sábado, 15 de fevereiro de 2014

Sobre um conto de Bernardo Carvalho e um livro de José Saramago



Um dos pesos de consciência que tenho como leitor é jamais conseguir ler de cabo a rabo uma revista. Tentei várias vezes, mas sou incapaz desse exercício severo de disciplina. Sou um leitor bastante indisciplinado e, convenhamos, nessa altura da vida tenho que me resignar com alegria a esse traço irretocável de caráter. Meus amigos leitores da vida real, por ironia do destino, são patologicamente dogmáticos. Estava caminhando com um deles ontem e ele recuou um passo diante o susto ao me ouvir dizer que estava lendo cinco livros de uma vez. "Eu jamais faço isso", ele disse, "pego um livro apenas e vou nele até o final". E tem a questão dos sublinhamentos, que sempre pensei em fazer um texto específico sobre isso; nenhum desses meus amigos sublinham seus livros, enquanto eu risco, sem dó, usando uma régua e uma caneta respeitosas, todas as partes que me tocam e que, se eu não as individualizasse entre as milhares de páginas que tenho na biblioteca, jamais tornaria a rever a maior parte delas, ficariam perdidas para sempre. O que é que faz com que tais amigos não sublinhem seus livros? Um temor de que algum dia tenha que vendê-los? De que, se os emprestar, a pessoa portadora vai se incomodar com os riscos? Pois eu jamais venderei o menor e menos amado de meus livros, assim como raríssimas vezes empresto algum deles (também tenho uma opinião misógina sobre empréstimo de livros; trata-se de uma questão delicadíssima, na qual me vi muitas vezes vilipendiado pelo costume do vulgo em não dispender o mínimo respeito a livros, como se livros fossem sacolas de pão que não exigem melhores tratos do que jogá-los por sobre a mesa e consumi-los dentro de um prazo de validade; não empresto e não tomo emprestado livros, visto que sempre que tomo emprestado sinto a compulsão de adquirir o volume).

Mas esse texto solto e irresponsável de sábado, que escrevo não para o deleite dos esporádicos frequentadores do blog mas para retardar um pouco mais a inglória tarefa que tenho pela frente em limpar sozinho a casa (a patota chega de volta amanhã; qual música ouvir durante a limpeza?, tendente a Crosby, Stills & Nash, ou Crosby, Stills, Nash & Young, e mais um The Jayhawks que se casam bem com o ar chuvoso desse começo de sábado). Então vamos lá. Uma vez me propus enfim a ler toda uma revista Piauí. A começar pelo início_ sempre leio de trás para diante. Mas me detive diante um artigo sobre futebol, o que atrapalhou definitivamente o processo. Eu não leio nada sobre futebol, essa é uma das poucas certezas insofismáveis e bem resolvidas da minha vida.

