sábado, 3 de agosto de 2013

Lugares



O pequeno prédio situado em uma esquina aprazível de frente a uma praça de grama tomada pela proliferação de ervas oportunistas condiz quase sobrenaturalmente com as leituras que venho tendo nos últimos dois anos. Quando estacionei o carro debaixo de um das tolkienescas árvores da praça (a adjetivação é apropriada, como pretendo mostrar mais adiante) _ entidades vegetais que despertam tanta evidência de nos observar com um enfado centenário de uma feminilidade anciã já quase dessexualizada que acaba sendo melhor não explorarmos muito o fato_, e saímos eu, minha esposa e meus dois filhos, fui tomado pela sensação de que lugares assim existem em todas as regiões do mundo, não são privilégio de povoados da Inglaterra ou de cantões obscuros da Mitteleuropa, e nem era um atributo restringido pelo tempo a épocas mortas, pois mesmo no século XXI e mesmo aqui na minha cidadezinha onde moro pude ter a surpresa meio reverenciosa de encontrar um exemplo deles. Nós passamos quase todos os dias pelo local, olhamos sempre para o pequeno prédio sem nenhum espanto, mas parece que foi apenas nesse dia que aconteceu o estalo de realmente vermos que ali era uma biblioteca, com todos os agravantes de lugubridade e bucolismo que tornava nossa distração ainda mais indesculpável. Não disse à Dani quando nos aproximávamos do lance de quatro degraus que subiam até a porta dupla aberta convidativamente, mas juro que tive a calma certeza de que a bibliotecária seria um tipo condizente com a brecha na realidade em que acabávamos de entrar, uma figura idiossincrática carismática, para o bem ou para o mal, que assim como a praça degradada, a ausência manipulada de pessoas nas ruas, o sol por entre os galhos enervados das tantas árvores conformadamente enlouquecidas de sapiência, não seria em absoluto desse mundo. Não conseguia imaginá-la no curto percurso antes de subirmos as escadas, mas tinha plena segurança que o enredo de uma realidade paralela a desenharia sem exageros no que poderia ela mesma ter de uma indispensável estranheza, de modos que pensaria dela depois: convincentemente natural, mas nunca normal.

Pois entramos na biblioteca: uma casinha antiga, colonial, com paredes com infiltrações e manchas típicas dos filmes de Tarkóvski, pintura indeterminada (era como se lá dentro imperasse um preto-e-branco amorfo, sonífero), janelas amplas de madeira, uma solidão e um silêncio quase aterrorizantemente absoluto. A bibliotecária nos recebeu na entrada_ havia se preparada, pondo as mãos juntas e emitindo um sorriso internalizado, um desses sorrisos de linha d`água em que podemos nos equilibrar em sua cordialidade efetiva pelo lado externo, mas no fundo do qual corriam outros pensamentos indeterminados, outras sensações proibidas e reservadas unicamente a ela_, não quis olhá-la mais que o habitual, por enquanto, deixando que a Dani cuidasse dela enquanto meus filhos e eu exploraríamos os livros. Fomos para a sala das crianças, que a bibliotecária nos abriu a porta, perguntou se queríamos que ela retirasse as duas grandes barras de ferro que selavam uma outra porta dupla para que entrasse mais luz, ao que respondemos que não era necessário, e nos disse que poderíamos mexer em tudo, desde que não recolocássemos os livros das três primeiras estantes de volta pois eles estavam em ordem catalográfica, e que deveríamos os colocar nas mesas, no final. Ela foi embora, se sentou junto à Dani numa mesa de madeira da sala principal, e meus filhos depositaram os livros nas mesas, pegaram os bonecos encardidos por anos de manipulação de um armário aberto só de brinquedos, e ficaram fazendo o itinerário de seus deslumbramentos. Deixei-os lá, depois que vi que não haviam objetos perigosos por perto, e fui ver o que poderia me surpreender com os poucos livros das estantes dos adultos, na outra sala. Tive um choque ao ver que, apesar de poucos, todos os livros ali eram a radiografia de meus interesses e minha biografia de leitor. Parecia uma biblioteca montada por mim. Olhei de relance minha esposa e a bibliotecária, para ver se era agora que eu deveria estudá-la, pensando também se não havia algo de ameaçador contra o qual eu deveria me colocar seriamente em guarda naquele episódio de Twilight Zone feito à minha medida. 

