quarta-feira, 24 de abril de 2013

Partículas Elementares, de Michel Houellebecq



Não se trata mais de niilismo. Um dos personagens de Houellebecq oferece mesmo um termo novo: materialismo absoluto. Partículas Elementares, o livro vitrine de Houellebecq, seria de um materialismo absoluto, se não fosse parte do diagnóstico sobre o estágio das ideias e da experiência a que o homem se encontra estancado nesse início de milênio. O livro se oferece ao leitor já com um selo de cansaço, de coisa antiga, de exercício de tautologias modísticas do pensamento já definhadas de interesse, com uma lucidez despretensiosa de saber que não provocará novo desespero, não fará que gerações de leitores jovens passem o resto de suas vidas dedicados ao lento suicídio hedonista em bares de Paris. Tudo o que Houellebecq fala nesse livro já foi há muito falado por outros de seus predecessores, com mais requinte, mais dor e sistemática acadêmica. Tudo que está ali no livrinho fácil de se ler e de narrativa ágil (à maneira do entretenimento ligeiro que se encontra como os mais vendidos das livrarias) é tão velho que, se não fosse o talento inteligente do escritor, seria risível, um riso vindo pelo humor involuntário das cenas grotescas e do desejo sexual patológico. Aliás, esse romance do francês por muito pouco deixa de ser literatura e se torna um estudo clínico de casos de neuropatologias: um romance que, em sua extenuação limítrofe quanto a tudo que não seja matéria, vai de contra a instituição da literatura no que tem de repúdio narcisista às questões clássicas do romance. Em certa altura, o leitor pode se perguntar se o único propósito de lê-lo não seria o enriquecimento do autor.

É um livro insípido como um vale da lua. Caso o leitor não tenha o suficiente preparo, no tocante a saber onde situar tal obra nas tantas seções do anedotário artístico, pode incorrer no erro de se limitar à apreensão do erotismo exacerbado da narrativa, ou, pior, aceitar passivamente aquilo como leitura do mundo, como fato incondicional da morte de toda filosofia. Tem sim uma luz fria, opressiva, que nada traria de benéfico aos anseios espirituais do leitor, se não fosse o desencadeamento das últimas três páginas. Pois, ainda que o livro seja quase um objeto cárneo, de tanta dessacralização de tudo que não seja carne, não consegue escapar de seu caráter espiritual. Não consegue escapar das velhas questiúnculas da escrita, na medida em que não escapa da raiz secular de que a escrita é uma busca espiritual. Os personagens do livro não creem em nada, não amam, não se comunicam, não são possuídos nem pela mais fagulhar impressão de calor. Cada qual é levado por um moto contínuo sem pensamento e sem emoção. A vida de Bruno, um dos personagens principais, só tem razão de ser pela fanática procura de satisfação sexual; todos seus pensamentos, de quando acorda até quando perde a consciência na maioria de suas noites etílicas, são preenchidos pela compulsão sexual. Ou antes a ânsia competitiva frustrada advinda da rejeição perene que Bruno sofre das mulheres, devido a seu pênis pequeno e ao seu começo de obesidade, e à sua carência de qualquer sex appeal. Seu meio-irmão Michel é o oposto de Bruno: indiferente ao sexo, solitário, silencioso, exilado das aparências da vida cotidiana mas absolutamente convencido de suas ideias científicas sobre a vanidade de tudo. Ambos tem uma mãe em comum, uma beldade super-inteligente que se assemelha em sua cumplicidade materna à indiferença de uma viúva negra e que os abandonou em criança. Aliás, os seres autômatos de Hoeullebecq são ultra-inteligentes, bastante franceses e modernos, bem sucedidos e distantes de qualquer tipo de indignação quanto a qualquer assunto. Numa leitura política, são os viventes perfeitos de uma França um passo antes do neoliberalismo sem a conjunção prática do estado, pois quase todos os personagens são funcionários públicos cientes de suas obsolescências, que se acham felizardos por terem entrado a tempo num emprego que lhes ofereçam um mini-apartamento alugado num bairro não de todo periférico em Paris e uma velhice solitária mas sem tribulações; estão certos de que passam por um definhamento importante e inevitável da política ocidental, que são os últimos espécimes desse arranjo, mas são conformados.

