quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Retalhos

Discussão no trabalho sobre a inevitabilidade da televisão e eu não sei por que cargas d`agua participo. Ainda mais que foi motivada por uma observação despretensiosa da minha parte, ao anunciar que meus filhos não assistem ao tubo. Como alguém que tivesse confessado inconscientemente um crime abominável, a série de acusações veladas de elitismo tolo e pai propenso ao fracasso se encerra com um chiste nos olhos no qual se revela um ódio concentrado à arrogância da diferença. Por pouco não caem numa dimensão paralela de insinuarem à administração pública o meu afastamento. Fico calado, não sem sentir o peso de um sorriso forçado nos lábios e um absurdo pesar por talvez eu ser mesmo alguém fora da realidade. Quando seus filhos entrarem para a escolinha, não haverá como você impedir isso. Então segue a pedra final do debate já ganho, em que meus colegas relembram entre si seus nostálgicos tempos de infância, seus Jaspions, o Clubinho do Mickey; depois, afirmam a tolice saudável de suas filhas cantarem as músicas de Justin Bieber, de uma delas ter optado por assistir ao show do Luan Santana a uma festa de aniversário, do filho saber de cór as canções dos palhaços Patati Patata, dirigindo os metros de normalidade exclusivamente a mim (mas sem me olharem, o repudiado fariseu por sua atitude de orar ostensivamente em público).

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Passo na feira diante uma amiga que estava na companhia da filha. Aproximo-me de propósito, desde que percebo que ela puxa a menina pelo braço se enfunando no meio da multidão, justamente para evitar cruzarem comigo. Hahhá!! Pulo na frente delas com a subitilidade de um apresentador de palco desses tristes programinhas televisivos locais, ou antigo palhaço gordo e pobre que afinal as tantas chuvas destruíram concomitantemente a lona do circo e sua já abolida alegria sincera, e, com a mão que está livre das sacolas de brócolis e queijo de minas, faço o que minha amiga mais temia e tentava evitar: estico os dedos até o nariz de sua filha e torço-o com uma força calculada, fazendo um som com a boca como o de um esmagar cômico de cartilagens de brinquedo. A menina sorri deliciosamente, segurando o nariz e dizendo um desesperado não! não! não!, assim como sempre fez desde quando tinha sete anos e seu corpo hoje com dez anos não simulava a aceitação de uma puberdade explicitada por sainhas curtas e os primeiros traços de maquiagem no rosto. Um dia antes minha amiga já havia me feito o alerta taxativo: sua filha já menstruava. Minha esposa me olha compadecida, como se eu fosse a única pessoa a quem era vedado a revelação do oráculo de que no futuro teriam de me amarrar a uma árvore e me darem sopinha na boca, e faz reparos aos meus argumentos de que aos dez anos ainda se é criança. A biologia dela diz o oposto, me diz. Mas devemos ser então reacionários à biologia! Ou a biologia pede que sejamos reacionários contra ela para que ela ache o caminho da própria recuperação. Minha esposa sabe que estou certo, mas se firma em seu papel de mediadora. No domingo recebemos visitas e ligamos a tv porque afinal ela parece inevitável, e minhas duas sobrinhas de dez anos riem como garotinhas com segredos ao verem dois dançarinos de tanga no programa de auditório às 4 da tarde. Então as puxo para o chão e faço-lhes cócegas nas barrigas, ou outra brincadeira sem graça e afrontosa, mas que, afortunadamente, elas cedem com sorrisos da mais absoluta pureza e esquecimento.

Estarrecido, escuto um lúcido amigo com longa prática de advogado criminalista sentenciar que ainda veremos o tempo em que um pedófilo será absolvido no tribunal e ressarcido pelo Estado de todos os danos materiais e morais sofridos, com a alegação taxativa de seu advogado de que se a menina já ovulava, quem seríamos nós para decretar que a natureza que a apresentava como sexualmente pronta estaria errada?

                                                                 

12 comentários:

  1. Além de torcer o nariz das crianças, invista no papel carbono, que sumiu dos ambientes domésticos. É mágico: elas desenham de um lado, sai igual em outra folha de papel.

    Fábio Carvalho

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  2. gostei dos retalhos.
    foi quase miltoniano.

    http://sul21.com.br/jornal/2011/10/as-palavras-do-filosofo-zizek-aos-manifestantes-em-nova-york/

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  3. E os rostos sujos de terra, e os joelhos ralados, e a ternura e a delicadeza escancarados, Fábio. Nada da violência extrema imposto às crianças de terem que crescer rapidamente para pegarem seus locais reservados no mercado; deixarem de ser crianças para serem consumidores e brutalmente sexualizadas.

    arbo, que maravilha, não sabia deste texto. Vé lá no original que o Zizek disse paciência mesmo, e não perseverança. Enfim, o Sul 21 está deixando de petismos burros e se tornando efetivamente de esquerda. Recomendo a você a última Le Monde Diplomatique. Há textos soberbos lá sobre a desglobalização e a reação a tudo que está aí.

