sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Lionel Asbo, de Martin Amis



Venho lendo Martin Amis desde que me deparei com boa parte dos formadores de opinião dizendo que ele era o maior escritor do mundo. Isso foi em 1999, creio que no ano do lançamento da edição nacional de A informação (na verdade, A informação foi lançado pela Companhia das Letras em 1995) . Amis era acolhido com todas as previsões inevitáveis de mimo pela mídia cultural como uma espécie inusitada de astro do rock das letras. Ele se dava ao luxo até de ter sua parcela de suspeição moral, típica da vida maculada das grandes personalidades do show-business, ao ser apontado como réu em um escândalo envolvendo plagio e pelo final tumultuado de um relacionamento não exclusivamente amoroso com uma famosa editora. Era difícil para um leitor desvincular o escritor Amis do homem excessivamente público Amis, mesmo porque o próprio autor fazia questão de apagar as linhas divisórias ao se inserir como personagem em um de seus livros (em Grana, Amis aparece inteiro e com o próprio nome para se assumir como ghost-writer do anti-herói da trama). Por isso, quando li A informação, era com esse condicionamento ambíguo na cabeça que me vi testando o que era real e o que era quimera publicitária. O que de imediato percebi foi o enorme domínio das técnicas narrativas em Martin Amis: ele conhece como ninguém todos os andamentos da escrita, todas as quebras sutis para acentuar a tensão da trama; ele escreve usando uma percepção subliminar contínua dos movimentos mais prosaicos da realidade; em seus livros um céu nunca é apenas um céu, mas algo acintosamente perigoso, "uma névoa de saibro, a textura da gaze, com ciscos, pontos cegos, rugas, como cicatrizes de vacina" (Lionel Asbo, p.324); ele demonstra essa qualidade superior de apresentar rostos e paisagens com definições anacrônicas espantosas, como Faulkner bem sabia fazer com seus personagens com olhos como maçanetas, e seus desenhos de Londres tem a profundidade caleidoscópica de uma cidade sombria carregada de detalhes percucientes miniaturizada e inserida em uma esfera de vidro. Ao contrário de vários outros escritores que são alicerçados para um plano de visibilidade comercial absoluta, Amis tinha algo a oferecer, mesmo que fosse apenas o cacarejar erudito de frases soberbas que olhando-se mais detidamente, não diziam nada (como a famosa incógnita da abertura de A informação, bela e impactante, mas quase genialmente oca). Em um mundo hipotético como o de um dos contos de Amis, em que os poetas estão no topo da cadeia alimentar financeira e os banqueiros purgam uma dura vida de ostracismo, os livros de Amis seriam o best-seller número um da lista de leitores superdotados.

Martin Amis é sim um escritor que não pode ser desprezado. Mas o leitor experiente aprende com as leituras sucessivas de seus livros que ele não é o maior escritor do mundo. Numa escala pessoal de relevantes romancistas de língua inglesa contemporâneos, em que a excelência apical fica com Saul Bellow, descendo pelas escalas elevadas de Thomas Pynchon, Philip Roth, Naipaul, Rushdie, até chegarmos às bases de uma Jennifer Egan e um Jonathan Franzen, Amis ocupa um plano mediano de um Paul Auster apimentado e muitíssimo mais divertido. Um diagnóstico com afiada precisão foi dado por um jornalista britânico: Martin Amis é um grande escritor que nunca escreveu um grande livro. Com Lionel Asbo, Amis deixa claro que ele tem plena consciência disso, demonstrando uma auto-crítica lúcida quanto até onde ele pôde chegar como criador. Aos 65 anos, ele sabe que jamais lhe darão o Nobel de literatura, e por isso ele repete mais uma vez, com vigorosa honestidade, tudo o que sempre fez, podando os excessos de virtuoses que por vezes entulham seus outros romances. Há mesmo uma leveza, uma despretensão em Lionel Asbo, que torna essa obra um tanto maior que as outras; maturidade sem sisudez, mestria sem empáfia. Os personagens continuam primorosamente construídos: Lionel Asbo, que certamente entrará na galeria de figuras memoráveis de Amis (junto a Richard Tull, o escritor fracassado e corroído pela inveja de A informação, e o obeso mórbido ultra-libidinoso John Self, de Grana), é um delinquente juvenil de uma imaginária cidade satélite de Londres, tão bem cinzelado e imprevisível que causa um misto de sentimentos no leitor: nojo, terror, admiração involuntária pelo primarismo escatológico, mas nunca ternura, mesmo nos momentos finais da história que, astuta e enganosamente, parece direcionada para pieguismos redencionistas.