Na peça que leva o nome de Calígula, de Albert Camus, o personagem homônimo é questionado sobre sua maior qualidade, ao que ele responde ser a indiferença. Esse romance de Houellebecq professa um avatar mais avançado dessa visão predatória despida de piedade: seus personagens estão além da tragédia e do conflito. Estão por um fio de deixarem de ser humanos, não só na ausência do amor ou da mínima preocupação pela alteridade, mas também na ausência de ódio e de violência. Houellebecq vai dando os vários sinais de para onde a trama está sendo conduzida, com monólogos que estudam a sociedade burocrática a-sensorial de tarefas divididas da distopia de Aldous Huxley, com epígrafes de Auguste Comte, com a elaboração sobre as possibilidades práticas  da meiose nos trabalhos de biologia de Michel. Esses sinais surgem de forma estranha pelo texto, causando a sensação de deslocamento, assim como são insípidas as descrições sexuais, que lembram a escatologia didática do filme a que Robert De Niro leva a Cybill Shepherd para assistir, em Taxi Driver (enquanto o casal copula, a câmera mostra o fluxo de espermatozoides entrando pela cérvix na procura do óvulo). Bruno e Michel são tão imunizados do que compõe a ideia orgânica de homem, que através de suas reflexões passamos a aceitá-los como pertencentes a uma nova categoria biológica, de forma que nosso julgamento moral fica suspenso diante a inquestionabilidade de seu etnocentrismo racista, de seus egoísmos, de suas impiedades. São tão paradoxalmente profundos no que tem de certezas rasas, que o leitor começa a temer, ou a alimentar a simulação de um temor, de que talvez eles estejam certos. Suas ideias sobre o passado histórico e sobre o valor da cultura são fundamentalistas a um ponto concreto que eles decodificam os antigos esteriótipos sobre Nietzsche (segundo eles, um filósofo que privava o sacio hedonista sobre qualquer tipo de moral, e um dos pais do nazismo), sobre Proust (belo em sua obsolescência, sem função alguma para o mundo do novo milênio), e alimentam a consagração dos novos bezerros de ouro (como a concepção de Mick Jagger e demais astros do rock corporificarem uma deidade onipotente que nem na época dos faraós havia igual). Eles são os garotos de QI magníficos que a via sacra cuidadosa de fazê-los passar pelas vantagens herméticas das célebres instituições de ensino, pelas grandes faculdade, até seus lugares por direito de gestores do mundo, faz crer que são oráculos indiscutíveis da verdade, que não podem ser questionados. São o resultado de um darwinismo social que, por mais que seja moralmente injusto, é a realidade: os representantes superiores de uma raça que se deixará levar sempre, que os louvará.

Por isso, por bem pouco, os personagens desse romance não se tornam assassinos. Essa supressão de um caminho óbvio é um dos diferenciais de Houellebeqc sobre a grande tradição de niilismo povoada de heróis psicopatas das letras francesas. Houellebecq não recorre ao assassinato para concluir seu tratado sobre a psique doente do homem do novo milênio. (Brinca com isso, à maneira que faz lembrar os flashbacks dos romances com assassinos exóticos de Bolaño, com um astro de rock fracassado, um homem de beleza arrebatadora que cometia assassinatos rituais e os filmavam.) Seus heróis já não trazem o fardo da tragicidade existencialista dos filósofos assassinos de Dostoiévski e Camus, ou o niilismo vindo de um humanismo em negativo dos assassinos de Zola e Sartre, mas são pessoas lúcidas demais sobre a banalidade da existência para sequer terem anseios   de psicopatia destrutivos contra o outro. Eles simplesmente não enxergam o outro, ou o fazem apenas sobre um ótica estritamente funcional, para confeccionarem esse tipo de catarse.

A força desse romance de Houellebecq_ indiscutivelmente um grande romance_, está na escala precisa em que ele calibra sua sutil crítica ao desenvolvimento da humanidade. Por detrás de sua a-moralidade asfixiante, o autor tece uma obra que é quase um epitáfio à moralidade nunca sustentada pela espécie a que pertence. Por detrás da vida sexual hiper-atrofiada de Bruno, há um repúdio ao sexo que brinca com uma determinação punitiva que beira à expiação dos pecados do catolicismo: as duas personagens femininas principais do livro morrem em decorrência de seus pecados sexuais: mesmo a belíssima Annabelle, que pode bem ser apontada como o único ser cárneo de todo o livro que atingiu um ascetismo na maturidade que lhe configura uma graça quase tolstoiana, morre de câncer de útero, em decorrência se seus tantos parceiros sexuais e de seus três abortos. A outra mulher, única a qual Bruno concede o benefício fisiológico de ser sua companheira para prover suas necessidades da futura velhice, fica paralítica em pleno ato sexual com múltiplos parceiros, e se suicida em seguida por seu corpo não ser mais apto a dar prazer. Houellebecq, em suas intrusões na voz do romance, diagnostica que a isso chegou a liberdade sexual dos anos 60, a isso o culto esquizofrênico pela juventude, esse vazio triste da carne envelhecida e flácida, que não supre mais sua única função de ser maquinário sexual. Nisso, há alguns traços em Houellebecq que soam a Bashevis Singer. O final do livro_ que é arrebatador_, deriva para os santos sem deus de Camus, na medida que Michel é "iluminado" pelas figuras do Livro de Kells do catolicismo monástico irlandês, e cria uma teoria revolucionária que abole o sexo e purifica a nova raça humana de suas heranças deletérias, incutindo a necessidade de um amor comteano, matemático. Uma ironia auto-implosiva que dá lugar a um retrato preciso de nossa decadência feérica e sem retorno.


