quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Breviário Bloguístico


Convidaram-me a dar uma palestra em um colégio agrotécnico de uma cidadezinha próxima. Fiz um amigo entre um dos funcionários, um sujeito altíssimo e magro que chega a ser meio acorcundado. Tem um ar de menino prontificado e tímido, apesar de ter lá os seus 25 anos. Fez o curso de História e diz me conhecer de vista de lá, e eu não recordo tê-lo visto em momento algum. Eu havia feito um comentário sobre os mujiques e seus procedimentos de agricultura, lido em Anna Karenina. Na verdade não citei a fonte para uma platéia que pouco teria pra saber quem foi Tostói, mas esse novo amigo me procurou após o término da palestra e me disse ter lido o livro. Fiquei deslumbrado, ainda mais que ele revelara que havia lido os romances principais de Dostoiévski e muito mais. Ontem fui à casa dele, uma residência grande a arejada cuja presença dos pais aumenta mais a impressão de que vive no contínum permanente de sua saudável adolescência. Duas estantes forradas de livros muito bem cuidados, a maioria os volumes promocionais da Martin Clarte. As capas desses livros, como se sabe, são excessivas em cores, e há o arremedo despropositado de sempre aparecerem rostos e corpos de sílfides nas capas que nada tem a ver com Madame Bovary ou a pobre azarada da Lizavéta. Fui tomado por uma reminiscência dos meus anos de Ediouro, cada livro comprado eram semanas de felicidade terrena. Foi um prazer conversar com esse novo amigo, mas me ficou forte a consciência de uma pirâmide de rejeição. Quem lê Dostoiévski e Nietzsche nos originais me veriam como um iniciante, assim como o vi pelas traduções mais fiéis que tenho a oportunidade de ler. Quando íamos nos despedimos, entretanto, tive uma surpresa. Um volume de quase 600 páginas da íntegra de Flores da Relva, lançada pela Marin Claret. O livro soltava fagulhas nas minhas mãos. Tenho três traduções de Whitman, mas nenhuma completa, e eis que descubro ali que a Martin Claret foi a primeira e única editora brasileira que publicou a obra inteira. Na verdade pouco me interessa mesmo a fidelidade das traduções; sou pela teoria de Thomas Bernhard de que há traduções que são melhores que o original; não consigo achar o The Raven melhor que O Corvo que tenho de memória, numa das traduções menos afamadas ("era meia-noite, e eu refletia, a ler doutrina de antiquíssimos manuais"); e não há alegria mais genuína e completa que a que percebo nesse amigo diante sua tarefa de aquisição de esclarecimento, pois a tive em igual proporção dos meus tempos de pocket books de sebo.

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Daí que minha esposa, que vem de uma casta de mulheres centenárias que algumas ainda tem a desfaçatez de morrerem de antiquados acidentes domésticos, me solta a mais perversa das chantagens emocionais, dizendo que eu, entre nós dois, é que tenho uma saúde de ferro, sendo ela a que, em um ano, passou por três cirurgias. "Por isso te peço para parares de tomar vinho", diz, embora a segunda conjugação seja uma licença beletrista da minha parte, e continua, "queres que nossos dois filhos fiquem órfãos, futuramente?". Nada me comove mais e me faz pensar. Que belo elogio truncado, apelar para minha saúde de ferro. Apesar do evidente filisterismo da coisa, empreito-me a deixar o vício do vinho de uma vez por todas. Minha disputa dos últimos cinco anos não é outra que a acirrada batalha para não cair nos inúmeros correlatos sensuais que me levam ao vinho, e que, todo lugar a que se olha em minha vida, eles aparecem, luciferinamente com ar da mais beatífica ingenuidade. Caio com a mesma prontidão das mulheres de pouca vontade que, volta e meia, dividem a cama com os salafrários contra os quais juraram definitivamente nem dirigirem um olhar. Faço uma lista dos itens potencialmente perigosos e sigo a linha do bem com determinação: jamais ouvir Mingus à noite, e sozinho; dar um tempo nas leituras de Omar Khayyam; não assistir comédias românticas com casais quarentões de Nova York (sempre abrem uma garrafa de tinto); evitar firmemente saber qualquer coisa dos costumes franceses, espanhóis e portugueses atuais. Evito, então, os noticiários médicos sobre os benefícios do resveratrol, as conversas com amigos. Fujo, aliviado, para as páginas do magnífico Declínio e Queda do Império Romano, que tem sido um ótimo sucedâneo noturno, mas eis que a prova das intrusões metafísicas se me revela nessa frase que nada me faz duvidar que foi posta ali por um Gibbon diabólico e carregado das mais nefastas intenções: "Aqueles cinco maravilhosos anos em Lausanne eu os passei encharcado de vinho do Porto e preconceitos, entre os monges de Oxford." Haec omnia tibi dabo, si cadenz adoraveris me.


2 comentários:

  1. Sou mais jovem que o Marcos e nós disputamos o mérito de morrer antes do outro. Nem eu nem ele pensamos em sobreviver ao outro, como os irmãos siameses inoperáveis. Não sei se isso é bonito ou expressão de insegurança mútua.

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  2. Na verdade não há nada mais fútil do que pensar na morte. Minha esposa diz isso por questões práticas da urdidura feminina, sabe-se lá quais, talvez econômicas. Mesmo com tantos livros ainda por se ler, por tantos momentos ainda a se passar com os poucos amigos, por tantas gargalhadas e abraços ainda a se dar em meus filhos, sou como o Miles Davis, o meu cão, vivendo numa perenidade inquestionada e infinita.

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