Lionel Asbo começa com o visceralismo não isento da intenção de chocar típico de Amis. Já nos primeiros parágrafos aparece uma situação desmesurada que o leitor fica tentado a achar ser um artifício cômico forçoso. Eu vi tal coisa como um exemplo de humor pueril, uma traquinagem para se manter ousado e provocador, para arrombar o bom senso. Parece que Amis foi compondo espontaneamente esse início, como uma brincadeira, e com uma perícia de enxadrista treinado foi tecendo uma rede de coerência em torno, de tal modo que essa leviandade de gosto bastante duvidoso acaba por se ligar fundamentalmente com a desfecho da narrativa. Mas o que verdadeiramente desconcerta nesse livro_ para não dizer incomoda_, é a explícita falta de generosidade por parte dos personagens. Não falta de generosidade na construção narrativa, que aqui temos uma prosa imbatível e de primeiro time. Mas falta de generosidade humana, de coração terno. Lionel Asbo é um ser monstruoso, um ególatra patológico, uma encarnação de determinismo criminoso que remete às teorias lombrosianas; em outras épocas ele seria um guerreiro perfeito, um bárbaro quiçá fundador de civilizações, um instrumento evolutivo potente pela sua falta de sentimentalismos. Mas no subúrbio de Diston Town, ele é um animal brigão que passa constantemente longas temporadas na cadeia, e que martiriza a vida de todos que estão à sua volta, principalmente de seu sobrinho Desmond Pepperdine. Há aqui um antagonismo pouco trabalhado (insinuado mas lastimavelmente abandonado pelo autor) entre inteligência e bestialidade: a inteligência de Des, o sobrinho, que volta as costas para o modo de vida de Lionel, ingressando-se na faculdade e imaginando uma biblioteca como um mundo em que pudesse viver, e Lionel, cujo principal esforço é abolir voluntariamente todo traço de inteligência que queira aparecer em sua mente. Desde criança, Des percebe essa voz libertadora da inteligência acendendo no interior da sua cabeça, vindo não sabe ele de onde, uma voz calorosa, recolhida, cujas fagulhas intensas o deixa sequiosamente ansioso por mais. Mesmo quando Lionel Asbo, por uma mera trivialidade, ganha na loteria, e se torna um multimilionário famoso perseguido infatigavelmente pelos paparazzi, a inteligência que poderia vir no tempo de sobra de uma vida isenta da labuta da marginalidade, é severamente combatida. Com a riqueza financeira, Lionel Asbo fica mais disforme, como um imperador romano, como Calígula.

É aqui que entramos na falha de Amis em não conseguir escrever um grande livro. E precisamos, assim como ele, aceitar isso, para aproveitarmos tudo que ele tem a oferecer. Lionel Asbo é um romance fascinante, divertidíssimo, prendendo o leitor às suas páginas. Uma obra que mexe não só com a providão de risos, mas com o asco e o desassossego. Só isso já posiciona Amis, com toda seu inequívoco virtuosismo e seu talento para a artificiosidade, acima dos outros escritores que se acomodam na medianidade congratulada das letras. Temos que ler Amis sem procurar interpretações políticas e filosóficas, e assim vamos querer ler Amis sempre. Há uma linha lá para o meio de todos os seus romances, em que os personagens ficam caricaturescos por demais, repuxados na ultra-realidade pretendida pelo autor. Isso torna a coisa toda bastante implausível, como nas repetitivas cenas de A informação em que a esposa do escritor famoso é adestrada no volante por um vigarista suburbano que só lhe ensina como certo tudo o que não se deve fazer na direção de um veículo: ainda que no princípio tenha um humor pastelão, fica impossível ao leitor acreditar que uma mulher seria tão constantemente estúpida a ponto de achar que ameaçar velhinhas atravessando as ruas é a coisa legítima a se fazer com um carro. Essas cores fortes aparecem em Lionel Asbo, o que pode fazer pensar que tal inércia renitente seja não um defeito de visão em um magnifico mágico da escrita como Amis, mas uma parte de seu estilo, assim como a estupidez cósmica dos personagens de Beckett são uma das assinaturas de Beckett. Mas o cacoete de Amis está mais para um abuso no recurso dos filmes de terror nas cenas em que a mocinha perseguida por uma psicopata assassino cai por terra e demora uma eternidade para se levantar (enquanto o expectador fica silenciosamente gritando "levanta daí e corra, porra!"). Assim, fica a angustiosa pergunta no leitor do por que Des insiste em ser sobre- humanamente passivo, a um nível que diminui um pouco a verossimilhança da história contada. Assim, aceitando que os romances de Amis são distorções muito bem escritas, caricaturas que algum dia podem suscitar a interpretação icônica de uma nova forma crítica de enxergar o mundo dos homens, tais romances são leituras valiosas. 

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