sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Aqueles Estúpidos 4 Metros



Ontem li um maravilhoso artigo de David Foster Wallace, intitulado Pense na Lagosta, e publicado na edição deste mês da revista Piauí. Conheço pouquíssimo de Wallace _ o quanto, apenas, o mercado editorial nacional permite conhecer, por enquanto _, mas o suficiente para ceder ao seu inevitável carisma, à sua voz deslocada de jovem precocemente envelhecido que suporta bem e lucidamente as emanações de uma verdade senciente quase secreta, quase indeterminada, mas que lhe permite ver claro demais a grande intrusão da barbárie e da burrice que se fez no núcleo do se portar humano. Wallace tem esse talento dos grandes xamãs da escrita em revelar o alienismo institucionalizado e aceito sem previsões e auto-críticas nas trivialidades de uma espécie que vem descartando o poder das altas intuições para se refestelar no óbvio babilônico. Seus textos falam de um Homem com o qual o constrangimento diante sua ausência legitimada no mundo o faz o mais inerte  dos seres, com sua pura existência protocolar, sua ira, sua festividade tribal incontornável, sua desfaçatez autóctone e robótica dirigida por uma gratuidade sem drama e sem o mais relativo ou eufemístico dos méritos. Cada vez que eu estou em meu carro, parado ao longo de uma extensa fila de congestionamento, à espera, e vejo algum outro carro acelerando brutalmente e ultrapassando uma migalha de asfalto à frente, penso na frase de Wallace em um discurso que se tornou famoso por ser quase seu canto de despedida, penso naqueles estúpidos 4 metros que meu parceiro de espécie, instalado em seu veículo automotivo poluente, em seu cotidiano insípido imposto por uma pressa estúpida atrás de propósitos ainda mais estúpidos, julga ganhar como vantagem em uma tripa de 20 quilômetros de carros imóveis. Todo dia que tenho que enfrentar o trânsito de uma grande cidade, ou mesmo da pequena e agora não tão pacífica cidade interiorana onde moro, acontece de alguém furar a fila de carros e avançar seus estúpidos 4 metros à frente, me fazendo lembrar automaticamente da vacina de Wallace, de seu engolir em seco e sua súbita prostração. Sabemos que Wallace, afinal, não tolerou bem, não suportou o peso de todo seu gigantesco estoicismo; sua enorme energia verbal, a grande alegria que transparece em seu texto pelo pensar e pela dissuasão, repete a febrilidade extasiante de todo suicida que repudia o suicídio e diz que viverá até o fim, até a idade avançada e a cama na UTI; repete o hinário de Maiacóvski em dizer que o verdadeiro desafio é a vida e as desgraças que se colam a ela. Difícil mesmo acreditar que Wallace se privou do inferno para o qual estava tão bem preparado, tão vantajosamente municiado em relação à maioria das outras pessoas que se contenta como o cão que persegue o automóvel em movimento mas quando esse para ele não sabe o que fazer (os estúpidos 4 metros). Neste texto da Piauí, escrito, olhem só, para uma revista de gastronomia, Wallace expõe de maneira épica a carnificina da Festa da Lagosta do Maine, a crueldade da fervura da lagosta viva, que tenta escapar pelas bordas da panela e que o cozinhante tem que se esconder na sala até que o animal esteja morto, tamanho a carga de sofrimento que a lagosta revela e que retóricas e concepções relativizantes da dor em sistemas neurológicos primitivos não consegue acobertar. Deste texto retiro  o excerto abaixo, bem condizente à expectativa das matanças que as estatísticas dos feriadões inevitavelmente reportará na segunda-feira.