Pois os livros que tinham ali eram raros, esgotados, disponíveis para a compra só em lances fieis de sorte de se consultar os sebos todos os dias. Muitos, a  maioria, eu não tinha. Havia ali o Lote 49 e o Vineland, de Thomas Pynchon (Thomas Pynchon ali!!!), que afiguram como pequenas fortunas em livrarias de usados, e que, apesar de ter lido tudo de Pynchon, eu ainda não tinha o Vineland. Havia ali um livro de Joseph Heller, que não o Ardil 22, que também era uma preciosidade. E o Fala, memória!, do Nabokov; e a auto-biografia de Joseph Conrad; e... pasmo, o único livro de Javier Marías publicado no Brasil que eu ainda não tinha, mas que naquele mesmo dia, horas antes, eu tinha pago na loteria e enviado a confirmação a um dos sebos da Estante Virtual, e que espero recebê-lo na semana que vem: Negro dorso do tempo. (Aqui a informação de que o livreiro do qual comprei esse Marías tem o lindo nome de Mazotopisteles Gurgel Praxedes, que Marías iria adorar.) Folheie esse Marías e vi, sobressaltado, a foto do porteiro Will que aparece em Todas as almas, esse livro inesquecível que faz um passageiro mas enternecedor retrato de Tolkien, o que me deu a referência das árvores da praça. Pedi, quase sem fala, para que a Dani fizesse o cadastro de empréstimo, para que eu já me antecipasse com esse Marías, e tudo acabou com eu o levando, e as crianças levando Asterix entre os bretões e um lindo livro infantil (que acabei o encomendando hoje pela net) Nita e a Princesa das Bruxas. Haviam lá deliciosos livros infantis de 60 anos de idade, maravilhosos, mas que não eram passíveis de ser emprestados, pranchas grandes de papel grosso com desenhos retrógrados e belos de animais que pareciam de algum artista inglês, o que evidencia mais ainda a inutilidade insossa dos e-books.

Na verdade precisamos voltar depois do almoço para fazer o cadastro, já que nenhum de nós estávamos com documentos pessoais nem com comprovantes de endereço. Perguntei à bibliotecária a que hora a biblioteca abria à tarde, ao que ela respondeu com seu sorriso preciso e sua dicção suave: "Aqui nunca fecha". Foi quando a observei mais detidamente: era uma moça, talvez mais que trinta anos, dentes que pareciam ser de leite, meio separados, espinhas distantemente vestigiais pela pele, olhos que eram bonitos pelo que tinham de assimilação à sua condição dada pela biblioteca, de certa doçura, uma velada intensidade, um impreciso mas eficaz conhecimento humano: era como se ela fosse uma das árvores centenárias da praça, que ganhara personificação carnal para atender ao propósito de receber aos incautos intuitivos que caiam na armadilha de retornar à materialização de antigos ambientes de uma memória pessoal remota. A Dani, que é a pessoa mais educada que conheço, não evitou de me dizer, meio sério, de que na volta ela tomaria conta das crianças e eu ficaria conversando com a moça. "Ela é meio capota", disse. Como assim, perguntei. "Não sei dizer ao certo, parece avoada, alheia, tem uma fixação que puxa por algo maníaco, faz perguntas inapropriadas: na saída insistiu com uma veemência sem sombras de dúvidas para que trouxéssemos nosso outro filho". Sorri com involuntário nervosismo, mas me ative à certeza de que aquela prestidigitação de adivinhar coisas de nosso passado não iria me separar daquele Marías.

3 comentários:

  1. E tudo isso numa cidade interiorana desse imenso Goiás.

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  2. João Antonio Guerra4 de agosto de 2013 às 14:22

    Imediatamente: "(...) I discovered that my own little postage stamp of native soil was worth writing about and that I would never live long enough to exhaust it (...)"

    Pequenez nenhuma é tão pequena quando dizem que deveria, e a lonjura de cidades como essa tua é a mesma benção nietzschiana que pariu Macondo, o Sertão, Yoknapatawpha... e a Zona de Tarkovski.

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