domingo, 10 de julho de 2011

Um Livrinho Pra Lá de Envolvente

Faço bem em seguir as recomendações dos melhores livros lidos por alguns escritores. Li os dez livros imprescindíveis para quem deseja ser um escritor, no parecer de Hemingway, e foi graças a ele que cheguei a um dos mais deliciosos livros de memórias, Longe, e Há Muito Tempo, do Hudson. Depois da dupla de coleções célebres de contos de Borges, os outros livros desse grande argentino que mais visito, são suas concisas e magníficas resenhas e prólogos, da Biblioteca Pessoal, Textos Cativos e Prólogos com Prólogo de Prólogos. Recentemente o Joca Terron referiu-se, no blog da Companhia das Letras, a um Borges educado por um pai adepto de herméticas leituras de anglo-saxônicos medievais. Na verdade Borges foi um devorador de literatura de gênero que pouco se encontra entre escritores que admitam seu apreço pelo que taxou-se como subliteratura. E Borges faz questão de mencionar um a um desses escritores dissolutos nos títulos acima mencionados. Ellery Queen, S. S. Van Dine, George Simenon, Olaf Stapleton e uma série de autores policiais e de ficção científica, que dividem espaço na cabeçeira de Borges com Faulkner, Rudyard Kipling, Dante e Shakespeare.

Baseado nesse senso de leitura em que Borges assumiu como única disciplina ler o que lhe dava prazer, é atribuído ao autor de O Aleph o mérito de ter tirado do esquecimento o autor inglês G. K. Chesterton. Graças a Borges, as reedições da obra de Chesterton se perpetuam felizmente pelo mercado editorial brasileiro. Em cada volume vem o aval do apadrinhamento de Borges. Nesse que está aí acima, reproduz-se na contra-capa a sua frase certeira: "A literatura é uma das formas de felicidade; talvez nenhum outro escritor tenha me proporcionado tantas horas felizes como Chesterton." Realmente, ler esse volume de contos policiais protagonizados pelo inconspícuo e improvável detetive Padre Brown é não só uma maravilha, mas um descongestionante para esses tempos cíclicos em que mais uma vez se escolhe ficcionistas "geniais" para salvar a narrativa.

Nesses dozes contos encontra-se todo o complemento para noites chuvosas recolhido debaixo do edredon na cama, e para leituras em campos verdes sossegados escorado a uma árvore de copa espalhada. A Londres neblinosa, com suas ruas soturnas e frias, assim como as mansões e reuniões de secretos grupos fechados, recheiam o livro de alto a baixo, junto aos assassinatos sensacionais e roubos implausíveis. Mas o melhor não é o afeiçoamento a essa sublevação da realidade, mas o estilo sarcástico, engraçado e afiado de Chesterton. Vejam só ao que Borges se referia, no explícito excerto abaixo:

Se você encontrasse um membro daquele clube seleto, "Os Doze Pescadores Verdadeiros", entrando no Hotel Vernon para o jantar anual do clube, observaria, quando ele tirasse o sobretudo, que o casaco dele é verde e não preto. Se (supondo que tivesse a audácia e a petulancia de dirigir a palavra a tal pessoa) você lhe perguntasse o porquê, é provável que ele respondesse que faz isso para não ser confundido com um garçom. Então você se afastaria com um rabo entre as pernas. Mas deixaria para trás um mistério ainda não solucionado e uma história que vale a pena contar.

Se (para insistir no mesmo filão de improváveis conjeturas) você topasse com um pequeno padre meigo e incansável, chamado Padre Brown, e lhe perguntasse qual ele julgava ter sido o lance de sorte mais singular de sua vida, a resposta mais provável seria que de modo geral o seu melhor lance de sorte acontecera no Hotel Vernon, onde ele havia impedido um crime, e, talvez, salvo uma alma, apenas por escutar passos no corredor. Talvez ele tenha certo orgulho desse palpite surpreendente e maravilhoso, e é possível que o mencione. Mas como não é nada provável que um dia você suba na escala social o suficiente para se encontrar com Os Doze Pescadores Verdadeiros nem que um dia você desça baixo o suficiente entre criminosos e cortiços para conhecer Padre Brown, receio que acabe ficando sem saber da história, a menos que seja por meu intermédio.

14 comentários:

  1. Dele eu li O Homem Que Era Quinta-feira, e também achei muito bom, muito envolvente. Aí pesquisei a biografia do autor e descobri que ele é chegado numa abordagem mística, numa lição de moral. Aí desanimei, achando que ele deve terminar todos os livros mais ou menos da mesma maneira. Ou seja, é um desses autores que eu parei de ler para preservar com uma boa impressão na minha memória.

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  2. Caminhante, Chesterton faz parte de uma longa lista de autores católicos, como Giovanni Papini, C.S.Lewis, François Mauriac, Graham Greene, etc. Li quase todos os contos do Padre Brown (ainda não li o Homem que Era Quinta-Feira, que Borges também escreve uma resenha de fã), e, tirando menções a ortodoxia da igreja com finalidades a firmar a personalidade do herói dessas narrativas, não vi nenhuma doutrinação. Mesmo porque Chesterton tem consciência demais de que o que escreve não passa de uma brincadeira em que testa os limites da realidade e da crença dos leitores para usar esse veículo como pregação. E, mais uma vez, Borges jamais aprovaria isso, exímio conhecedor do ofício que foi.

