segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Clã



Um de meus poucos amigos intelectualizados por aqui é um advogado que dá aulas de filosofia na faculdade. Fui seu aluno há 15 anos (entrei na faculdade de História em 1999, me mudei da cidade, fui jubilado, e em 2004 voltei a me ingressar nela passando mais uma vez no vestibular). Recordo com nitidez que nos primeiros dias em que estive nessa cidade, ainda acabrunhado e espantado pela ultra-realidade que as cidades desconhecidas oferecem aos forasteiros, eu o vi sentado na sala de espera de um Banco. Eu estava na fila e não conseguia desgrudar os olhos daquele senhor que era um anacronismo visual no meio daquela gente tão ocupada com seus negócios domésticos. Um senhor de barbas bem cuidadas, encanecidas com esmero, magro e vestido com sucinta praticidade (camisa social e calça de brim, que na certa mal chegasse em casa trocaria com alívio pela bermuda, chinelos e camiseta), e, espanto!, de pernas cruzadas à inglesa lendo serenamente um livro. Seu nariz aquilino e seus óculos de armação fina lhe davam uma parecença com Sean Connery. A primeira impressão, ou a segunda, visto que a primeira foi a de que ele se tratava de uma bela espécime de animal, foi que ele emanava uma áurea de pessoa temível. Tranquilamente ele parecia seguro de seus poderes intelectuais que garantia uma liberdade em estágio de plenitude superior acima daquelas pessoas. Senti muita vontade de falar com ele, mas esse temor do contato súbito me desmotivara. Fiz malabarismos discretos para ver se lia o título do livro, mas me foi impossível.

Era Admirável mundo novo, ele me disse quando estávamos sentados na varanda de sua casa. Na época os únicos livros que eu havia lido do Huxley foi o Contraponto, do qual nutria uma intensa admiração, e aquele ensaio sobre o ácido lisérgico que ajudava a que a crítica desconstrutivista me convencesse que talvez fosse bom que deixássemos esse velho inglês em seu devido lugar no esquecimento. Ele me repreendeu, dizendo que Admirável mundo novo era um dos livros do século e uma obrigação de leitura para toda pessoa esclarecida. Eu já me acostumara com seu tom peremptório, de quem sabe que é dele por direito a última palavra, e sua idade e seu inequívoco amaneiramento permitia que ele a soltasse com gentileza, depurado a prepotência quase automática que anos de convívio com uma cidade encalacrada na torpeza do senso comum havia lhe criado. Ele me emprestou o Huxley, e isso, ainda penso hoje, foi o gesto definitivo de aceitação da nossa amizade, visto que era notório que ele jamais emprestava livros para ninguém (sabendo disso, o Huxley foi como um tubo de estricnina pelas duas semanas que estive com ele, tamanho meu receio de que eu não estivesse à altura da manutenção daquela honra). Mas ele era bem mais simples do que parecia; na verdade, à semelhança de outro amigo em comum que tínhamos, o Gahleb, ele era um dos únicos homens que eu conhecia que havia planejado milímetro a milímetro sua personalidade social, no intuito de preservar por completo sua verdadeira intimidade. Não cumprimentava as pessoas; andava impavidamente, altivo, e todos já sabiam que ele não usava do artifício das perguntas prontas para saber as inúteis informações se o outro ia bem de saúde ou se iria dar bom tempo para aquele dia. E ele fazia isso com uma magistral leveza, de forma que nunca foi tido por esnobe; se percebessem bem, ele simplesmente não cumprimentava porque ia assoviando baixinho uma serenata e olhando adestradamente aos pássaros.

E ele também era um esquerdista roxo, ortodoxo e decidido. Algumas vezes o pega pra capar entre nós quase transcendia os limites da amizade, mas nunca ia além, o que era outro abalizamento do que sentíamos um pelo outro. Tivemos uma discussão à distância, que soou dramática para as pessoas que nos assistiram, mas que a nós, retroativamente, era bastante cômica, uma noite em que um monge agostinho veio realizar uma palestra em nossa cidade. Os alunos e os curiosos desocupados de sempre aportaram em peso no salão da faculdade, e quando o monge começou a falar uma série de truísmos idiotas sobre Cuba e sobre Fidel, da ordem de que Cuba estava bem mais perto do céu do que o Brasil e de que Fidel era um iluminado de deus, eu me vi em pé rebatendo essas sandices, o que motivou que o advogado se levantasse do outro extremo da platéia e por sua vez me devolvesse com severidade o rebate de minhas opiniões. Acabou que ninguém ousava contradizê-lo, de modos que quando pediu as palmas para o maior político do século XX (Fidel), todos se bateram palmas imediatamente. Foi uma bruta de uma provocação e confesso que, de pirraça, eu esperei que ele viesse a mim com seu sorriso sarcástico no final da exibição.

