Chega o domingo de novo. Ele e Bev Shaw estão concentrados em sua sessão de Lösung. Um a um ele vai trazendo os gatos, depois os cachorros: os velhos, os cegos, os mancos, os aleijados, os mutilados, mas também os jovens, os sãos, todos os que chegaram ao fim de seu período. Um a um, Bev toca, conversa, consola e sacrifica. Depois se afasta e fica olhando enquanto ele encerra os restos numa mortalha de plástico preto.
Ele e Bev não falam. Ele já aprendeu, com ela, a concentrar toda atenção no animal que estão matando, dando-lhe o que não tem mais nenhuma dificuldade de chamar pelo nome correto: amor.
Amarra o último saco e leva até a porta. Vinte e três. Sobrou só um jovem cachorro, aquele que gosta de música, aquele que, com meia chance, já teria enveredado atrás dos companheiros para dentro do prédio da clínica, para dentro da sala de operações com sua mesa de tampo metálico, onde ainda paira a mistura de cheiros intensos, inclusive um que ainda não sentiu na sua vida: o cheiro da expiração, o cheiro macio e breve da alma libertada.
O que o cachorro não entenderá nunca (nem num mês inteiro de domingos!, ele pensa), o que seu focinho nunca lhe dirá, é que se pode entrar em uma sala absolutamente comum e nunca mais sair. Algo acontece naquela sala, algo não mencionável: ali a alma é arrancada do corpo; paira brevemente no ar, se torcendo e contorcendo; depois é sugada para longe e desaparece. Será incompreensível para ele, essa sala que não é uma sala, mas um buraco por onde se escorre para fora da existência.
Vai ficando cada vez mais fácil, Bev Shaw lhe disse uma vez. Mais difícil, mas mais fácil também. A gente se acostuma com as coisas ficando mais difíceis; a gente acaba não se assustando mais quando o que era o mais difícil do difícil fica ainda mais difícil. Ele pode salvar o jovem cachorro, se quiser, deixar para a semana seguinte. Mas chegará a hora, isso não pode ser evitado, em que terá de trazê-lo para Bev Shaw na sala de operações (talvez o traga nos braços, talvez faça isso por ele) e o acariciará, abrindo a pelagem negra para que a agulha penetre na veia, sussurrando para ele, dando-lhe apoio no momento em que, surpreendidas, suas pernas cederão; e então, quando sua alma sair, ele o dobrará e embalará em seu saco, e no dia seguinte o levará para as chamas e cuidará para que seja queimado, eliminado. Fará tudo isso por ele quando chegar ua hora. Será pouco, menos que pouco: nada.
Ele atravessa a sala. “Foi o último?”, Bev Shaw pergunta.
“Tem mais um”.
Abre a porta do compartimento. “Venha”, diz, curva-se, abre os braços. O cachorro arrasta a parte traseira alejada, fareja seu rosto, lambe sua face, seus lábios, sua orelha. Não o detém. “Venha”.
Levando-o no colo como um carneiro, entra na sala de operações. “Achei que ia deixar esse para a semana que vem”, diz Bev Shaw. “Vai desistir dele?”
“É. Vou desistir”.
(Desonra, J. M. Coetzee)
a propósito, charlles. diagnosticou-se leishmaniose num lindo, e novo, Weimaraner da minha sogra (vive num sítio no paraguay). vai ter q sacrificar mesmo, é isso?
ResponderExcluirConforme a evolução dos sintomas, pode-se tratá-lo, arbo. Mas os cuidados são enormes e envolve muita paciência e disciplina, principalmente para não disseminar a doença para outros cães. Infelizmente, a eutanásia é a medida mais adotada. Não sou especialista em pequenos animais. Consulte um veterinário para vê-lo.
ResponderExcluireles consultaram, perguntei de chato hehe
ResponderExcluirparece q é caro, pq de longo prazo tbm, o tratamento, e há o perigo de transmissão pros outros cães (3) e a gente da casa. brabo. me apaixonei por ele no início do ano, o Tommy.
Coisa feia, Arbo, arrancando consulta online do Charlles.
ResponderExcluirhuahauha a caminhante nunca fez isso né.
ResponderExcluirHIPÉRCRITA
lsdklk
Consulta de veterinário com online com o Charlles pode ter certeza de que eu nunca fiz mesmo! (já fiz outras consultas, de outras especialidades, com outras pessoas...):P
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