quarta-feira, 22 de outubro de 2014

A terceira sinfonia de Fiódor Dostoiévski



Novamente estou sendo direcionado em um novo caminho na minha vida através da literatura. Minha vida, literal e totalmente, gira em torno da literatura, respira literatura, observa o mundo através da literatura. Meu filtro de contato com toda forma de experiência vem da literatura. Por isso, nada mais natural que a cabala que tece códigos pessoais que me chegam apontando direções através de enigmas tenha como chave giratória o universo da escrita. Essas fagulhas lineares que eu frequentemente encontro atrás dos meus passos mostrando o retorno pelo chão do labirinto, topam com meu destino cotidiano de uma maneira tão presente que já não me causam qualquer espanto. Sempre há um livro que rima com meus dramas pessoais. E cabe agora que esse livro seja, em primeiro plano, Os irmãos Karamazóv. Seria exagero para o olhar alheio eu dizer que parte da angústia atual e recorrente que me cai em cima em relação à existência (e tudo em geral, o que é uma redundância de humor involuntário), foi resolvida pelas 50 páginas que precedem e contemplam O grande inquisidor, e os discursos do padre Zóssima no final do primeiro volume. Essas páginas me trouxeram um imenso alívio e uma terna e insubordinada compreensão. Digo insubordinada porque essas poucas páginas provocaram um misto de certeza e independência (apesar do que nada há de mais distante no propósito de Dostoiévski do que incutir certezas) em mim que me vejo imune a qualquer tratado filosófico ou opinião muito conceituada que pretenda rebatar a verdade destas páginas. Ler Karamazóv aos 17 anos me ajudou apenas a preparar o terreno do interesse quase acidental de relê-lo com a real capacidade de aproveitamento aos 41. Se me limitasse à leitura de quase 25 anos atrás, ainda o acharia o mais chato livro da literatura russa e o que traz os mais irritantes cacoetes de Dostoiévski. (Onde estava com a cabeça e que distração de péssimo leitor me fez ter essa opinião?). 

Pois lendo-o agora, vejo que se trata de um desses livros raros que transcendem os limites fisiológicos do autor, dessas obras de tão arrebatadora independência que antagonizam o mero ser humano que a compôs com a entidade incognoscível que lhe está por detrás. E digo isso não apontando um objeto perfeito: Karamazóv é desconcertantemente imperfeito e frágil como são os outros grandes romances de Dostoiévski. Está um tanto abaixo da eufonia estética de Guerra e paz; carrega um frenetismo que beira o caos onde convivem em tumulto hipóteses de absoluto impacto original sobre a psicologia humana (ou, mais assertivamente, a psicose); filosofias em estágio de delírio sobre a existência e a não existência de Deus; subliminarismos sobre a piedade que revelam uma inquietante personalidade masoquista de quem escreve. E há_ o que me parece revolucionário ainda hoje_, algo que eu não sei definir, uma espécie de pieguismo dostoiveskiano, um descaramento astucioso (diria maquiavélico) em usar e abusar conscientemente dessa fragilidade; uma afirmação constante (e quase exultante) da pobreza do modelo criador em cima do qual o autor escreve. Um livro em que seu criador não demonstra o menor pudor em se revelar por inteiro, em se desfragmentar e se oferecer a um nível de total desinibição em que cada parte de si é um personagem e um cenário. Faz isso de um modo tão obsceno, que é nítido que o caramanchão onde se encontram, no jardim dos fundos abandonado e coberto de hera, Dmitri e Alioscha, é uma projeção do mais recôndito setor do espírito de Dostoiévski. O livro inteiro, com essa extravagante vida diabólica, chega então a se tornar carne nas mãos do leitor. Essa fraqueza, essa pequenez assumida, essa falta de vergonha, esse martírio auto-consentido, tem o poder de certa forma aterrorizante de tornar Dostoiévski fisicamente vivo para o leitor. Como se ele acabasse de escrever o livro; como se sua ressurreição vencesse permanentemente o tempo, e estivesse como um corpo respirante envolto em uma mortalha sentado ao lado da poltrona do leitor. Há algo de espectro lazariano e versão mais pessoalmente urbana de um Virgílio drogomano em Dostoiévski. Como se, por uma lei nova do magnetismo, os fragmentos crus e desavergonhados do autor se colassem aos fragmentos do leitor, e com isso jogasse tudo à visão denunciatória por cima da mesa da feira, aos olhos de todos (aos terríveis e cruéis olhos de toda a plebe). Dostoiévski parece sempre um escritor insuficiente, alguém sem talento para a escrita, alguém insuficientemente armado para a arte, mas que, em desespero de morte, transforma sua puerilidade em um arrebatamento do estágio final de tudo que sente e pensa, sem concessões à gratuidade. Como se tudo fosse compensado pela sua ultra-acelerada sinestesia de ser espremido por um compressor cósmico em que consegue como nenhum outro ser destilado na página em sua mais distante e inacessível última palavra. Não seria para menos que, numa hipótese de resiliência da sociedade pela palavra, Dostoiévski seja visto no futuro ao lado de gente como Jeremias, Oséas um sincero e muito mais perturbado fundador de religião.