"Minha experiência pessoal não é a de que viajar pelo país seja relaxante ou amplie os horizontes, ou de que mudanças radicais de lugar e contexto tenham um efeito salutar, mas sim de que o turismo intranacional é radicalmente constritivo e humilhante da pior forma _ hostil à minha fantasia de ser um indivíduo genuíno, de viver de algum modo fora e acima de todo o resto. Ser um turista massificado, para mim, é se tornar um puro americano contemporâneo: alheio, ignorante, ávido por algo que nunca poderá ter, frustrado de um modo que nunca poderá admitir. É macular, através de pura ontologia, a própria imaculabilidade que se foi experimentar. É se impor sobre lugares que, em todas as formas não econômicas, seriam melhores sem a sua presença. É confrontar, em filas e engarrafamentos, transação após transação, uma dimensão de si mesmo tão inescapável quanto dolorosa: na condição de turista você se torna economicamente significativo mas existencialmente detestável."

18 comentários:

  1. An Open Letter to Wikipedia
    by Philip Roth

    http://www.newyorker.com/online/blogs/books/2012/09/an-open-letter-to-wikipedia.html#ixzz25qSA6HD2

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    1. Matheus, li em certa edição da revista EntreLivros um texto do Umberto Eco falando sobre a wikipédia. Eco procurou pelo verbete de seu nome e apareceu a foto do Sean Connery, daí dá para concordar com a réplica de Roth.

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    2. "I recently petitioned Wikipedia to delete this misstatement, along with two others, my interlocutor was told by the “English Wikipedia Administrator”—in a letter dated August 25th and addressed to my interlocutor—that I, Roth, was not a credible source: “I understand your point that the author is the greatest authority on their own work,” writes the Wikipedia Administrator—“but we require secondary sources.”"

      Hahahahahahaha

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  2. Ok, mas a crueldade inerente a toda morte de qualquer animal não me fará de forma alguma um vegetariano; para sermos humanos, temos que baixar nossa bola e reconhecer que nossa vida não prescinde de um certo grau de violência; o que temos que fazer é não virar nossos fornos a armas contra outros sereshumanos, e tentar nos alimentar da melhor maneira possível sem torturar animais - mas isso é infelizmente muito difícil, e um veterinário sabe disso mais que os outros, certamente. Um veterinário que, pelo que saiba, não é vegetariano.

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    1. Não sou, apesar de ter me abdicado de comer alguns animais, lagosta e suínos inclusos.

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    2. Leia o artigo referido acima do Foster Wallace e você nunca mais come lagosta. Aliás, não me foi difícil pois não gostei da única e última vez que comi.

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    3. Estou nos peixes e galináceos. Carne de gado somente nos churrascos, quando o frango não está lá essas coisas. Ovelha eu passo. E porco tenho NOJO e PENA.

      Tenho parentes que criam esses animais todos. Ouvir o porco berrando, à kms de distância, chegando na fazenda para 15 dias de férias, é de assustar e querer ir embora logo.

      Entretanto, matar frango para mim não é problema, já o fiz, inclusive. Acho que por ser um animal menos "consciente" (e porque um galo metido me atacou quando criança. FDP!)

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  3. se tiver o texto (pense na lagosta), charlles, agradeceria.
    arbomenna@gmail.com

    na piauí tá só para assinantes.
    tinha q ver até pra assinar isso aí, já me disseram q era barato.

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    1. arbo, eu tenho a revista impressa aqui. O site costuma disponibilizar o conteúdo no mês seguinte, para não prejudicar as vendas. Vou ver se consigo escanear o artigo e te passo pelo email. Não sou bom nisso, mas vou tentar.

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    2. opa, se for muita mão, espero ué. estranhei mesmo, sempre abri todos os artigos...
      sonhei contigo noite passada. mas não lembro muito dos meus sonhos. era a primeira vez q nos víamos. lembro de flashs. teu cachorro. a casa dos meus avós; tu, o vizinho. eu com vergonha de "só agora me apresentar". parte de minha família. uma viagem sendo programada. apertamos a mão. tu dezenas de metros mais alto q eu.
      que freud não esteja nos vendo.

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    3. arbo, o formato da revista é grande para a minha impressora. Mas achei o artigo original, em inglês, de Wallace. Está aqui:

      http://www.gourmet.com/magazine/2000s/2004/08/consider_the_lobster

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    4. Hahahaha. Maravilha! Talvez te vendo pessoalmente me desfaça a crença de que você é um sósia do Antônio Bandeiras.