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  4. pois é, esses dias até nem o encontrei, o petismo burro, num texto do idelber. legal.
    tem sido leitura diária.

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  5. E por falar em televisão estou com um texto do Lacan aqui dos anos 70 sobre o assunto engatilhado para leitura. Acho que a origem do ensaio é de um dos seus Seminários (não é dos Écrits, posto que o mesmo data de 66). O texto foi reproduzido no Yale French Studies, que por sinal é um puta journal que eu desconhecia até pouco. Tô de olho gordo para uma edição especial do journal que trata só de Albert Camus.
    Mas voltando a Lacan, se não me engano a crítica dele à televisão interessantemente desvia um tanto da sociologia negativa de Frankfurt. Ele parece que entende a televisão como substituindo esse que é a matéria constitutiva do nosso mundo simbólico (nossa base constitutiva da linguagem, da cultura e da idéia de Lei) o Nome-do-Pai.
    Enfim, se quiser o artigo estará disponível para pronta entrega no seu e-mail. :)

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  6. Precisa perguntar? Claro que quero.

    Aliás, estou aqui com três livros do Baudrillard. Li o "A Violência do Mundo", que consta um artigo dele e outro de Edgar Morin. Li também o "A Ilusão do Fim", e estou começando o Simulacros. Realmente o cara é muito bom, ainda que eu não tenha a mesma visão sua de uma superioridade distintiva a Bauman.

    Acho que Zizek trata em seu estilo literário de "curtos-circuitos" (ótima imagem apropriada pelo Safatle no pos-fácio a "Bem-Vindo ao Deserto do Real") de alguns posicionamentos de Lacan sobre a mídia, especialmente a televisão, que batem contra as ideias de Frankfurt.

    A propósito, vistes o discurso de Zizek lá em Wall Street?

    (Quando tiver um tempo, Luiz, se não for muito desapropriado da minha parte, gostaria de saber sobre aquele seu curso sobre o judaísmo.)

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  7. First things first. Quem é que pediu tanto rito, meu caro? :) Por favor, pergunte e solicite o que quiser (que eu tentarei responder dentro das minhas limitações).
    O curso não teve muita procura. Foi mal publicizado pelo departamento. Então somos 4, mais Lacan, Benjamin, Freud e Derrida (três judeus e um goym) nos ajudando a ler textos como o É isso um Homem do Primo Levi, o Scroll of Despair do Chaim Kaplan e coisas como a crônica de Solomon Bar Simson sobre o suicídio coletivo de mil judeus Ashkenazi em Mainz, Alemanha, em 1096 por ocasião da ameaça de conversão compulsória dos cruzados. Semana que vêm a gente lê o Voices from the Ashes, do jornalista polonês e sobrevivente do gueto de Warsaw Alexander Donat, trechos da alegoria da Segunda Guerra de Camus (La Peste) e o livro de Jó. O curso vai mais ou menos por aí.
    Você optou por começar Baudrillard pelo mais difícil. (Até hoje não sei se entendo o seu conceito de Hiper-real. Quer dizer, se aparelhos ergomêtricos representam o hiper-real porque são um simulacro do Real, que é a caminhada, o que isso significa em termos metafísicos, é o hiper-real menos real que o Real? Se sim, e minha interpretação vai mais ou menos por aí, por que então o qualificativo hiper?) Mas não tem como não aplaudir o cara - standing ovation - depois de ler Sociedade de Consumo.
    Na minha pobre opinião, e aqui me desculpo com a Caminhante que gosta muito do cara, Bauman não passa de um aspirante a Lyotard. Ou um copycat do Terry Eagleton. Aquilo que ele faz lá não é sociologia não. Não caracterizaria os seus textos nem como sociologia negativa.

    Não vi o Zizek em Wall Street. Memorável?
    Ele acampou com a molecada lá?
    O movimento de Wall Street chegou essa semana em Toronto. Mas passei ontem pelo financial district e não vi ninguém acampado. Saudades dos riots por ocasião do encontro do G12...
    P.s. Passa de novo o e-mail do Faulkner. Acho que o perdi.

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  8. O Zizek em Wall Street foi me passado pelo arbo. O link é esse, que te remete ao link original em inglês:

    http://sul21.com.br/jornal/2011/10/as-palavras-do-filosofo-zizek-aos-manifestantes-em-nova-york/

    Muito interessante os temas das palestras e cursos. Só consigo compreender a baixa repercusão pela falta mesmo de divulgação.

