segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Eu e a Charlize Theron em uma Ilha Deserta



Tenho um grande amigo que gasta uma substancial parte de seu tempo e uma considerável quantidade de seu dinheiro em apostar religiosamente em um dos jogos da lotérica. Quando eu era solteiro, e não havia qualquer impedimento para que ele viesse à minha casa a qualquer hora, mesmo nas horas que os povos ocidentais arranjaram para coincidir o translado do planeta com a conciliação do sono, ele chegava já do batente da porta falando em voz alta: "Agora achei! Agora não me escapa! Não, não! Agora pode ficar tranquilo que dessa vez é tiro e queda!" E eu, que sabia pela exposição exacerbada a tais jactâncias de exclamações do que se tratava, afastava a cadeira para que ele se sentasse e desdobrasse por cima da mesa o seu novo código sonambulicamente rascunhado por todas umas cinco páginas de um caderninho de espiral, onde ele arvorava sempre haver conseguido arrancar da sorte os números que daria na semana o prêmio de dois milhões de reais. Ele aparecia com uma miscelânea das mais disparatadas somas algébricas tiradas de fontes tão tresloucadas quanto frases de João Figueiredo ouvidas em programas de televisão, ou quantas vezes uma mulher desconhecida dissera a palavra "somenos" em uma conversa de rua quando ele passava, ou quantas placas de carro com o final 6 ele vira transitando de frente à sua casa em uma fração de meia hora, ou quantos dias haviam se passado desde que seu filho não lhe telefonava, e quando seu filho o fazia, quais números correspondiam às cinco primeiras letras da palavra dita inicialmente por ele pelo telefone; de forma que, se seu propósito não se sustentava além de sua inexorável fé quando os verdadeiros números eram anunciados no resultado do prêmio, ao menos ele demonstrava que sua genialidade extravagante o eximia do tédio, pois era só as apostas se abrirem para o novo jogo que ele já se embrenhava em seu universo de decodificador de sinais cifrados do destino. Certa vez questionei a ele se não tinha medo que, numa dessas, ele errasse numa intuição terrivelmente certeira e descobrisse a face de Deus nos números, ao que, com o olhar arguto perdido no ar, talvez somando os algoritmos dessa minha frase para ver se satisfazia sua estética de apostador, respondeu: "Rapaz, se eu ganhar a bolada nessa semana, eu dispenso Deus; será um a menos para ele se preocupar. Aliás, Ele pode até passar a agir contra!"

Mas duas vezes ele acertou os números corretos. A primeira estava em um boteco em São Paulo e de tanta felicidade, arremessou o antigo rádio do dono do bar pelo qual conferira o prêmio direto na rua, passando por cima dele com o carro até reduzi-lo a uma pasta, e anunciara que todos iriam beber e comer ali o dia todo por conta dele. O dinheiro ganho, ele disse, não deu para pagar o rádio, pois o campeonato de futebol que gerava os resultados fora tão previsível que meio estado acertara junto com ele. A segunda vez ganhara o equivalente hoje a 50 mil reais, que os irmãos levaram um ano depois quando a loja de tecidos que tinham em sociedade falira e só sobrara ele, dispensado da realidade pela compulsão das adivinhas matemáticas, para pegar a bomba no colo.

Eu nunca joguei na lotérica e nunca ganhei prêmio algum, até o natal do ano passado, quando a distribuidora de vinhos aonde compro meu Gato Negro me sorteou com duas garrafas de Pata Negra. Depois, passados três meses, meu advogado me liga dizendo que conseguiu um mandado de penhora on-line por parte do ministério público, com o qual eu tinha o direito de retirar um valor substancial das contas de um banco pelo processo ganho de danos morais que eu havia aberto contra este banco. O mesmo advogado, um ou dois meses depois, me liga dizendo que o outro processo que eu havia movido para revisar os juros cobrados no financiamento de meu carro havia sido dado causa para mim, com o que eu já saía ganhando a restituição de uma outra bolada. Eu abracei minha esposa na noite desse dia, perguntando-me se minha estrela havia mudado inadvertidamente e eu passara a ter azar no amor e sorte no jogo, e não o oposto, que havia sido demonstrado por quatro décadas de bilhetes de amor recebido por moças abnegadas que aceitavam sair comigo a pé, sem que eu tivesse ganho nenhum carro em lugar algum.