Ontem me detive novamente diante um conto curto de Bernardo Carvalho, na edição da Piauí desse mês. Leitor sistemático da Piauí, mesmo pulando páginas, sei que há arranjos nessa revista para se fazer de interessante e cool que me causam bastante suspeita. E ver um texto do Bernardo Carvalho, curto, intitulado "Deus é burro?", me fez puxar mais uma vez o laço do cavalo. Não perderia tempo com um texto astucioso, colocado ali por obrigações compulsórias de ambas as partes, do autor e da revista (afinal, para o padrão da Piauí, que publica textos infindáveis, ter um de apenas duas páginas como aquele afirmava sua função de tamponamento de espaço sobrante). Mas eis que começo a lê-lo, o acho a princípio fraco, mas logo, lá pelo final, Bernardo (que é, mesmo na opinião desse insuficiente leitor de literatura brasileira que sou eu, o melhor de nossos autores, disparado) solta aquilo que já foi definido por um importante ficcionista metalinguístico, a "estocada repentina que o autor dá em seu leitor", aquilo que faz os cabelos da nuca arrepiarem e a mensagem ser entregue com catarse satisfatória e imprevisível. E o que ele disse, consubstanciava-se ao romance de Saramago que eu estava lendo, "O homem duplicado". Carvalho, das poucas coisas que li dele, sempre se me mostrou um autor profundo. Ele sempre tem algo para dizer, tocante, relevante, sério. Daí que foi essa fé de meu inconsciente que fez com que eu lesse o conto dele até o fim. O texto é mais uma narrativa em forma de prólogo a uma suposta obra de Blaise Pascal esquecida e recém descoberta pelo papa Francisco. É um exercício temático borgeano, (embora o autor se restrinja a não copiar o estilo de Borges), em que se é mostrado um Pascal de uma terceira fase de revelação mística cujo mote surpreendente é uma definição deísta que aponta para um total ateísmo. Até aqui, um texto bem costurado, sem sarcasmos ou humorzinho fútil de diversão, com um tom que beira coisas contundentes ditas por Dellilo e outros autores. Mas o que me provoca a catarse nada tem a ver com as questões religiosas levantadas. Talvez eu seja mesmo um leitor espantosamente lúcido e excepcional, pois adquiro daquele textinho toda a astúcia que Bernardo parece querer passar, usando a superfície inteligente da questão irrisória da contradição pascaliana. Bernardo está a falar sobre literatura e seus poderes em nossa época de boçalidade virtual, eu penso, mas como muito já foi dito sobre isso, muito se critica sobre a geração facebook e tal, ele, grande escritor que é, utilizou um escorço na escrita, caminhou pela senda muito caminhada para então dobrar por um atalho súbito e não visto; usou o tema da religião para falar sobre o quanto a linguagem vem perdendo seus condimentos históricos, suas nuances e suas riquezas. O Pascal de Bernardo é um Dimitri Karamazóv, um profeta niilista absoluto. Não sou adepto a citações, mas seria um crime se eu não colocasse aqui toda o grandioso coração do conto de Bernardo Carvalho:

"Pascal, nostálgico das suas façanhas de jovem inventor, imagina uma máquina de se expressar que leva os homens a tornar tudo imediatamente público, a começar por suas vidas íntimas, seus sentimentos menos elaborados. Os sentimentos mais egoístas, que antes só eram expressos na esfera privada, porque manifestá-los em público significa comprometer-se (uma vez que esses sentimentos também expõem uma burrice e uma truculência que já não disfarçam o objetivo de destruir tudo o que não estiver a seu serviço e a seu favor), passam a ser proferidos simultaneamente, com orgulho e empáfia, em alto e bom som. A vergonha e o pudor moral foram banidos desse mundo e não fazem mais nenhum sentido na distopia imaginada pelo filósofo. E, como em princípio cada um desses indivíduos, além de exprimir seu interesse incompatível com os interesses dos demais, também fala em nome de Deus e o define de um modo incompatível com os demais, sendo o que todos dizem, ao mesmo tempo, acreditar num único e mesmo Deus absoluto, como hoje dizemos da democracia, fica clara, a um só tempo, não apenas a exigência de uma igreja unificadora de sentido, mas que esse Deus simplesmente não existe nem poderia existir. Nunca."

E aqui entra as dificuldades que eu estava tendo para chegar ao fim de "O homem duplicado", de José Saramago. Trata-se de um dos mais elogiados romances de Saramago, convertido em cinema por um cineasta holywoodiano. Li até a metade com deleite, sentindo o quanto retornar à prosa do autor português era uma alegria. Encomendei-o pela livraria local e veio dois, e um de meus amigos leitores o comprou e marcamos de lê-lo em comunhão para futuras conversas. Mas empaquei na metade para o final. Uma pulga saltou-me para trás da orelha e me lançava mensagens sobre se Saramago ali não estava me enrolando. Se Saramago ali não era mais o grande escritor de romances recolhidos como o magnífico "O ano da morte de Ricardo Reis", mas um comerciante nobeliado que aproveitava da grife que se tornou seu nome para fazer mais uns excelentes trocados. Pois o romance parecia estacado em volta de sua própria cauda. E depois da leitura desse conto de Carvalho, volto com afinco para as páginas do romance de Saramago, já desconfiado do leitor de merda e de pouca fé que eu sou. (Aqui entram elementos subjetivos da leitura: o assustador preconceito de alunos portugueses da Universidade de Coimbra contra estudantes brasileiros, aparecido nos jornais nacionais há poucas semanas, e a troca ainda mais assustadora de xingamentos entre brasileiros e portugueses pela internet devido a isso; e um link que o Matheus me mandou por e-mail de um artigo de jornal português falando sobre o passado de possível comunista truculento de Saramago, quando Saramago era diretor do Jornal de Notícias de Portugal; tais notícias me indispondo sem que eu veja e pondere racionalmente o peso de tais questões, me enquadrando no diagnóstico pouco alentador do conto de Carvalho.)