Ivan Karamazóv, nestas cerca de 50 páginas citadas acima, começa com um conceito inédito sobre Deus: Ivan diz (para um Aliocha cada vez mais estarrecido) que, como homem, com um cérebro treinado pela lógica euclidiana, era incapaz de conceber a existência de Deus. Por conseguir pensar limitadamente apenas usando três dimensões, era algo impossível para o cérebro humano no estágio atual da evolução, pensar sobre Deus. Sendo assim, é uma ocupação vã pensar sobre Deus. Como homem que aceita suas apertadas fronteiras biológicas, ele aceita que Deus exista. E é aqui, a partir daqui, que começa a nona sinfonia de Dostoiévski. Ou, talvez, de forma não menos grandiosa, a terceira sinfonia de Dostoiévski (em referência ao modelo beethoveano em que uma frase musical quase ridícula em sua infantilidade e pobreza proposital, descamba para um desenvolvimento orquestral de imprevisível riqueza e profundidade). Mas apenas um adendo: só essa frase sobre os limites euclidianos da mente já fundou toda uma área da literatura do século XX (junto ao espectro amortalhado, aparece ao lado do leitor uma gama dos maiores escritores como Huxley, Camus e Bellow, bebendo avidamente das palavras do russo). Pois bem, daí Ivan segue dizendo que ele pode acreditar em Deus, mas não pode aceitar. Ele nunca, jamais, vai aceitar. Ele diz que ele pode aceitar Cristo na cruz a o universo afunilado que avança por séculos de bons e maus ladrões lutando pela sobrevivência, beneficiados pelo sacramento revolucionário de a partir de então não mais ser julgados pelos seus pecados, mas ele não pode aceitar uma coisa: que as crianças, que os pequeninos do Criador, sofram. Ele narra uma série de episódios reportados na recente imprensa russa sobre abominações acontecidas contra esses pequeninos, pais que enxotam sua filha para o porão da casa, a colocam ajoelhada no barril no frio intenso, só porque ela derrubou a sopa no forro da mesa, e fecham os olhos e dorme a noite toda em boa consciência. Ele não pode aceitar os vários massacres cotidianos em que esses frágeis e puros seres de Deus são esquartejados em caçadas pelos senhores de terras, que morrem de fome, que são assassinados imaturos aos 7 anos, todos sob os olhos de Deus e sob a conivência irretocável das inexoráveis leis cósmicas que não podem ser suspendidas nem por um milésimo de segundo. Aqui o leitor já se encontra abduzido: é uma lucidez tão pura oferecida que eu mesmo depositei o livro no colo por um momento para armazenar a carga de tudo isso de forma que não se perdesse em meu cérebro, que fosse segurada por muito tempo na memória. Não era só o fato de eu ser pai: era mais do que isso. Dostoiévski estava tocando na mais profunda razão da barbárie humana, de maneira que, se ele fosse alguém dotado de uma colossal capacidade estética, toda a pureza do que estava dizendo se perderia. É algo meio estúpido e inconsequente afirmar isso, mas Tolstói não conseguiria dizer isso com esse poder solar, com esse grito retumbante e primitivo. Seria outra a música, uma música senhoril, perfeita, vinda de um gigante; uma música que calaria a alma. Já a música de Dostoiévski vem de baixo, e por isso atinge com uma proeminência muscular única. Tolstói nos faz espectador, Dostoiévski nos faz cúmplices. Tolstói tem uma grandiosidade de alma que nos contempla com esperança de cura, Dostoiévski nos mostra a nossa brutal falta de eufemismo ao nos conduzir além do discurso. Eu amo mais meus filhos _ como se isso fosse possível, e por um momento supremamente incômodo de auto-avaliação Dostoiévski torna isso possível_, após ler essas palavras. Depois disso, a modulação da minha voz com eles ficou ainda mais tangivelmente terna.

E o padre Zóssima, no final do primeiro volume, diz uma frase que é o que de mais verdadeiro serve como epitáfio da humanidade: "É imensamente difícil para o homem fazer o óbvio". A frase não é literalmente esta, mas quer dizer isso (não estou agora com o livro em mãos). Essa frase tem me feito pensar muito, tem frutificado muita coisa dentro de mim. Quase impossível para o homem fazer o que deveria ser feito, realizar o óbvio. ("Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.")

5 comentários:

  1. Me deu muita vontade de reler "os irmãos Karamázov", que eu li a alguns anos, mas tem que ser nessa edição da editora 34, e Charlles me lembrei de uma lista que você postou com seus livros preferidos(culto a personalidade) e pelo que me lembro o livro do Dostoiévski que você cita na lista é "os demônios", e depois dessa releitura vai mudar alguma coisa naquela lista ou ainda cedo para falar algo a respeito?

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    1. Eu ainda fico com Os demônios, Tiago. Ambos os romances são soberbos e tem a mesma estatura. Os Karamazóv tem uma amplidão maior, acorda muitos questionamentos profundos, se presta a ser um universo de interpretações. Já os Demônios fala mais da maldade humana e da manipulação política, o que converge a tensão e talvez o beneficie mais no gênero do romance. Não sei explicar; escolher um não é diminuir o outro; mas naquela pergunta famigerada da ilha deserta, eu levaria Os demônios.

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  2. - É notável a capacidade do Dosto. de nos fazer sair da "caixinha". Sim, é muito difícil passar uma página sem pousar o livro no colo em atitude de reflexão.

    - "Tolstói nos faz espectador, Dostoiévski nos faz cúmplices". Bela frase. Acho que o que Dosto. perde no estilo ele ganha na capacidade de trazer a reflexão até nós.

    - "É imensamente difícil para o homem fazer o óbvio". Isso me fez lembrar uma passagem de "Memórias do subsolo" quando ele diz mais ou menos assim: vc pode dar tudo ao homem, tudo que ele sonhou para uma vida boa, e ele ainda vai dar um jeito de fazer alguma estupidez... de se estrepar na vida.

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  3. Charlles,
    desculpe-me esse comentário fora de contexto… É que estou a tratar de um ilustre comentarista de seu blog, o Carlinus. O texto elaborado por ele, complementado com um vídeo do jornalista Bob Fernandes, é sem dúvida uma das mais lúcidas sínteses sobre o Brasil, que me deparei ultimamente.

    http://carlososer.blogspot.com.br/

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