sexta-feira, 10 de maio de 2013

Silly Words

Meu ingresso para o show do Paul McCartney, muito provavelmente, foi um dos primeiros a serem comprados, quando a venda foi disponibilizada pela internet na meia noite de três semanas atrás. Minha irmã, Aline, e eu, havíamos combinado que o primeiro que se deparasse com a possibilidade de comprar os ingressos, o faria imediatamente, adquirindo três, um para mim, outro para Dani, outro para ela. Pois Aline viu os ingressos à venda e os comprou. Eu já tinha resolvido a questão de uma licença no trabalho, de dois dias, pois o show estava marcado na data insólita de uma segunda-feira. Todas as noites ouvíamos uma parte da discografia dos Beatles e do Paul, e repassávamos as letras, e a Dani e minha irmã escreviam alguma coisa sobre a esfuziante espera pelo Facebook. Minha fascinação pelo Paul, que eu considero, indiscutivelmente, o beatle mais talentoso, não era assim tanta hoje em dia, como o fora na juventude, e eu ficaria muito mais entusiasmado se fosse o Jethro Tull, ou o Van Morrison, ou o Neil Young, ou alguém definitivamente inesperado, como a Kate Bush, mas no fim, Paul McCartney é Paul McCartney. Como diz um dos personagens de Houellebecq, em referência a grandes astros do rock, como Jagger e McCartney, eles são seres materialmente investidos de todas as raras vantagens da deidade de uma forma que nunca se viu antes na história: são muito maiores que os faraós em seu tempo. Se há uma semana me perguntassem se eu acreditava com toda certeza em uma determinada coisa, eu diria peremptoriamente que era minha ida ao show do McCartney.

Os ingressos foram caros, mas não para o padrão de um Beatle em Goiânia. 160 reais, mais 20 de propina para uma tal de "taxa da internet". Como esperávamos que ocorreria o mesmo que em Minas Gerais, que teve todos os ingressos esgotados no primeiro dia, compramos como bons consumidores ludibriados sem nenhuma outra alternativa. Os ingressos, porém, só foram se esgotar um dia antes da apresentação. Minha irmã disse que pagaria o meu, pois era presente dela por meu aniversário. Minha irmã aventou a hipótese de comprar os outros dois ingressos como meia entrada, e depois providenciar duas carteiras estudantis falsas com um colega especialista nisso; eu respondi que não deixaria de assistir ao Paul se as duas fossem presas no momento de conferir os ingressos na portaria do estádio. E a fiança por estelionato seria muito mais cara que o valor dos bilhetes na íntegra. Ela desistiu.

McCartney tem já seus 70 anos e eu nunca o vi nem nunca o verei mais. Quatro dias antes do show aconteceu isso. Meu primo Gustavo, 33 anos, um dos parentes da família pelo lado da minha mãe de quem mais gosto, caiu de uma altura de oito metros do monumento público mais recente e cartão postal de Goiânia. O acidente foi às cinco horas da manhã de quinta feira. Ele teve múltiplos traumatismos cranianos, e uma fratura exposta do fêmur. Assim que levado ao hospital, passou por uma cirurgia de seis horas na cabeça. Está em coma, respirando por aparelhos, e o último boletim médico deixa claro que só um milagre poderia salvá-lo. Meus tios, os pais dele, estão em estado de choque. Esses tios me criaram por um bom período da minha infância e juventude. Foram eles que providenciaram os melhores médicos quando mais precisávamos. Eles que são o esteio da bem-aventurança da família. Estão ali prontificados sempre que precisamos. Uma vez a Dani perdeu o ônibus de volta para casa, à noite, e quem me veio na cabeça para ir buscá-la foram eles. Esse tipo de gente que toda família tem como um símbolo inevitável, mesmo as piores famílias.