10 comentários:

  1. Puta merda, Houellebecq... sutil? Só e for como uma elefanta de fio dental no Arpoador. Um romenca preparado para ser escandaloso com sua metralhadora giratória contra tudo e contra todos, imerso em misantropia, misoginia... Além dessas qualidades, Houellebecq também é um oportunista, sabe lidar com o mercado, fazer autopropaganda, lidar com a literatura enquanto produto, e o dele é aquele abacaxi ácido, intragável, ideal para masoquistas. Explosivo que anula sua própria explosão com excssos que provocam, na verdade, a implosão do romance, que parece uma seleção de frases feitas de feitio catastrofista, amargo. Na boa, esse cara é só um babaca que deve ficar se drogando e, sob tal excitação, ejacular textos em sua ilusão egoística-masturbatória. Li este e outro livro dele: iguais em forma e conteúdo, só com ligeira alteração de trama. Espero que ele tenha parado de escrever.

    Rachel fez um texto comprido, dividido em várias partes, sobre essa figura e um cara que você não citou aí, Schopenhauer. Acho que são quatro, mas o primeiro tá em:

    http://rachelsnunes.blogspot.com.br/2012/04/como-perder-uma-discussao-mesmo-tendo.html

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    1. O cara é sutil na forma como propõe o seu tema principal, que é o fundo do poço em que a humanidade chegou. Não vi nada de Schopenhauer no romance, assim como nada que se aproxime a alguma filosofia sistemática. Nietzsche, como eu disse, é tratado com pouco caso e de forma bastante rasa, como qualquer outro pensador. Os personagens não estão nem aí para ideias, para ortodoxias e coisas equivalentes. O único pensador levado a sério ali é o mais inócuo de todos, o mais esquecido e ridículo, o senhor Comte, o pai do positivismo. E a ironia aí é bastante sutil: deparar-se com epígrafes de Comte em um romance moderno é como ver a Gisele Bundchen vestida de Carlota Joaquina; e ao mesmo tempo não é: qual pensador tem suas teorias mais aplicadas hoje que Comte?, com sua falta de transcendência, seu objetivismo execrável de tratar o homem como uma máquina isenta de paixões esotéricas e metafísicas, de uma sociedade dividida com cada classe fazendo roboticamente suas funções em prol do sucesso de um conjunto?; Michel percebe que o homem não vive sem religião, e no final do livro (esse final assombroso de ficção científica que não é), sua herança para a humanidade é uma religião do funcionalismo, assim como propôs Comte. Nisso está a tremenda sacada de Houellebecq: ele diz, vamos deixar de sermos hipócritas, com essa carência iluminista de pensadores distintos, o intelectual de nosso tempo, o gênio da raça e o que calça como uma luva ao estágio de desenvolvimento em que três milênios de filosofia nos levou é Auguste Comte, o cara que viu que nós não passamos de abelhas necessitados de direção. O sexo de todo o livro não creio que seja o chamariz para as grandes vendas de Houellebecq: em nada difere do sexo de Roth ou de qualquer outro escritor da moda_ mesmo os mais juvenis, como Murakami. O que torna grande esse romance é o que está por detrás da puerilidade do lugar comum do niilismo e da lubricidade.

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    2. Puta merda, eu escrevi um réplica enorme e quando cliquei para publicar ela se apagou! Como tô puto e despejei 1000 litros de adrenalina no cpérenbro, talvez volate depois para tentar recompor a coisa toda. Agora não dá, tô muito puto da vida.

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  2. Quando falta espontaneidade, resta somente competição por meio de imitação. Seja ela no sentido de obter prazer, de indignação, por exibicionismo vazio, ou até a prática de alguma virtude.
    Parece que o excesso de informação de hoje em dia não tem feito muito bem ao homem da ciência e da razão que busca, desvairadamente, uma identidade. Ele tá perdidão no meio do querer ser, ter e viver o que outro é, tem e vive. Assim, se o que se comunica por mimetismo direto ou induzido(mídia) é o indiferentismo, o consumismo, a ausência absoluta de transcendência, o sepultamento da metafísica e o gozo bestial dos prazeres carnais, não resta nada que não seja o quadro a que se refere a resenha( não li o livro).