Outro detalhe é que ele conserva o mesmo carro que tinha desde que conhecemos, um Gol quadrado vermelho. Ele possui uma chácara deliciosa onde mora, no alto da serra da cidade, com uma casa que é um espetáculo. Sua esposa é um doce de pessoa, enquanto seu filho é um reacionário indigesto que parece ter a missão de expurgar os pecados de soberba da família, e sua filha é uma psicóloga que puxou a simpatia da mãe. Ele vive a vida que sempre quis, isolado da sociedade, mas sem se extrair dela. Esnobe no sentido de que preserva sua integridade contra a vulgaridade, e tem uma história pessoal que revela enfrentamentos com a polícia e refregas homéricas contra a ignorância local. Você não conhecia como era isso aqui na minha juventude, ele me disse certa vez, antes de viramos cada qual uma dose de sua pinga de engenho, e por aí vi que seu filho era a parcela de seu sangue que programaticamente só aquiesceria depois dos 50 anos.

Ele foi ficando velho e nós passamos, não sei porque, a nos vermos pouco. Certa vez imprimi um jornal, pelo simples medievalismo da coisa, e ele escreveu um conto para que eu ajuntasse à publicação. Ele escreve contos certinhos, muito bem escritos e bem humorados, e que nunca pediu a opinião de ninguém sobre eles. Só me repreendeu quando lhe disse que não teríamos um segundo exemplar, dizendo que tais jornalecos tinham que ter por direito uma segunda edição só por birra.

Necessitava vê-lo nesse final de semana. Subi a serra e bati-lhe à porta. Como naquela música do Roberto Carlos, tudo estava igual a como era antes. Ele um tanto mais magro e com uma certa erraticidade nos gestos, que me fez pensar na miséria da vida, mas ainda forte, ainda perspicaz, ainda um monumento moral e intelectual. Precisava vê-lo pois eu havia tido uma conversa com um colega e precisava me depurar do nojo que sentia. Esse colega defendia um caso de corrupção local que de certa forma me envolvia. O caso é que um dos motivos que pedi demissão do colégio particular onde eu lecionava, foi que o diretor dessa instituição fraudara um documento em benefício de uma aluna, fazendo com que ela ganhasse uma bolsa integral para cursar medicina na mais cara faculdade do estado. Por seis anos, a federação pagara para a moça a mensalidade e lhe dera mais um bônus de alimentação e moradia de um salário e meio por mês. Tudo porque o diretor assinara um documento dizendo que ela cursara o colégio como bolsista, tendo feito todo seu ensino em escola pública (o que é requisito para tais bolsas). Esse meu colega (tá bom, mais uma vez, se trata do N.), afirmava que não via erro algum nisso, que ele mesmo faria tal coisa em prol de um filho, se o tivesse, e coisa e tal. Errei feio ao me incomodar com isso. Sempre sei que diante tais pessoas o melhor que se há de fazer é virar as costas e seguir meu caminho calado. Conversar com tais pessoas me esvazia e me causa uma instantânea infelicidade. Pois eu jamais faria isso para um filho meu, lhe respondi, sabendo que a frase certa seria "jamais faria isso com um filho meu", mas o tal não acreditou. Tão enxovalhado na prostituição que não consegue ver que possa haver pessoas que pensam e agem diferentes dele.

De modos que falar com esse meu amigo me renovou os ânimos.

3 comentários:

  1. Charlles e suas crônicas curiosas e de forte sabor literário. Vem a mim uma indagação (sem ofensas, Charlles!), tais fatos são verdadeiros ou são aquelas jocosidades excêntricas fermentadas na cozinha da ficção?

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  2. Essas amizades significativas me vão rareando a cada ano que passa. Falo dessa amizade que coincide afinidade de espírito e de intelecto.
    Porque é muito bom estar entre pares com os quais não há qualquer constrangimento de se ser quem se é, com os quais se pode falar qualquer coisa sem rodeios, com os quais a conversa fiada está na ordem de se falar sobre o amor e a morte.
    Ah, mas que experiência é a de falar entre amigos sobre a morte a partir da Apologia de Sócrates...

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