segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Voltando a Ler Céline

Há dois dias estou me afundando na leitura de De Castelo em Castelo, de Louis-Ferdinand Céline. Fazia bem uns cinco anos desde a última incursão minha ao universo idiossincratissíssimo desse autor francês, quando li o ilimitado Viagem ao Fim da Noite. Em Castelo, o seu estilo cheio de reticências, cheio de exclamações, cheio de marginalidade coloquial, é levado ao extremo. Uma página lida em separado dá a impressão de algo retirado de uma caderneta de um chefe de gangue adolescente, ou dos desabafos de um verdureiro. Foi uma surpresa ver o quanto ele levou adiante a linguagem conceitualmente revolucionária de Viagem até esse nível avançado, e, nas primeiras páginas não escondi uma certa decepção. Viagem é um dos melhores livros que já li, um dos mais verdadeiros, enfurecidos, sublimes, arrebatadores. Só quem o leu sabe que não há um pingo de exagero nesses elogios. Não conheço ninguém que o tenha lido por inteiro que não compartilhe dessa veneração desavergonhada (há os que leram as primeiras cem páginas apenas e saem por aí maldizendo-o). Recordo que o capítulo em que o narrador alter-ego de Céline percebe, em sua viagem  ao exílio para uma província além-mar, que a tripulação do navio armou um esquema para matá-lo, são as páginas mais engraçadas que já li. Sofri convulsões de riso diante a paranóia auto-depreciativa e a consciência da desgraça que são duas das qualidades valiosas que Céline trouxe para as letras do século passado.

O humor de Céline é um dos componentes formadores do grande paradoxo circundando a imagem desse que é o mais maldito dos escritores, e serve para dividir os que leram Céline dos que apenas leram sobre Céline. Os que leram sobre Céline tem o suficiente para se saírem bem numa conversa de "alto nível", são os que vão cair nos caminhos já exaustivamente trilhados de que é o autor dos três panfletos pérfidos defendendo a execução sistemática de judeus, o Bagatelles pour un massacre (1937), o L'École de cadavres (1938), o Les Beaux Draps (1941); que terão de se sair no auge da diplomacia da visão artística distanciada em considerarem que apesar disso, foi um dos escritores realmente indispensáveis do século XX ao escrever o Viagem; que mesmo autores judeus não escondem a apreciação de suas obras; que foi dele que saiu a geração beat, os minúsculos repetidores do calibre de Henry Miller e Burroughs, etc, etc. Já os que leram Céline tem o privilégio de reforçar por este lado a certeza dos esquemas obtusos dos academicismos literários e os rasos padrões de esteriótipos construídos para isolar um criador dentro de seu nicho burocrático de compreensão. Começa-se por se perguntar como um romancista tão libertário (nas palavras de um de seus ardentes admiradores, Philip Roth) pode ser julgado apenas pela convenção preguiçosa de ser um monstro moral; como um narrador que tem o potêncial único de nos limpar a alma através do riso desmedido_ não o risinho enrustido, mas a gargalhada enfática do Viagem_ é visto pelos manuais institucionalizados das universidades como um escritor que deve ser lido com cautela, com as antenas arriadas típica do contato com tratadistas do massacre, e não como um humorista soberbo do nível de Rabelais e Sterne.

Nesse sentido eu faria côro a Roger Nimier quando escreveu o artigo Dêem a Céline o prêmio Nobel, em 1956, quando o nome de Céline já era sinônimo por toda a Europa de colaboracionista traidor e antissemita. Claro que não se pode ignorar o imenso estigma do apoio de Céline aos alemães, de sua acirrada proximidade ao marechal Pétain a ao governo de Vichy, de seu pedantismo fronteriço de se apegar ao nazismo de maneira mais torpe e sem nem a relativizante razão de retorno a um Estado moralizador forte de Knut Hamsun e Ezra Pound. Numa olhada rápida e descomprometida, Céline realmente foi um monstro. Mas essa é a palavra-chave: descomprometida. Quando se lê Céline, o leitor perde o conforto da imparcialidade, é obrigado brutalmente a ver o que está abaixo da planificação do jogo de ideias que prevaleceu no século passado por ocasião das guerras, do nazismo, da Shoá, da formação hipócrita do politicamente correto daqueles que foram aceitos como heróis ao escamotearem seus pecados com astúcia. Céline, o médico que, segundo suas nada eufemísticas descrições da própria miséria, não era respeitado pelos vizinhos não por ser acusado de oferecer aos alemães os pontos estratégicos de passagem pela linha Maginot, mas por não ter um carro, indo visitar sua parca clientela a pé, não ter um terno decente, levar seu próprio lixo para a calçada, não ter uma empregada, é o escritor desabnegado intrínseco, o verdadeiro homem das letras, o verdadeiro visitante das zonas de sombra, o que levou a escrita a níveis mais distantes de lucidez que foi preciso seu próprio sacrifício, o seu próprio massacre. É justo por ser o Céline público um monstro que o Céline criador é o mais valioso dos escritores, o mais soberbo.