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  3. Muito boa resenha, Charlles. Creio que captaste bem o espírito do livro e do autor. Preciso relê-lo, já fiz releitura de Extensão, mas não de Partículas.
    Houellebecq mesmo disse (não exatamente nessas palavras) que pretendia escrever de maneira que vendesse, mas sem acabar com a qualidade nem com a mensagem. Queria sim ser Best-seller, ganhar um bom dinheiro para ser livre, livrar-se do fardo do trabalho, do monótono trabalho atrás de computadores num departamento estatal. E, admito, agrada-me muito sua decisão (literária e de vida). Não pode ser que a quantidade de paus e bucetas, preconceitos e putarias hippies-rosacracianas-esquerdoides sejam tão chamativos assim para alavancarem suas vendas (ainda mais nesta época hypersexual, época que ele mesmo trata), e nem as idéias que não são originais, como já disseste, mas sim a maneira cativante por ele contada, fora sua inteligente atitude mediática. Em seus outros romances também somos levados a aceitar o que pensam os personagens (que têm ideias, algumas próprias, outras adaptadas, que, se não são verdade, provocam riso por soarem absurdas, mas nem tanto...) em relação à humanidade, fazendo nos assustar com determinados pensamentos que repentinamente surgem chutando a porta dos porões do nosso íntimo, sem saber se Houellebecq está falando sério ou apenas provocando. É um pau no cu. Que bom.
    Ah, ele gosta de Comte, mesmo.
    E agora não encherei mais teu saco saco, amém.

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  4. Só aproveitando um momento de acesso noturno, devo dizer que Schopenhauer oi devido ao curso de Filosofia a que me dediquei no Colégio São Bento, e o texto em questão, escrito quatro anos atrás, conjugou de certa forma obviamente o filósofo com o escritor porque, na época, lia Partículas Elementares, e quis juntar o útil ao agradável (ou ao desagradável, mais certamente). Era claro para mim, na época, que as críticas e o niilismo de P. A. deviam-se sobretudo a uma crítica ao materialismo (ou simplesmente sujeição ao reductio ad absurdum) do que a filósofos alemães outros que não Marx. Mas trabalho de "filosofia" para professores é uma coisa que se sujeita a pontos de vista dos professores, daí porque a nota para a monografia foi 9. É treiste dizer mas, no final das contas, até os professores sujeitam-se às normas do " direito" e "produzem" de acordo com o mestre.

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  5. Um romance não pode ser apenas um retrato (com todos os "riscos" de um retrato) de uma época? Ele tem q aliar, ao retrato, uma crítica?

    O q criticam os Nunes é a falta da crítica somente, ou o próprio retrato? Por causa de seu "pessimismo"?

    Qdo veio a Porto Alegre, no Fronteiras do Pensamento de 2007, disse q não escrevia exatamente sobre a realidade, q sua matéria-prima era a vida projetada. Não se trata apenas da demonstração de um projeto? Um projeto q não é de hoje...

    Aqui fala o Juremir Machado, q o traduziu (e deve dar aula pro Matheus, sei lá o q estuda, mas parece um famequiano - Famecos/PUCRS hehe):

    "Os livros de Michel Houellebecq falam do saber e do sexo como sistemas de hierarquia social, como mecanismo de reprodução do horror cotidiano, como formas de produzir ilusão por meio da publicidade e da mídia, como instrumentos de disseminação de amebas, como mecanismos de atualização da miséria de todos os dias, essa miséria do imaginário e da imaginação, essa miséria que se difunde no lugar-comum do 'todo político é corrupto' ou do Brasil das prisões lotadas como país da impunidade. Tudo lero."

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    1. Haha nunca tive aula com o Juremir e nem sou da Famecos, mas dos perdidos do Prédio 5, FFCH.

      Sobre sexo como sistema de hierarquia ele explora mais e melhor no Extensão. Em Plataforma temos a globalização, o islã, o (não)problema do turismo sexual e, vejam só, o amor. Sim, há personagens que sentem.

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    2. "Qdo veio a Porto Alegre, no Fronteiras do Pensamento de 2007, disse q não escrevia exatamente sobre a realidade, q sua matéria-prima era a vida projetada. Não se trata apenas da demonstração de um projeto? Um projeto q não é de hoje..."

      http://www.youtube.com/watch?v=UslZnPqfkw8

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