Há uma sensação descrita por Schopenhauer que me impressionou pela perenidade que evoca em minha vida: quando eu era criança, o filósofo diz, eu sempre corria eufórico quando alguém chamava em frente de casa, para abrir a porta, pois sabia que eram sempre boas novas e informações interessantes que esse alguém trazia; já quando me tornei adulto e mais conhecedor do que o mundo tem a oferecer, quando alguém bate à minha porta eu me refugio debaixo dos lençóis, com um medo profundo. No meu caso, os três prédios onde morei até meus vinte e cinco anos, com suas escadas infinitas, sua ausência de charme e seu cinza hermético que nem o rosa e o amarelo mais alegre conseguiam esconder, me deixavam de sobreaviso sobre as desgraças da chegada sempre que, ao voltar das escolas que frequentei, eu via ao longe suas figuras ameaçadoras de galeões atracados confrontando solenemente o céu da tarde. Meu pai me dizia que seria impossível eu sobreviver numa cidade grande, pois a genética que herdei do seu pai meio índio determinaria para sempre que eu nunca faria parte dos que toleram morar na vertical. Talvez por isso eu vivia em estado de premonição, e ainda hoje, que moro numa casa bem estabelecida pelas leis da física e pelas garantias de posse cartorial (no caso de um prédio cair, o proprietário tem direito a quê (se sobreviver)? uma parcela do espaço aéreo?) bem colada à terra, tenho o mesmo sonho complicado e terrível, caríssimo pelo que exige de cenários e efeitos especiais, de que nunca consigo sair de dentro de uma escadaria labiríntica, da qual pelas portas eternas que a margeiam aqui e ali, nos andares, eu apenas encontro um salão de tamanho cósmico lotado de cubículos com vasos sanitários (ah, credo!).
Pois bem. Quando tinha lá meus dez anos, a primeira premonição se concretizou. Cheguei da escolinha onde estudava, trazido pela mão de uma antiga funcionária do apartamento 210 de um edifício chamado Dom Abel onde morávamos, e, antes de subirmos pela portaria, fomos atraídos pela multidão parada em estado de perplexidade dentro da garagem. Ficamos lá parados, esperando que a onda se decidisse e nos passasse um pouco de esclarecimento, quando um homem de camisa social aberta no peito, gravata e calças de brim, os cabelos despenteados e as chaves do carro nas mãos revelando o atarantamento de ter sido pescado da normalidade cotidiana para um dos nós do absurdo (aqueles nós contra os quais, mesmo no fundo da nossa descrença, rezamos todas as noites para que nunca os encontremos, nunca um deles paire sobre o caminho para tornar nossas vidas interessantes, nunca!) atravessara à nossa frente. "É o pai dela.", ouvi alguém dizer. A multidão foi se abrindo para a passagem do homem, e aí pude ver o que estava no centro do tumulto, o que o homem pegou do chão sem nem pensar em enrolar de novo no manto branco que alguém havia depositado por cima, e que o homem voltou pelo sentido em que havia vindo com um choro ainda não concretizado, não acreditando ainda, e passou por mim gritando algo que não me lembro se era "saiam daqui", ou "o que vocês estão olhando", ou alguma outra admoestação contra nós, o bando de moscas em torno para sugar o chorume de sua desgraça. Só vi a perninha escapada do pano e pendurada das mãos dele: a menina de oito anos que se precipitara janela afora do décimo segundo andar, que não a conhecia, que de repente todos, ao longo dos dias que se seguiram de ruminação sobre o acidente, se viram perplexos por não guardar nenhuma lembrança de que aquele homem arruinado um dia houvesse dividido o espaço do elevador com um de nós, se sentado num dos bancos do térreo de frente ao playground, com um jornal nas mãos, ou que algum dia houvesse aberto o porta- malas do carro e se visse a estampa acolchoada do Ursinho Puff ou da Turma da Mônica na frente da lancheira rosa, algum indício da radiância de boa digestão e de conformismo feliz que enxotasse um pouco a imagem de dor e o tornasse humanizado pelas provas de que havia sido mesmo pai. Falaram que a menina era surda muda, que a trancavam em casa por vergonha, que, contudo, a empregada que se distraíra do cuidado dela teve que ser defendida pelo síndico para não apanhar do homem. E cada noite, pelos próximos mêses, eu julgava ver a menina parada em frente à minha cama, como se também aquele processo pela qual passara a aprisonara nas escadarias opressivas e ela se amparasse em mim para achar a saída.
