sábado, 8 de fevereiro de 2014

Um lugar limpo e bem iluminado


Meu resquício de destemor da juventude se ressente com dor quando eu olho em volta a casa vazia e descubro ter desacostumado com a solidão. Todos foram para a casa da minha mãe e eu fiquei sozinho em casa. Uma casa velha que se transformou em uma nova. Na verdade, destruíram a casa velha e construíram outra completamente diferente. Foram embora as paredes tarkovskianas as quais eu dedicava tanto amor, e desde quatro dias eu vejo paredes rescendendo brancura, pisos brancos por toda parte, janelas que abrem e fecham com uma facilidade emborrachada. Ontem saí do banheiro e senti como se estivesse em um hotel. Os quartos ficaram maiores, o forro foi trocado, o que era de madeira deu lugar ao geso. Minha filha direto chorava, na casa provisória onde estávamos, querendo voltar para "a casa amarelinha". Nem amarela ela é mais: ficou rosa por fora, no muro, e vermelha. Trocaram o portão gradeado, pelo qual éramos vistos sentados especulando sobre a vida, e colocaram outro, todo fechado, impermeável a qualquer olhar, tanto de fora quanto de dentro. Miles Davis odiou o portão, e seu silêncio nesses 4 dias revela um desbaratino em como ele vai achar o caminho para latir para os outros cães e perceber a aproximação de estranhos.

Comprei a casa por um preço bem abaixo do mercado. Caía aos pedaços. Comprei-a quando solteiro e não sabia que iria me tornar casado. Se soubesse, na certa teria sido diferente. Adoro casas antigas. Sou mesmo paranoico por elas. Fico horas olhando para elas; um de meus passatempos de adolescente era cabular as aulas e vagar pelas praças escondidas à procura desses refúgios anacrônicos vindos do passado. Há um eco, uma sacralidade, uma informação de impermanência, uma intuição forte e sempre imprecisa de relicários com cachos de cabelo e registros fotográfico esquecidos sobre desaparecidas tardes de sol com saúde, uma comunhão com o movimento de distantes vidas alheias gravadas já por inteiro nos desvãos do tempo. É como tempo tornado espaço. Tentei por anos entender a raiz dessa paixão. O mais próximo dela achei definido em um livro de Slavoj Zizek: tais paisagens são remansos deportados do capitalismo, exceções de existência eterna que nada mais tem a ver com o mundo. Isso me calou profundamente. Olhar ruínas era, então, entrar na eternidade, recolher-se no silêncio rumorejante de tantos fantasmas concluídos, flutuando no miasma de suas verdades alcançadas de que as grandes paixões e os sentimentos exacerbados de morticínio foram esvaziadas para sempre. Claro que a casa não estava em ruínas, era bem acolhedora, vivemos ali os melhores anos de nossas vidas, ali o choro do bebê, o engatinhar, os primeiros passos, os primeiros sorrisos: fui feliz de uma maneira concreta e inapelável. Daí a saudade que a Júlia tem da "casa amarelinha". Mas abria o precedente do exercício de olharem para nós pelo que a casa do lado de fora representava, o povo miúdo das velhas ideias prontas. Eu sabia que um dia as paredes tarkovskianas seriam trocadas pelas outras, e nos pusemos para fora, e juntamos dinheiro e fizemos financiamento para que a direção mudasse da poesia já usufruída com demora (a Dani, minha esposa, sempre muito paciente comigo) para a praticidade segura e confortável.

Hoje então acordo com a grande e nova casa vazia, e confesso que me sinto angustiado. O tipo de situação que cabe retirar de nós a exclamação do senso comum "como sinto o peso da idade", e nem por isso será o retrato incorreto da realidade. Ontem ouvi Lizard, do King Crimson, quando arrumavam as malas, e a beleza da música me deixou em estado adrenérgico: enfim, amanhã estando só, vou fazer uma compilação dos primeiros álbuns do Crimson e vou ouvi-los em volume proibitivo, vou abrir uma garrafa de vinho e fazer um mega-sanduíche de alcatra. Até os muros foram ampliado na altura, de forma que o Crimson não mais incomodará os vizinhos. Mas hoje acordo, abro as portas e me sento na varanda, tento ler as últimas 150 páginas de O homem duplicado que demorou dois meses para chegar na encomenda que fiz à livraria local, mas aí eu sinto minha desproteção. Assisto ao canal de séries até dar a hora do almoço, em que coloco o que sobrou da janta no micro-ondas, almoço e levo o ventilador à biblioteca (ou escritório pessoal), que não fica mais nos fundos da casa e que se tornou maior, e durmo por quatro horas. Quatro horas dormindo em uma tarde de sábado. Isso, há um tempo, era o diagnóstico de depressão para mim. Acordo porque me acorda o celular, a chamada da Dani para dizer que almoçaram com minha mãe, minha irmã, meus tios e não sei mais quem da família. Uma alegria esfuziante que me faz recuperar os ânimos: outro sinal da idade: meu prazer agora é mais intenso naqueles que amo, não mais o velho egoísmo de outrora.