Por isso a certa decepção que tive nas primeiras páginas de Castelo. Não há mais o humor anárquico e incapaz de constrangimento de Viagem, aquele riso inédito que não comporta nenhum pudor. Céline mesmo afirma isso no eterno lamento de sua miséria quando diz que o folclórico editor Gallimard (por ele chamado execravelmente de Achille) lhe cobrava mais romances engraçados, aos quais agora sua percepção do mundo não poderia dar. Castelo é uma obra anti-Tolstoi, no tocante a negar que a importância da poesia para a obtenção da verdade não existe. Para leitores não iniciados podem parecer tediosas as páginas iniciais em que Céline sublima o enredo para cair numa lamúria interminável, mas quando se entra nas cenas tocantes e terríveis do seu refúgio junto com a cúpula colaboracionista no castelo de Sigmaringen, mesmo a aparente gratuidade dessas páginas ganha um valor de contexto: o propósito exorcizante da poesia sui generis do autor em destruir todas as convenções da escrita e do pensamento corporificado, sua catarse em mostrar que a escrita foi a única coisa lhe destinada em vida, e daí o desbalde, a liberdade, o excesso. A poesia de Céline é indissociável à sua escrita, está em seu coloquialismo, em seus xingamentos, vai se tornando grandiosa em seu prosaísmo desconcertante, até o ponto em que ele desnuda a própria tradição literária como um estupidificante burguês, com uma eficiência talvez superior a Joyce. Céline mostra que não há nenhuma diferença moral entre ele e Sartre (um de seus mais ferozes condenadores_ citado no livro pela corruptela de Tartre), e tantos outros autores alavancados pelo mérito da aceitação pública e premiação acadêmica por meras manipulações geográficas e políticas (Céline escreve que se tivesse aceito o convite da União Soviética para morar na Rússia, à época do Viagem, estariam lhe dando o Nobel e estátuas no pátio das universidades em vez de querendo matá-lo).

A miséria, a negação como médico a aceitar o pagamento dos famélicos pacientes às consultas, a  desgraça completa que indicava prematuramente o esquecimento público, servem à sua escrita como a crença na transcendência da alma serve aos religiosos, através dessa libertação a qualquer impostura em que emparelha todos no mesmo nível de abjeção e ódio, de culpa e hipocrisia; as descrições da miséria absoluta tanto física quanto espiritual do após guerra e da perseguição dos escolhidos como culpados pela História (entre estes, ele), inauguram uma nova escola da expressão, a qual não se pode sinonimizar como dantesca, apesar de ter a força equivalente. O que Céline escreve é celiniano, ele tem a vantagem rara de ser um fundador. Dele veio tanto os animaizinhos magros como Henry Miller, esse poltrão cínico que deve tudo a seu mestre, os mornos do primeiro andar como Salinger, os influenciados renitentes como Sartre, e os realmente fabulosos como Thomas Bernhard. Céline explora o mal incorporado à visão dos derrotados e dos previamente condenados do século passado. Ele não pede desculpas por nada, não tenta se explicar por nada, explicar-se a um defensor do assassino Mao como Sartre?, do militante das fileiras da grande genocida igreja católica como Mauriac?, aos gordos de bundas flácidas e papadas que semeam um câncer no cu e angiomas fatais no peito, como ele descreve os banqueiros e magnatas diretamente responsáveis por milhões de vidas chacinadas e que são os senhores da guerra? Quando fala dos panfletos antissemitas, chega a rememorar uma antiga senhora judia rica que o humilhou sobejamente, a ele e a seu pai, quando era criança, o que me fez recordar as razões do mal implantados no peito de Thomas Sutpen. Faço minhas as palavras de Philip Roth: na França, meu Proust é Céline. 