      Vê lá se o artigo em inglês te satisfaz. Se não, me empenho em escanear as folhas dobradas mesmo e te envio.

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    5. longe do bandeiras. mas em a pele q habito, de q não gostei, aliás, fica claro q ele é um nanico. talvez abaixo do meu 1,73.

      esse inglês tá tranquilo, é um artigo curto! obrigado!

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  4. e só queria ler o texto antes de comentar pq, afinal, eu poderia ser injusto no meu comentário. mas ele é inocente:
    o problema com a lagosta, como com os outros animais, é o modo com q são servidos/mortos ou confinados antes da morte, não? ou tem algo mais aí.
    não sou mto de frutos do mar, então sempre passo, mas não vejo problema em comer lagosta - ou estou por fora e não é possível dá-la uma morte "digna" (no sentido de "o mais rápida, indolor até q esteja no meu prato"). por que não come suíno?
    eu sou um comedor "fervoroso" de carnes. apenas torço para q tenham morrido sem crueldade. sim, minha torcida é minha ignorância. gostaria de poder escolher, conhecer mais - mas fico com o mais fácil, acredito nos selos e certificados e provavelmente invento o significado deles.

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    1. Fica aqui também uma resposta ao Matheus:

      a crueldade em abates de animais é frequente. No frigorífico onde trabalho, e nos demais frigoríficos de grande porte, esse sofrimento do animal é reduzido ao máximo. A morte é realizada por uma grande pistola industrial, cuja ponta é colocada na região da testa, e da qual parte um cilindro que perfura o cérebro: morte instantânea. Em outros frigoríficos, usa-se pistolas a vácuo: para suínos, carneiros, etc. Mas a ingerência, a pressa, ou a busca do lucro desmedido, muitas vezes coloca essas medidas na berlinda. E o sistema de fiscalização, tanto estadual quanto federal, deixa muito a desejar. A verdade, mesmo, é que eu como carne vermelha, ainda não consegui prescindir dela, mas controle meu estômago. Não é saudável dizer isso assim, e o assunto é profundo e inexaurível. E fico desmotivado em ir além. O gado BEM morto nesses frigoríficos sofrem, por compensação, no transporte, na descarga, nos currais de espera, na fazenda onde são criados.

      A lagosta e outros animais que geram pratos mais caros sofrem de maneira desumana, brutal. Acho que é de conhecimento geral que certo patê de fígado de ganço, muito apreciado pelo gosto requintado de restaurantes franceses, é produzido após a indução de cirrose na ave. E a lagosta é cozinhada viva, para preservar a frescura da carne até o último momento.

      Sério: não é condizente com a pretensão de vida mental que nos alimentemos de outros animais. Mas não há outra solução para o caso, aparentemente. Adorno relacionou a crueldade dos campos de concentração nazistas com a propensão de nossa espécie a construir matadouros de animais.

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    2. Errata: ganso. (Escrevo muito mal a ortografia, de maneiras que se ficasse a fazer erratas a coisa seria inviável. Mas corrijo esta por consciência profissional.)

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    3. O Luiz vive querendo comprar um aquário e eu digo pra ele que tudo bem, mas que ele esteja consciente que em poucas semanas eu acabaria parando de comer carne de peixe e frutos do mar, que são as únicas que ainda me restam. Vi na TV uma pesca de camarões, e eles são jogados direto no gelo assim que se chega na costa, para conservar e matar ao mesmo tempo. Morri de pena. Reportagens sobre a inteligência do polvo me fizeram parar de comê-lo, subitamente. E, nossa, eu amava carne de polvo!

      Eu acho que nosso problema (o meu, pelo menos) com consumo de alguns animais está intimamente ligado à nossa distância deles. Basta ver o horror à idéia de comer cachorro. Quando li as descrições que Guimarães Rosa faz de gado - tão inteligentes e diferentes entre si, com tantas idiossincrasias, alguns com comoventes exemplos de fidelidade - dei graças a deus por não comer esse tipo de carne faz tempo.

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