O que aconteceu com o Gustavo, na apuração das gravações das câmeras do posto de gasolina e das lojas próximas que foram requisitadas pela investigação, parece ter sido o seguinte: o monumento urbano por sobre o viaduto, onde aconteceu a fatalidade, leva o nome de um antigo coronel de Goiás, que, como é de praxe com as grandes pestes, parece ser eterno e imortal, pois concorrerá ao senado ano que vem e sua vitória é incontestável; o monumento (duas torres pontiagudas muito altas, inclinadas uma sobre a outra como duas espadas, uma "arte" de péssimo gosto) é sobre as duas pistas da mais movimentada avenida da cidade, que passam numa curva côncava entre os paredões laterais onde, acima, está a rua onde Gustavo estava. No momento, um acidente de carro na avenida de baixo havia chamado a atenção do Gustavo, que pegou o celular para, o que tudo indica, chamar auxílio policial. Gustavo escorou o corpo no ironicamente chamado "guarda-corpo", o para-peito ou corrimão, do viaduto, e o "guarda-corpo" cedeu com ele, e ele caiu os 8 metros. O "guarda-corpo" de um viaduto construído recentemente, coisa de cinco anos, que é o cartão-postal mais difundido da cidade; um viaduto sobre o qual já caíram acusações anteriores de superfaturamento, devido aos tantos pequenos desabamentos de sua estrutura feita com materiais de baixa qualidade. A prefeitura da cidade está sob o domínio de um partido, o governo do estado sob o domínio de outro partido, e o herói do atraso homenageado com o monumento do viaduto de outro partido. Os três maiores e mais poderosos partidos do país juntaram-se ali para cometerem a tentativa de assassinato contra Gustavo. Dessas coisas que trazem intrusões de percepção sobre a triste história de nosso paisinho, de nosso povinho, de nosso retardo intelectual. (Pessoas como Bolívar e Naipaul já tem a certeza que não se trata de um mero retardo intelectual, mas algo mais incorrigível: um retardo espiritual.)

Não tinha como ir ao show do Paul McCartney, quando meus tios estão num estágio psicológico tão lastimável, quando meu primo está no coma, com novos quadros surgidos como acrescências bizarras à sua condição de saúde: ontem foi anunciado que ele está com pneumonia, e uma diabete insípida. Faz parte do ritual de iniciação na família que meu tio Pedrinho, o pai do Gustavo, conte da vez em que eu, com oito anos, subi no sofá onde ele estava desmaiado, coloquei um pé de um lado e outro pé do outro de seu corpo, baixei meu calção e urinei na boca dele. Eu mirei o jato de urina bem no centro da boca dele. Foi a única vez que ele procurou me pegar para me dar uma sova, mas minha tia Tânia me protegeu. Ninguém nunca soube, pois eu nunca contei para não estragar a graça do causo, que fora a tia Tânia que me deu a ideia e me provocou a fazer isso. Tio Pedrinho era alcoólatra, e a tia Tânia dessas mulheres bravas mas imensamente compreensivas, mesmo com o rolo de macarrão bordoando sobre o lombo do meu tio. Eu vivia com eles, eu era o filho estepe e eles meus pais estepes. Uma noite, quando chegávamos de uma pizzaria, havia um caixote de papel pardo de frente à porta. Era o Gustavo, com seis meses de idade, envolvido com fronhas, cobertores, uma malinha de roupas do lado, e um bilhete por sobre a mala. Alguém sem condições pedia a eles, que por anos tentaram sem sucesso ter filhos, para criarem o bebê. Um bebê negro. Eu estava lá nessa noite e eu vi. Depois de cinco anos, eles conseguiram ter uma filha por contra própria, mas, assim-assim, todos percebiam que o Gustavo tinha o amor especial, um amor de dissidentes. O tio Pedrinho parara de beber quando viu o bebê no caixote.

O mandatário do estado soltou uma nota na imprensa oficial (lê-se: toda a imprensa do estado), parabenizando o povo goiano por ter se comportado bem no show do Paul McCartney. Me pareceu algo no estilo: "obrigado por terem se controlado e estado no nível de recepção requerido a um músico britânico; obrigado por, contra todos os temores, não terem sido bárbaros e jecas ao menos naquela noite". O tipo de coisa que o dono do povo, que faz o que quer com ele, diz, por saber que faz o que quer por tal povo ser um tanto bestializado. 

10 comentários:

  1. Por vezes somos surpreendidos em nossos planos... Esse reconhecimento de nossa fragilidade vem me acompanhando a tempos e, diante do imponderável, tenho me entregado conscientemente aos cuidados da Graça, ainda mais sabendo que pactuando direta ou indiretamente com esse estado de coisas, o sempre presente receio do movimento coerente e seu resultado desaparece, surgindo um nova atmosfera de confiança e esperança.

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    1. Minha esposa mostrou pelo facebook agora que o Gustavo abriu os olhos, apertou a mão da irmã, e sorriu...

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    2. Notícia boa, Charlles. Às vezes um pouco de esperança é tudo o que a gente tem.

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    3. Meu Deus, cara. Tanta coisa dita e tanta a se dizer, situações e dores que tentamos entender e expiar...
      Sempre desejando tudo de bom para vocês todos.

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  2. Fico na torcida também. Um abraço.

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    1. Eu não acreditaria, arbo, mas o Gustavo abriu os olhos, está consciente, e conversando. Estou muitíssimo feliz por isso.

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  3. Acabei de ler um "bate-boca"seu sobre o Carlinhos Brown .....virei sua fã !!!!!

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