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  3. Isso! Chesterton não tem nada que ver com as canalhices missionárias transvestidas de Grimm, that sorry excuse of a literature - que é na verdade catequese - que foi C. S. Lewis. Cuidado, heim, Charlles. Escreveu sobre o Chesterton e vai ver o seu blog invadido por uma multidão de neocons empedernidos, vindos quentinho do Google.

    Só uma coisa a reparar. Faulkner foi quando muito apenas marginal dentre as influências de Borges.

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  4. Luiz, até o meu amigo Milton Ribeiro, leitor inveterado, quando citei certa vez em seu blog Chesterton, fez um esgar de repúdio. Mas as causas formam outro assunto.

    Sabia que deveria aparecer uma ressalva aqui sobre Faulkner nas leituras de Borges. Mas são várias as resenhas que Borges faz dos livros de Faulkner, e todas elas muito elogiosas. Borges chega a falar, ipsis litteris, que o norte-americano foi o pai do romance do século XX. E, lembre-se, Borges foi tradutor da obra de Faulkner na Argentina. Não creio que Faulkner chegue a ser influência para Borges (aliás, quais as influências de Borges já dá uma tese acadêmica, pois parece que Borges nascera com uma voz própria), mas está longe de ser um interesse marginal para ele.

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  5. Confesso que não sabia que Borges traduzira Faulkner na Argentina. Quanto ao comentário sobre ele ser o pai do romance no século XX, ora, você sabe bem que Borges era chegado a sentenças peremptórias e universais que depois eram deixadas de lado. Como quando escreveu no prefácio de Bioy Casares, em Invenção de Morel, de que esse era um romance perfeito.
    Reitero que os temas de Faulkner não perfazem os interesses e temas da literatura de Borges. Hawthorne, Melville e Henry James, principalmente o The turn of the Screw, são candidatos mais prováveis.

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  6. Que merda, Luiz! Escrevi uma longa resposta e apertei uma tecla sem querer aqui que apagou tudo. Vou resumir:

    Estamos concordando com a mesma coisa: Faulkner não foi influência para Borges, mas Borges demonstrou que o leu avidamente. Só numa derivação muito perigosa poderia-se cogitar uma intersecção entre Borges e Faulkner nos contos de Borges sobre a macheza do sul e os gaúchos (como no conto "O Sul").

    Como são variadas as interpretações sobre Borges. Eu tenho uma visão diferente da sua sobre a frivolidade de Borges em ser sentencioso. Já o vejo como um escritor auto-sancionador e gerente compulsivo da coerência interna do que escrevia. São vários os exemplos de textos em que se repetem sentenças inteiras e ideias, escritas em diferentes épocas de sua vida, para dar o mesmo posicionamento sobre um tema. Chega a ser irritante. Cito dois: dois textos sobre o livro, e dois textos sobre Swedenborg. É como se Borges estivesse repetindo a temática de um de seus mais célebres contos: "Pierre Menard, autor do Quixote".

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  7. Confesso que só conheço do autor sua má reputação. Confesso que sua má reputação me enche de desconfiança. E que os elogios de Borges a ele também. E que nem todos os elogios de escritores a outros merecem crédito: alguns só elogiam aqueles que não representam ameaças à própria noção de posteridade. Confesso que essa palavra foi usada com más intenções.

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  8. Pois é, pois é, pois é, não entendo o motivo de ele ser ídolo de uma direita arrogante e religiosa. Deve ser um bom escritor -- confio cegamente na tua avaliação -- mas sua claque é insuportável. Ele é a resposta quando alguém de esquerda diz que a direita não tem intelectuais do mesmo porte...

    Mas se é envolvente... Mais uma crítica dessas e tu me obrigarás a lê-lo, cacete.

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  9. Cara, em leitura eu sou completamente despolitizado (ou Apolítico). Juro que nem me passava pela cabeça que Chesterton fosse motivo de contenda política. Eu achava que sua indiferença por ele fosse, apenas, por ser ateu e julgá-lo católico demais. Na minha estante, Galeano e Saramago dividem lugar com Llosa e Isaiah Berlin.

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  10. Rachel, sou tentado a parafrasear Freud: às vezes um escritor divertido é só um escritor divertido.

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  11. Yo no creo en entretenimientos, pero que los hay, los hay... o no? Hay, pero no pura.

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  12. Fiquei curioso. Quais são os dez livros imprescindíveis para aspirantes a escritor, segundo Hemingway?

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    1. Alguns deles, GG:

      Guerra e Paz, O Vermelho e o Negro, Os Buddenbrooks, os contos de Turgueniev, Longe e Há Muito Tempo, As Aventuras de Huckleberry Finn, O Emblema Rubro da Coragem, O Morro dos Ventos Uivantes, Crime e Castigo...

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  13. bacana seu blog. só conheci agora. sobre Chesterton, li o clássico Ortodoxia e, agora pretendo ler os contos. abs.

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