segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Vida querida, de Alice Munro



O mais certo é não acreditar nos jornais e revistas. Cada dia mais vejo que as opiniões sobre literatura e escritores que partem dessas publicações ou vem de profissionais que não gostam de leitura, ou de acadêmicos cuja ambição mal sucedida é construírem algo novo e original usando o livro como base. Desse último exemplo vi um ensaio na revista Cult sobre Ar de Dylan, romance recente de Vila-Matas, que tinha o absurdo talento involuntário de não dizer absolutamente nada, de não servir para o esclarecimento do leitor sobre o livro em foco, e de ser apenas um rocambole da pretensão do articulista em sofismar para o vazio.

O que se fala de Alice Munro na imprensa cabe no primeiro modelo de tratamento acima. Propagou-se que a nobel do ano passado era o Tchécov moderno; li na Veja um artigo apontando que os contos de Munro são repetitivos e que falam demais em doenças e em mulheres solitárias; em não sei que outra publicação fala-se que Munro tem um inequívoco traço em comum com Raymond Carver. O que sei e posso falar como leitor é que há muitos erros e más intenções nessas críticas. Li Fugitiva e Vida Querida, ambos lançados pela Companhia das Letras (embora o primeiro esteja esgotado e já fora do prelo, à espera de relançamento pela Editora Azul), e descobri que ninguém mais longe no ramo dos contos que Munro de Tchécov. Os contos de Tchécov são carregados de uma ternura cruel, de um humor ferino e desolado, de uma limpidez e clareza de compreensão. Uma das grandezas de Tchécov é ser um escritor descomplicado ao extremo, mas sem que isso recaísse em didatismo ou simploriedade. É um tanto leviano falar de Tchécov, já que ele é uma das maravilhas da literatura. Mas aqui cabe salientar essas coisas para ressalta meu espanto ao ver que tentam vender Munro de forma errada, pois quem ama Tchécov (todo mundo que lê) pode muito bem chegar a Munro por essa ilusão e passar a odiá-la.

Os contos de Munro são complexos, apesar da simplicidade e quase total despojamento da escrita, adotam quebras repentinas de ponto de vista e recorrem ao estratagema de desmentir na cara do leitor as verdades antes apregoadas sobre os personagens. Isso, confesso, me desbaratinou no início, sobretudo nos primeiros contos de Fugitiva. A autora nos dá as mãos e nos leva por um caminho tido como seguro, para, covarde e sardonicamente, nos abandonar logo em seguida. Tchécov jamais faria isso. Mas isso é uma das vantagens de Munro, é o estabelecimento escolhido por ela para se inserir na narrativa moderna. No conto Fugitiva, vi isso com mais maestria_ aliás um conto excepcional!_: somos levados a crer na perfídia de um plano de extorsão, somos deixados desabrigados no centro da história, estamos na iminência de vermos o golpe realizado, até que tudo vira um assombro em que questionamos nosso entendimento quando a linha reta se encurva e segue outro caminho no final. Tive que reler as última páginas para confirmar a coisa. Em Fugitiva, em todos os oito contos, fica notório porque deram o Nobel para Munro, e porque gente como Javier Marías tece loas para ela (Munro é uma das dignificadas a pertencer ao Reino de Redonda, do qual Marías é o atual monarca).

Já sobre a repetição acusada no artigo da Veja, vi isso como um machismo involuntário (é uma mulher quem escreveu o artigo). Todos os escritores são repetitivos, porque Munro não poderia ser? A maioria dos escritores produzem suas obras desnovelando um só e único assunto, e se Munro fala muito de doenças e solidão (principalmente em Vida querida), esses assuntos são obsessão de Philip Roth e vem sendo usado em seus últimos dez romances. Vida querida é bem menor que Fugitiva. Os personagens não são tão convincentes e o enredo peca por desnutrição em alguns pontos. Mas mesmo assim são contos que tem muito o que dizer, são exercícios vorazes de uma velha escritora por continuar a perseguir o enigma que lhe motivou a começar a escrever. E, só a última parte, composta por textos confessionais e declaradamente auto-biográficos, já vale o investimento no livro. Aqui vemos o valor de Munro por uma ótica diferente da criadora de labirintos prosaicos de Fugitiva, por sua sinceridade e sua facilidade. Também não vi nenhuma semelhança entre Carver a Munro. Descontando o óbvio minimalismo, que conceitua a maior parte dos contos de Carver, e no qual Munro não se enquadra em nada, Carver só serve como referência para Munro pela estima declarada dela por sua obra. 

Em nossa época, e superficialidade dos difusores de opinião vende a ideia de que leitura é entretenimento. A alta literatura não é entretenimento. O prazer é uma ocorrência secundária. Munro não é Dan Brown (aliás, tentei ler Brown e fiquei profundamente entediado). Passei muitas horas de prazer lendo esses dois livros. Fugitiva é uma ótima iniciação. Vida querida tem artificialismo e a repetição dos possíveis cacoetes de uma vida inteira dedicada à escrita (como o tem A memória de Shakespeare, do velho Borges), e bons textos auto-biográficos.

Um outro ótimo ponto de vista sobre Vida Querida, pelo Carlinus, aqui.

4 comentários:

  1. Belo texto, Charlles! Também li o livro de Munro e o reporto como um bálsamo. Existe uma leveza séria no trabalho. Esse é o primeiro livro que leio da canadense, mas me tornei simpático para com ela. E como você disse: somente a suposta parte auto-biográfica já vale a leitura.

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    1. Gostei muito de sua (não) resenha da Munro em seu blog, meu caro. Não resenha porque você é quem diz isso. E concordo com muita coisa que você disse lá. Mas a Munro é sim extraordinária, de uma maneira que me policiei bem para falar dela, pois pretendo ler mais coisas dela e sei que isso me enriquecerá.

      Era para eu ter colocado um link para seu post aqui, mas estou em mudanças de volta ao meu endereço e o trabalho é duro.

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    2. http://carlososer.blogspot.com.br/2014/01/vida-querida-de-alice-munro-algumas.html

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