Pois nesse ano ganhei livros de amigos, como disse em outro texto, e a Companhia das Letras me contactou com a proposta de me enviar dois livros por mês, sob a minha escolha, para que eu os resenhe, sendo que os primeiros serão o assim manifestamente desejado por mim em outro post, Joseph Anton, do Salman Rushdie, e Os Enamoramentos, do Javier Marías. Tenho absoluto receio de que meu senso de humor desavergonhado me leve a apostar na mega-sena, só por brincadeira, para não passar pelo pesadelo de ver minha esposa saindo com meus dois filhos pela porta da frente, me deixando sozinho para sempre em uma mansão no Guarujá adquirida com a fortuna do prêmio. E este é o propósito deste post: contar essas últimas boas novas. Sinal um tanto demonstrativo do incansável ser humano mesquinho que hora em hora surge de mim; pois, semelhante àquela batida piada de que do que serviria a alguém ficar naufragado em uma ilha deserta com a Charlize Theron, se não tivesse a quem contar a imensa sorte, do que valeria para mim se não contasse a alguém?

14 comentários:

  1. Post lega. Mas que foto feia! Hehehe.

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    1. Eu tinha pedido para a Charlize não tirar foto sem que eu antes vestisse minha tanginha tigreza...

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  2. Parabéns! Acelera a colocação do carpete porque as estantes vão ficar mais pesadas!

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  3. Ah, não. Cia. das Letras & Charlles. Submeteu-se ao GRANDE CAPITAL dos Schwarz, resenhas condicionadas ao interesse da ELITE. E vai ficar metido. Parei de ler! hehehe

    Parabéns! Já te elogiei demais nos últimos tempos, mas porque é verdade: um dos melhores cantos da internet sobre literatura y otras cosas.

    Mas, perdão, fiquei curioso: resenhas serão postadas aqui (e só aqui?), né? E estavam te VIGIANDO ou tu mesmo que enviaste as resenhas postadas aqui ou o que?

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    1. A Cia que me propôs, nos comentários ao post sobre o presente do Luiz, através da gatíssima e educadíssima moça que me pediu meus e-mails lá. Não sei como chegaram até aqui. Há algum tempo eu deixava comentários ligeiros no site da empresa informando sobre textos meus de livros da casa, e eles linkavam o blog em uma seção de resenhas. Sugeriram o Marías, por eu ter escrito aqui sobre "Todas as Almas", e aceitei.

      Já que o arranjo ficou em eu escolher os livros, eu não terei que ler coisas que não gosto. E a Cia é a Cia...

      Falei com o Milton Ribeiro, e ele permitiu que as resenhas sejam publicadas nas colunas sobre cultura do Sul 21. Mas todas elas serão publicadas aqui, sobretudo.

      Obrigado, Matheus.

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    3. A Companhia é a única que me manda livro para resenhar, às vezes mais do que dois. Não é à toa que está onde está.

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    4. Já catei muitas informações boas de livros de você, Cassionei.

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  4. A primeira parte me lembrou O Jogador, do Dostoiévski, com a mesma obsessão de esquemas infalíveis para ganhar na roleta e com a subjacente metafísica da sorte ancorada na crença do destino na mão do tal deus.

    Meu pai pasou a vida inteira jogando em loterias; ganhou umas vezes, pr~emios michas, mas nunca desistiu. Até que morreu. Já pensei, a título de homenagem, prosseguir na faina. Mas esse troço deve viciar, gerar projetos infinitos com seus sonhos banais, que envolveriam uma quinta em portugal e noites regadas a Camila Pitanga. melhor não.

    Mas a Companhia das Letras pede resenhas e só paga com os livros ou tem grana envolvida na parada? Seja como for, é boa notícia. Ou você está com as costas quentes, ou eles estão superestimando seus talentos*, ou eles tão levando a blogoesfera a sério, o que deviam faz tempo, pois é um bom local para difundir livros e, logo, vendê-los. Fico a pensar qual será a pretensão deles, antes tão e só dedicados às vias habituais das revistas e cadernos literários nos jornais de maior circulação, etc.

    *essa é pra te deixar puto

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    1. Só os livros, o que já é mais que suficiente.

      A editora costuma fazer isso já há algum tempo com a blogosfera. Vide aí o que disse o Cassionei.

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    2. Outras editoras pedem que divulgue a logomarca, faça sorteios, divulgue promoções, enfim. O blogueiro vira escravo, pois não ganha nada a não ser a cortesia de exemplares. Com a Companhia não tem nada disso.

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  5. sinal de q são inteligentes. pegam seus livros, dão prum baita resenhista e pedem q escreva (divulgue-os)... em troca dos livros!
    mas q grande negócio pra eles. e pra ti, charlles! acompanharemos.

    eu jogo na mega de vez em qdo. é ridículo.

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