Leio até o final "O homem duplicado", com ira, tentando enfim tardiamente me inserir nas fileiras dos leitores de correção militar e me ensinar à marra um pouco de ortodoxia. Dispenso os afazeres comprometidos do dia, coloco para tocar as sublimes sonatas para piano executadas por Ronald Brautigam, e me assumo em férias diante o romance de Saramago. E Saramago aqui me surpreende mais uma vez. Se durante a leitura venho medindo forças entre ele e Javier Marías para ver quem é o melhor, Saramago faz aqui o mesmo nível de mestria que Marías faz em "Os enamoramentos". Abandonar Saramago pela metade seria um erro enorme. O homem duplicado é uma obra fechada, seleta, minuciosamente construída, e que só revela seu sentido e coesão quando chegamos às belíssimas últimas páginas, assim como acontece com o romance de Marías. Ali a força da escrita renovada, o acontecimento gratificante da palavra, e uma das formas de levar os melhores genes adiante da humanidade, de confrontar sossegadamente a bestialidade do que jaz lá fora. Tudo o que Saramago ia fazendo que a mim parecia excessiva dedicação aos movimentos cotidianos de seus personagens, não era outra coisa que reafirmar conscientemente em sua arte o papel de individualidade em um mundo em que, nas palavras de Carvalho, força-se para imperar a "burrice e a truculência". Por isso eu, um leitor tão auto-arvoradamente primoroso, deixei escapar por elementos discriminativos vagos e vazios, o que Saramago estava a dizer, deixei que me faltasse a perspectiva certa para apreender o quanto profundamente significantes eram os movimentos de Tertuliano Máximo Afonso, o personagem do livro, em seu apartamento, em sua sala de aula como professor de história. É muito bom sentir o ensejo e a paixão da literatura legítima em tais exemplos com equívoca e maquiavélica roupagem trivialesca nessas duas obras.


12 comentários:

  1. Charlles,
    eis o filhinho que nasceu hoje (já publique também, lá, no Milton...)
    *
    *.

    FELICIDADE E SILÊNCIO
    by Ramiro Conceição
    *
    *
    Como descrever  a felicidade,
    que é ver uma infância a pular
    feito uma labareda a sair ou a entrar…nos brinquedos
    que aos poucos, ou de repente, se tornam pequenos?
    Como descrever a emoção de compreender que a vida
    é a ponte entre o nada e o primeiro grito, mas também
    entre o último olhar e o silêncio contumaz do infinito?

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  2. Geralmente eu colo um grande post it no final e vou marcando as anotações:"p.15-issoeaquilo", pra ficar mais fácil encontrar depois. Sempre há livros que desejo apenas ler e se gostar comprar depois. Foi assim com o Nove Noites, que li duma biblioteca e depois comprei (creio que após esse texto você finalmente irá ler), e com Intermitências da Morte, que li essa semana. Pensei "Saramago é mesmo um narrador genuino, um contador de histórias daqueles que trata seus leitores como crianças em volta de uma fogueira".

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  3. Pedi para a Dani que compre o Nove Noites na Saraiva de Goiânia para mim, hoje.