16 comentários:

  1. Divido contigo a profunda admiração por este grande autor. Coincidência ou não, umas das páginas mais engraçadas que já li é uma cena tb passada em um navio durante Morte à Crédito. Reli tantas vezes que sei: está lá entre as páginoas 298 e 303 na edição da Nova Fronteira.

    Excelente post!

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  2. Engraçado, Milton, que fui levado até ele através de escritores judeus: Bellow o achava genial, "como escrevia excepcionalmente bem", diz na biografia de Allan Bloom. E Roth...

    Se não leu o Viagem, leia. Prazer de primeira qualidade. Talvez seja a mesma cena, reescrita. Vou encomendar pela estante virtual o Morte a Crédito ainda hoje. Pô, quase tudo de Céline tá esgotado. (O Viagem foi, FINALMENTE, reeditado pela Cia das Letras, numa edição de bolso bastante em conta.)

    Abraço.

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  3. Como complemento à reflexão desse post, creio que o texto,
    http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/literatura-engajada-433766.shtml,

    mereça ser lido.

    Estamos aqui diante da infindável discussão: o que é concretamente importante o autor ou a sua obra? É possível a separação entre o autor e a sua obra?

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  4. Para mim, as questões acima são complexas. Creio que deva ser analisado caso a caso, pois se não for assim, no seio da história da arte sobrariam pouquíssimos gatos pingados e, por ironia, não necessariamente seriam os mais brilhantes.

    Um exemplo: faz, aproximadamente 2-3 anos que li a biografia de Caymmi, escrita por sua neta. Pois bem, lá pelas tantas no livro é revelada a grande proximidade havida entre o sonolento baiano e ACM. Inclusive chegaram a viajar juntos, para a Europa, com objetivos culturais(Dorival) e políticos (ACM).

    Alguém, nesse blog, é capaz de negar a genealidade de Caymmi e, por outro lado, a filhadaputagem do inseto baiano?

    Outro caso. Drummond no ministério de Capanema durante a era Vargas.

    Tais exemplos são, para mim, confusos. Como compreender tais coisas? Obviamente não é negando as obras dos mencionados.

    Sinto que faltam livros que tratem profundamente dessas coisas. Certamente, tais obras potenciais seriam fonte ao amadurecimento cultural para a nossa gente.

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  5. Olha Charlles,

    Viagem ao Fim da Noite foi uma das experiências literárias mais estupeficantes que tive: a escrita de Céline, sem exageros, me deixava febrilmente extasiado a cada capítulo.


    Abraço,
    Rodrigo

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  6. O que eu disse? O Viagem é uma unanimidade.

    Abraço, Rodrigo.

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  7. Charlles,
    Meu Céline na França é Camus.
    Já há muito tenho projetado ler o Viagem ao Fim da Noite, mas acontece sempre de outros projetos se interporem na frente dele. Mort à crédit em edição Francesa me encara todas as manhãs da estante do escritório.
    Não sei bem se é o flerte do francês com o fascismo que me afasta dele. Mas certamente não ajuda.
    Nesse ponto o luminar de Camus aponta alto. Um sujeito que, além de ter sido uma das mentes mais brilhantes na França do pós-guerra (apesar de ter sido brilhante também antes e durante a guerra), um sujeito que debutou nas letras com resenha para lá de favorável de Jean-Paul Sartre em Les Temps Modernes (sujeito que também foi o responsável por desmascarar a canalha do filósofo). Alguém que acima de tudo foi força ativa na Resistência Francesa ao Vichy tanto com labor intelectual (foi editor do libelo anti-Vichy e revista que agregou tanto esquerda quanto direita na Resistência, a Combat) quanto no combate concreto aos "humores secretados purgados da terra que servia de estrado para as casas de milhares de Parisienses" e ao exército de ratos que tomou as ruas de Paris em 194-.