Esse ano será o da economia. A casa nos obriga à contenção. Sobraram para mim, nesse mês, mas para meus livres gastos pessoais, sessenta reais. Posso fazer o que quiser com eles. Pois eu escolho o livro que mais vou precisar pelos próximos 3 ou 4 meses, e peço pela Estante Virtual o volume 3 das Obras Reunidas de Walter Benjamin, Um lírico no auge do capitalismo. Já tenho os outros dois primeiros volumes, e descubro que esse está esgotado nas lojas de novos. Pago 52 reais com o frete. Encontro 5 para a venda, dois deles mais baratos, mas como o que escolho é anunciado como novo, opto por pagar um pouco mais. Chega de livros por bons meses. Economia regrada. Os únicos gastos pessoas que tenho são livros e vinhos, e o que está reservado para hoje à noite será o último por muito tempo. Amanhã planejo escrever o que tenho que escrever o dia todo. Há muitos caramujos no quintal, hoje peguei uns trezentos, coloquei-os em um saco e joguei sal por cima. Há um silêncio enorme por sobre tudo, um silêncio de coisa limpa e arrumada, o silêncio de locais aprazíveis e iluminados por luz elétrica. Sinto muita vontade de rever Nostalghia; amanhã à noite o farei.

7 comentários:

  1. Que texto bonito! Cheira a lamento, a comoção; ele está repleto de lirismo nostálgico; de uma tristeza fina; talvez derive da solidão que experimentas em teu recolhimento.

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    1. Obrigado, Carlinus. O cello de Shostakovich que você gentilmente disponibilizou em seu blog está preenchendo um pouco dessa solidão nessa manhã de domingo.

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  2. Esplendoroso, Charlles… Esse é o caminho…: a mistura da sua realidade com aquela outra de tantos - que você leu… O resultado? Ora, a nossa realidade!!!!!... Entendeu, Charlles, o que eu lhe disse, no Milton, sobre a maturidade de seu livro que está próximo?
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    PS.: (1) por que o holocausto dos caracóis? É uma questão de prevenção à saúde (não sou veterinário e nem biólogo)? Em minha última viagem de férias ao sul da Bahia, em Mucuri, nas minhas caminhadas, às 6 da manhã, encontrava inexoravelmente dezenas e dezenas de caracóis a cruzar o caminho… Sempre os bendizia: “Bem-vindos, catassóis!”; (2) Carlinus, estou a ler o seu blog... Encontrei reflexões interessantíssimas…

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    1. Charlles, no Vagalúmen, que publiquei em 1999, há uma sequência de poemas que reflete essa sua realidade em transformação...
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      POEMA VERMELHO

      Degustar
      O gomo
      vermelho
      do beijo.
      Amanhece.

      Trabalhar
      o campo
      do coração
      da Vida,
      e pensar-sentir
      as flores
      que Tu, Sol,
      nos deste.
      Anoitece.

      Criar
      beijos
      (amor)
      vermelhos,
      e dormir
      qual faz
      em paz
      o pássaro
      que tece
      encânticos.
      Amanhece.
      *
      *
      ALÉM DE ÍCARO

      Só depois de compreender a física
      do corpo morto, da flor nascente,
      só depois de compreender
      com a metafísica
      que tudo morre e nasce
      diferentemente,
      foi possível ao poeta
      inventar um foguete lírico:
      um albatroz de Baudelaire
      além da tragédia de Ícaro.
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      PRÁXIS

      Construo um escada imaginária
      para subir num concreta árvore,
      mas não é para cortá-la
      ou construir uma casa sob seu telhado,
      mas, sim, para aprender
      as melodias das calmarias
      e o perigoso cântico da tempestades.
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      *
      LAGARTA

      O poeta andarilha à noite,
      à beira das marés: é uma lagarta
      que crê criando andares na escuridão.
      *
      *
      CRISÁLIDA

      Sou uma crisálida
      prisioneira da existência,
      mas procuro uma janela,
      por pequenina que seja,
      pra descobrir o Universo.
      *
      *
      PANAPANÃ

      A vida é além e aquém da superfície.
      Jaz lagarta. Jaz crisálida.
      Agora é o tempo de Panapanã…






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    2. Obrigado, Ramiro. Sobre os caracóis, são aqueles caracóis africanos que dizem transmitem doenças. Pesquisei sobre eles na net, há os que dizem que são inofensivos e os que dizem o contrário. Não posso correr o risco. São muito bonitinhos, mas são uma praga.

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  3. Me desculpem... Há erros... de digitação...

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  4. Ramiro, vi a sua afirmação sobre o meu blog somente hoje. Fico imensamente lisonjeado. Peço perdão pelas garatujas ou pelas bizarrices. São exercícios singelos de carpintaria literária desse grande diletante que sou eu. Fico feliz pelas "reflexões interessantíssimas". Também sempre leio os seus poemas e os acho bastante perspicazes. É curioso o quanto você tem facilidade para a coisa. Abração!

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