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    1. O Bernardo Carvalho é sim excelente. Tá aqui a minha Piauí, intocada ainda no plástico: estou embasbacado com a leitura de Memórias do Cárcere, onde encontrei um livro pra ficar no mínimo pau a pau com o Ressureição de Tolstói, e que tem me tomado toda a leitura desde dois dias atrás; aparentemente terminarei com ele hoje, falta só a última parte, e então parto pro tal conto. Fala-se muito de Nove Noites, mas minha recomendação mesmo é Mongólia; As Iniciais foi a primeira coisa que li dele, há cinco anos atrás, e agora me surpreendi descobrindo que sei de cor alguns trechos; mais outra recomendação: Reprodução, lançado ano passado, foi o melhor livro brasileiro que li em 2013, e isso apesar de ser um dos piores do Bernardo Carvalho.

      Tomei uns pontos num dedo por causa de uma louça rachada, daí estou pescando teclas e não apareci mais por aqui. Aproveito e comento agora sua postagem de título emprestado do Hemingway, A clean well lighted place: em Apontamentos de História Sobrenatural, Quintana tem um poema chamado Arquitetura Funcional, este:

      Não gosto da arquitetura nova
      Porque a arquitetura nova não faz casas velhas
      Não gosto das casas novas
      Porque casas novas não têm fantasmas
      E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas
      Assombrações vulgares
      Que andam por aí…
      É não-sei-quê de mais sutil
      Nessas velhas, velhas casas,
      Como, em nós, a presença invisível da alma… Tu nem sabes
      A pena que me dão as crianças de hoje!
      Vivem desencantadas como uns órfãos:
      As suas casas não têm porões nem sótãos,
      São umas pobres casas sem mistério.
      Como pode nelas vir morar o sonho?
      O sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso
      (Como bem sabíamos)
      Ocultá-lo das outras pessoas da casa,
      É preciso ocultá-lo dos confessores,
      Dos professores,
      Até dos Profetas
      (Os Profetas estão sempre profetizando outras coisas…)
      E as casas novas não têm ao menos aqueles longos,
      Intermináveis corredores
      Que a Lua vinha às vezes assombrar!

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  4. João, para mim o melhor é Nove Noites. Li Mongólia e Reprodução, e não gostei muito deles. As expectativas eram altas demais.

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  5. Tenho uma resistência a sublinhar livros. Também não costumo inserir marcas pessoais, como escrever o nome, ainda que goste de escrever dedicatórias quando presenteio alguém.

    Nem por isso deixo de anotar trechos de livros. Faço isso numa folha a parte, que deixo mantenho dentro deles.

    Da minha parte, creio que talvez idolatre demais o objeto livro. Temo conspurcá-lo com minhas marcas pessoais.

    Parte, quem sabe, de um sentimento íntimo de que eles sobreviverão a mim.

    abraço,
    Fernando

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    1. Eu também, pelo que se vê aqui no blog, venero o objeto livro. Talvez minha falta de obstáculos para o sublinhamento seja que o livro, de certa forma, é pessoal demais para ser transferível; mesmo quem o herda, recebe uma substância maculada pelos traços do período de permanência de seu antigo dono. Me fez recordar que quando meu avô morreu, eu pedi que minha mãe me desse uma camisa de linho branca dele, que eu usei por muito tempo. Só eu enxergava as nódoas de uso na costura debaixo do braço, e me sentia muito bem ao saber dessa intimidade com meu avô. Imagine um livro.

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  6. Eu sublinho especialmente os livros de não-ficção. E faço anotações nas laterais com indicações ou pequenos resumos. Depois, fico arrependido, porque não é bonito, para, em seguida, sublinhar um outro livro. Fichamento é chato demais, mas é efetivo para evitar grifos. O problema é que a gente só faz fichamento se for obrigado.

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  7. Charlles, e Martin Amis? Tens algo a dizer (de bom) a respeito? O cara, ao menos, os amigos sabia escolher, já que era amigo de Saul Bellow...

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    1. Já havia aqui planejado que o próximo post será sobre ele. Assim que acabar de ler o novo dele, "Lionel Asbo" (estou além da metade), escrevo. Li dele "Campos de Londres", "Grana" e "A informação".

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  8. Charles preciso lhe mostrar isso.
    http://
    seminrionsaparecidaleopoldinamg.blogspot.com.br/2014/02/pascal-morreu-ateu-e-dai.html?m=1

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