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  8. Só o título Viagem ao Fim da noite, já é um espetáculo. Preciso ler este autor. Tua propaganda se soma a do Milton. Às vezes é preciso se deslocar das zonas de conforto da leitura.
    Abraço

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  9. Luiz, costumo, em meus ataques de ranzizês, dizer que os únicos escritores da lingua francesa que leio são Stendhal e Camus. Não tenho muito apreço aos outros. Acho que gostarias de ler o ensaio do Judt sobre Camus em Reflexões Sobre um Século Esquecido_ apesar de você não se simpatizar com Judt, ele tem mérito de ter arejado o interesse atual pelo argelino. Camus é um dos meus escritores fundamentais, há muito dele na minha visão de mundo, em minhas pelejas morais, até mesmo em meu cristianismo. Um dia falo sobre isso, falo como A Peste me mostrou o caminho de um cristianismo combativo e desapegado, partindo da magnífica posição de cristãos sem deus dos personagens principais desse romance.

    Mas o que mais me fascina na obra de Camus é a coleção de contos O Exílio e o Reino. Apesar de ser tido como uma das obras menores de Camus, cada conto desse volume tem um peso considerável sobre mim (ia escrevendo "sobre minha alma"; deveria ter escrito, para contradizer certa tendência a me policiar de hipocrisias românticas). E, o diário de viagem em que ele vê os intelectuais brasileiros como uma corja voluptuosa de insensatos (apesar de excessivamente cruel), também me atrai muito. Ainda tenho que escrever sobre Camus aqui, com mais vagar.

    Mas a importância e o valor de Céline não pode ser relativizado usando-se a figura de Camus. Não serve nem a um, nem a outro. Li tudo que saiu de Camus por aqui, tenho até três volumes dos Carnets, mas não me recordo de ler a posição de Camus em relação a Céline. São dois grandes autores, grandissíssimos. Só que Céline é o tipo que deve-se ter a sorte de ser bem iniciado, para gostar. Eu recomendo que se leia, primeiramente, o Viagem. Esse é sui-generis em toda a obra de Céline, o menos radical. Acabei de ler De Castelo em Castelo, adorei, um puta livro, mas tudo nele é radical, ilimitado.

    Camus não tem máculas em sua biografia. Igual a ele, em idoineidade, só conheço Canetti.

    A leitura de Céline já nos educa a andar pelo mal e não resistir a ele, não por acaso, um dos preceitos do Evangèlio.

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  10. Nikelen, acho que você adoraria o Viagem. Pela vocação sua e do Farinatti pelo humor, vocês adorariam.

    Grande abraço.

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  11. Ah, sim. Já ouvi falar muito do apreço de Judt por Camus. A Edição mais recente da Penguin de La Peste traz a apresentação de Judt do contexto pós-guerra da novela. Bela introdução. Essa semana mesmo encontrei na loja virtual do Kindle o Past Imperfect: French Intellectuals, 1944-57, que me parece funciona como uma hagiografia a Camus.
    Soou como tanto, mas esse não era o intento do meu comentário. A santificação do Argelino e a danação de Céline. Aliás, nada mais avesso ao sentimento de Camus, que rechaçava o heroísmo e a santidade por crer que esses são o primeiro refúgio do hipócrita.
    Aliás, uma confissão. (Confissão que de secreto nada tem, posto que já foi dito por tantos outros). Camus nem me parece escrever tão bem assim. Na França mesmo aponto um dez escritores que se sobressaem no domínio da distribuição da palavra certa, da cadência, do uso do clímax e do anti-clímax, etc.
    Judt, me parece, enaltece a obra de Camus por ele ter resgatado o "moraliste" da tradição que passa por Motaigne e Voltaire. Pode ser.
    A genialidade de Camus para mim está no seu domínio da metáfora (embora tenha sido canonizado como alegorista) e na exatidão com que a figura na sua obra é transposição para a arte da mais dura manifestação da vida. E claro, foi acima de tudo um puta ensaísta. Talvez um dos maiores. Que o diga Mito de Sísifo.
    Gostei muito do Exílio e o Reino, mas não me recordo muito do livro (testamento seja da minha memória que vai de mal a pior ou do fato de que as estórias de Camus muitas vezes não são marcantes. Ele certamente não foi um contador de estórias, no melhor sentido da palavra). Não é nesse livro que aparece um conto de Camus onde ele relata um encontro fortuito entre um jovem, cheio de vitalidade e eros e uma velha senhora? (Esse conto me impressionou muito quando o li nos meus 18 anos)
    O meu livro favorito de Camus é e sempre vai ser La Chute. A maior teodicéia de um mundo desencantado já tecida.
    Para mim também Camus é a única forma de se permanecer cristão. Foda-se Mauriac, Gustavo Gutiérrez, etc. É preciso ter cojones para encarar a graça negativa que nos é galardeada todos os dias.