    Talvez te interesse o "Danúbio", do Claudio Magris, um germanista italiano. Passei duas semanas muito envolvido nesse misto de narrativa de viagem com conradianas e borgeanas reflexões sobre a Historia e a imperenidade que o grande rio representa à presença humana. Há partes referentes à visita de Magris a campos de concentração que oferecem ótimos insights sobre O tema; visitas ao sanatório onde morreu Kafka, às casas de Wittgenstein e Heidegger. Um livro muito sério e realmente profundo.

    Um copycat de Terry Eagleton aí tu estás de sacanagem. Mas quem entre os leitores não alimenta os preconceitos mais descabíveis? Até hoje não suporto Proust. (Proust me parece uma figurinha indefesa perto do realmente maravilhoso Céline, o qual estou lendo De Castelo em Castelo com o fascínio de quem descobre os diários não do Diabo, mas de Lúcifer, prenhes de nostalgia celestial.)

    E-mail:

    charllesfaulkner@bol.com.br

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  9. Lembrei daqueles monstruosos concursos de mini-misses nos Estados Unidos. De arrepiar o pêlo.
    Na televisão, eu só assisto futebol: se é para imbecilizar, que seja em mergulho vertical!
    Já o Miguel assistia muito a Discovery Kids, que eu acho um bom canal, com cores estimulantes, formas e tudo mais para crianças em idade pré-escolar. Embora haja exagero de politicamente correto. Eu via o cretino do Jerry provocar o Tom e, depois, tecer armadilhas para ver o gato se estabacar com uma tábua na cara. Via o pernalonga armar as maiores malandragens e se safar. Via o Papa-léguas fazer mil bigornas caírem sobre o pobre coiote. E nem por isso virei assassino ou estelionatário.
    Mas, agora, o Miguel está perdendo o interesse na TV, e se voltando muito mais a seus brinquedos. Sobretudo caminhões e carros.
    Aliás, nada a ver, mas o fluxo de pensamento me levou a um conto do Rubem Fonseca, de que eu gostava muito, chamado Intestino Grosso (livro Feliz Ano Novo). Ali, um escritor que é entrevistado (claramente o próprio RF) afirmava que João e Maria era uma história sórdida sobre duas crianças deixadas para morrer de fome por seus pais, e que aprendem a serem bandidas para sobreviver, mentindo e enganado a bruxa e jogando a velha mulher num caldeirão fervente.
    Olha, eu não acho que se tenha que julgar a obra de um escritor por suas atividades fora da literatura. Mas ler RF escrevendo que Hansel und Grettel é sórdido, sabendo o papel que esse mesmo sujeito teve na construção do Golpe de 64 e na sustentação dos primeiros anos da ditadura, recebendo, em troca um posto de chefão da Light no Rio, sinceramente, me dá nojo.

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  10. Farinatti, por isso que é arrebatador quando se encontra um escritor que, além de sê-lo, também é um homem_ ou, antes de mais nada, é um homem. Daí minha imensa admiração a Canetti, Hobsbawn, Tolstoi.

    Minha crítica é contra a sexualização da criança, feita pela tv. Nenhuma criança jamais vai fazer a correlação do sadismo por detrás das histórias do Tom e Jerry e dos contos de fada, mas as imposições da indústria para que ela consuma exorbitantemente a bestializa, a pressiona a ser um adulto precoce.

    Nunca gostei do Fonseca. Li os livros de contos dele, o Agosto e o A Grande Arte, mas nada ali me convenceu. Violência gratuita, sem eco artístico nenhum. E seus romances ou são arquétipos da mais diluida "história por detrás da história oficial brasileira", ou cansativos compêndios de seus gostos enólogos.

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  11. Charlles,

    Que puta oversight. Aquele artigo do Lacan chamado Television não parece tratar um puto sobre a televisão. Fui vencido por uma alusão que Lacan faz num de seus seminários ao Nome-do-Pai e a mídia. Mas achei aqui dois artigos dele no Yale French Studies de interesse literário. Um sobre o conto Purloined Letter do E. A. Poe e outro sobre Hamlet. Vou enviá-los para ti.
    Ah, e me diga aí. Não gostas do Terry Eagleton?

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  12. Não tenho nada contra o Eagleton, a não ser uma má impressão provavelmente truncada de alguns textos esparsos lidos na faculdade, à época em que escrevi uma monografia na área de História e Literatura. Achei-o pedante, o que não acho que tal se aplique ao Bauman.

    Aguardando.

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