pela porta da cozinha como um mirrage com duas turbinas cabeludas de distinto tamanho abaixo da cauda. O Gato Bluu passou a querer por que queria entrar na casa. E a Dani vinha com panelas de água e jogava-lhe em cima, e ele só balançava a cabeça aspergindo a água pelos lados e parecia mesmo dar um sorriso de quem agradecia o refresco mas agora não, obrigado, tenho assuntos mais específicos, prosseguindo a entrar calmamente pela janela. Tinha uma determinação tão inviolável que os conceitos infantis sobre a permissividade melíflua dos felinos voltaram a sair do subconsciente do casal na hora do café da manhã, em que a Dani tornava a abrir todas as janelas da casa lacradas no começo da noite para que o Gato Bluu não entrasse. Ela deixava só a janela do quarto aberta, e ele, levantando a cabeça de madrugada do travesseiro, o viu postado no parapeito, os olhos iluminados como uma anunciação vinda de um dos avatares do pesadelo, sem entrar, talvez com medo, pela primeira vez, das luzes azuis e do barulho do climatizador ligado ao lado da cama.
Como ele já passara a gostar do gato, embora ainda não o admitisse, deixava que a esposa tomasse as providências que achasse certa tomar. Ela também parecia não querer fazer nada; seria tão fácil se ele sumisse de repente, alguma aventura noturna o levasse embora, que agisse a via sacra dos gatos vira-latas carregada de atribulações e fantasias. Mas, ao mesmo tempo, será que a supressão do tormento iria fazer falta? não ver mais aquela "insígnia de um desaparecido veludo", como escrevera o poeta que eles menos gostavam mas que se salvava pela beleza desse verso, deitado no sofá, sonhando sonhos de gato emitindo ronronares pelas metades que acentuavam a sua desproteção, o que tinha o efeito de os fazer parar de cogitar sobre sua diabolice. Se ele continuar a entrar aqui dentro, teremos que o expulsar em definitivo, a Dani disse, e ambos pensavam no sofá caríssimo que haviam comprado, e que o retorno da inflação dos últimos meses o tornara ainda mais caro, e o que despertaria neles de sentimentos difíceis de abrutalhamento se vissem bosta de gato no tecido do sofá. É estranho, Dani, ele começou a dizer, o quanto ele fica à vontade com a gente,o quanto ele não nos teme nem minimamente. Ele sabia o que iria dizer, era algo delicado e de uma besteira infinita, mas programara dizê-lo como argumento contra um possível decreto da esposa de que teriam realmente que se livrarem do animal. Você já pensou, assim de mente bem aberta, se o Gato Bluu não é... bem... segundo os hinduístas,... você já pensou se o Gato Bluu não é uma reencarnação do seu pai?
Por mais que o humor na casa fosse totalmente iconoclasta, ele sentiu um pouco de medo de que aquilo a ofendesse, já que o pai dela havia morrido há apenas oito meses. O gato é velho, Charlles, deve ter uns sete anos, é provável que possa ser o seu pai, já que ele faleceu há precisos sete anos, ela rebate. Há um conto de Cortázar, ele pensa, em que o casal brinca que esperam cartas escritas por uma pessoa que ambos sabem já morta há muito tempo. No final do conto, o homem abre uma carta que enfim aparece na caixa de correios, e a mulher pergunta, com inquieta sinceridade, "é dela?", ao que o homem responde, com uma certeza que tem muito do protocolo abissal de um manicômio, "Sim". Ele passa a olhar para o Gato Bluu como se ele fosse Seu Gercino, o sogro. Quando o Gato Bluu pega um dos brinquedos da Júlia e sai o revoando em uma felicidade sem limites entre as patas, ele pensa no padre Zossima dizendo que os animais e as crianças são as alegrias da criação divina, e começa a pensar que não seria muito difícil para sua pré-senilidade dos 40, que já asfalta o caminho para que misture todas as filosofias em um nível de profunda pessoalidade, fingir com realismo acreditar nisso.
Pô, Dani, aceita o gatinho. Melhor bicho.
ResponderExcluirGostei demais. Estava tudo muito bem, sereno e engraçado, como um gato, e do nada surge o Rottweiler. Uma estocada de bestialidade e perversidade, típica do ruim, do maligno, do CÃO.
E bela resposta da Dani. Pensa rápido...
O bichinho é uma graça mesmo.
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