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  12. Muitos pontos aí ressaltados e não sei se o Vol.4 do Sabbath e uma garrafa de vinho da promessa a minha esposa de me abster com exceção dos finais de semana me deixarão responder.

    Mude seu conceito quanto ao Judt, cara. A visão dele em relação a Camus não passa por arranjos maniqueístas, ainda que Judt realmente salienta a força moral de Camus, que é incontestável. Judt vê Camus como um prosseguidor de Marco Aurélio (ainda que jamais tenha dito isso: um insight provocado pelo vinho chileno), um estóico, de espírito aristocrático, mas profundamente enraizado no sofrimento plebéico de toda a humanidade. Já que estou iluminado pelo Gato Negro, vou além: sempre guardei intimamente aproximações de Camus a Pedro, o Grande; sempre achei que o momento máximo da vida do grande argelino lhe foi duramente poupado por não lhe oferecer a chance de socorrer uma pessoa comum de se afogar, dar a vida pelo outro. O A Queda não trata justamente disso? Da abnegação, mas dos entraves a ela pelo excesso de esclarecimento, do excesso de teorização que antecede e encerra antecipadamente a ação para a mente racional? Nas primeiras páginas de A Queda, lembro, o narrador afirma que era o tipo que se prontificava a empurrar o carro de um desconhecido quando via a máquina enguiçada.

    Ótimo essa iconoclastia: realmente Camus não foi o melhor dos escritores, ainda que suplante Sartre em muito. Há uma série de textos que falam disso, de que o apego à filosofia o escamoteou de sua verdadeira vocação, que era a poesia, a poesia atmosférica e invocativa no estilo de Seamus Heaney. O próprio Sartre disse que o jovem Camus era Kafka escrevendo como Hemingway_ fantástico acerto!

    Acho que Camus foi precoce, e por isso, como todos os precoces, perdeu-se do próximo passo de grandeza por alguma trivialidade fatal. No caso de Rimbaud, foi o tráfico de diamantes e o repúdio ao caráter não comercial da poesia; no de Hemingway, o açúcar que lhe passarm na boca os bajuladores. No de Camus, foi o acidente de carro que lhe ceifou a vida (para manter minha renitência às expressões dramalhonas).

    Acho que Camus dominava como ninguém a técnica da escrita, mas não teve o tempo necessário de desenvolvimento emotivo_ e espiritual. Morreu com menos de 50, pois imagine esse cara escrevendo aos 50, 60, 80. Seria demais, seria o cara. (Lembre-se que Saramago só existe após os 50; Bellow escreveu Herzog após os 50; Philip Roth, a trilogia americana beirando os 60.) Não vi a crítica aventando esse lado da questão.

    Mas entendo com perfeição o que você diz. Camus foi um puta escritor, mas a própria técnica desenvolvida por ele o limitava. O mesmo para Borges.

    Não lembro de ter lido esse conto por Camus. Fiquei bastante curioso!

    Há muito que ser interpretado do cristianismo de Camus.

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  13. ENCANTADO
    by Ramiro Conceição


    Às vezes,
    ao olhar-me no espelho,
    pergunto-me com terror
    e espanto:

    “Naquela noite,
    em Varsóvia,
    quando cães
    fugiram do inferno,
    de qual lado
    estaria na gritaria,
    naquele gueto?”

    Por instantes… um silêncio.
    Mas eis a pergunta e a resposta:

    E se Poe estiver certo que tudo
    é um sonho dentro dum sonho?

    Então, do atormentado,
    inventar… o encantado.

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  14. Aguardo ansiosamente o post sobre Camus.

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  15. Vou ver se escrevo nesse domingo sobre Camus, Fernanda.

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