Corre o tempo. Tenho quinze anos. Moro em outro prédio. De frente a esse, há um grande e surrealístico depósito de ferro velho, do qual todo dia ao acordar vejo de lá do décimo andar seu telhado espraiado e descontínuo, a compostura de cobra velha saindo aos poucos do negror da madrugada para evidenciar as chaminés das quais saem a fumaça das fundições vindas de dentro. As pessoas que moravam lá não paravam de trabalhar, ou, ao menos, labutar seus exercícios secretos entre uma bebedeira e outra. Era uma profusão de homens e mulheres que eu não sabia distinguir quem era quem, muito parecidos em seu ar indolente e reservado, me lembravam os Morlocks do livro de Wells, saindo das catacumbas do depósito, só de shorts (os homens) e vestidos de chita desbotados e sujos (as mulheres). Apesar de nunca fazerem nenhum tipo de contravenção contra nós _ a não ser a música alta e a pose individualista de a-civilidade _, alguns moradores haviam tentado tirá-los de lá por não sei quantos recursos jurídicos, em vão. Quando estava na esquina, voltando do Colégio Marista, a cena se repete, com alguns acréscimos sofisticados: uma multidão tampava a porta do edifício por toda a rua; policiais saíam e entravam do depósito e faziam bloqueio em frente. Pensei: porra, finalmente aquela alegria toda de Cannery Row, aquela bonomia simpática de supermendigos caiu por terra, nada mais de vinhos à noite correndo de mãos em mãos, cumpriram o esperado e um dos maridos esfaqueou a mulher ou foi uma chacina geral. Um vizinho, no cordão externo de gente que nos impedia de sequer chegar a dois metros do portão de casa, me passou o que conseguiu depreender da coisa: um dos homens do depósito achara uma pedra radioativa de uma máquina de Raios-X, nas ruínas de um hospital, a trouxe para cá e a desgraça estava feita. Ficamos mais dois dias no apartamento, até que autoridades govenamentais deram ouvido aos especialistas sobre contaminação nuclear que haviam aportado em Goiânia do mundo inteiro, e determinaram a evacuação de toda a rua. Dias depois se propagou que aquele era o acidente nuclear mais grave da história, proporcional ao que ocorrera em Chernobil. A pedra, catalogada como exemplar do Césio 137, matara a maioria daqueles homens e mulheres, matara a menina Neide Aparecida das Neves, uma das crianças que morava no depósito, deformara uma porção outra de pessoas, incluso um colega advogado de minha mãe que, maravilhado pela beleza do Césio, comprara um dos fragmentos do funilero e a guardara no bolso da calça (os médicos lhe amputaram a perna, e por muitos anos ele participou d grupo de altíssimo risco que recebe do goveno federal remédios para controlar a imunosupressão).
Nesses dois eventos, o que falaram para mim sempre foi: fique aqui, não vai lá! No periodo de quarentena em que ficáramos desprovidos de nossa casa, minha família e eu fomos morar em um outro apartamento. Lá, a terceira novidade shopenhaureana a me esperar quando voltava da escola foi um tio trancado no sombrio e silencioso apartamento, o qual, ao contrário da norma, minha mãe já da portaria me instigara: "Corre e vê se sobe lá para impedir que seu tio se suicide!". Mas esse é tema para outro texto.
Nossa, você morava em frente ao prédio com césio!
ResponderExcluir(eu sei que foi um comentário completamente redundante, mas é o que dá vontade de dizer).
Eu morei em casa e apartamento. Meus pais moraram nos dois quando casados e quando se separaram meu pai ficou na casa e minha mãe passou a morar em apartamento. Por isso eu me considerava eclética, ao contrário dos outros que declaram sempre querer morar em casa se passaram a infância em casa e apartamento se moraram sempre em apartamento.
Quando estava procurando a MINHA moradia, começamos com prédios novos, que eram caros e muito apertados. Aí decidimos procurar apenas os antigos, com o raciocínio de que valeria a pena trocar todo encanamento se necessário. Até que uma amiga, cuja família tinha uma pequena construtora, nos mostrou uma casa que a família dela estava vendendo. A casa ficava na pqp, longe de tudo e difícil até pra chegar de carro. Mas assim que pus os pés lá dentro me senti bem, como se tivesse recebido um vento fresco no peito. A partir de então, passamos a buscar uma casa.
Hoje quando vou visitar minha mãe sinto uma certa angústia. Ter que dizer oi pro porteiro, subir no elevador, passar pelo corredor, pra finalmente chegar. Isso sem falar da altura.
Caminhante, eu odeio prédios. Sou realmente um matuto do interior. Moro numa casa ampla aqui no interior. Os imóveis são bem mais baratos em cidades pequenas, e eu adquiri uma casa no bairro histórico da cidade (ainda mais desvalorizado por a maioria da população não dar bola), com quintal com pé de manga, acerola, abacate, etc. Com certeza bem mais barata que o menor barracão de Goiânia. Adoro aqui, e tenho certeza que a felicidade se relaciona diretamente com o bem estar em casa.
ResponderExcluirSim, nenhuma vírgula ali de cima foi inventada. Por algum tempo fiquei preocupado se meus filhos nasceriam com alguma forma de mutação, o que, graças a Deus, não ocorreu. Eu e alguns amigos furamos o bloqueio (que não era lá essas coisas, no desmazelo característico das instituições do Estado) e subimos até o apartamento para ouvirmos vinis regados a álcool. Minha mãe mora lá até hoje. De frente, há a área vazia onde antes estava o ferro velho, cimentada (dizem que foi colocado três metros de chumbo compactado abaixo do cimento), desapropriada e não passível de venda, com algumas árvorezinhas muito verdes florescendo aqui e ali. Elas não brilham no escuro.
A minha primeira frase saiu toda invertida, era pra ser "você morava no prédio em frente ao com césio".
ResponderExcluirNão sei se eu seria capaz de viver no interior. Sempre estive em capitais - lamentando não poder andar de bicicleta, detestando esbarrar nas pessoas, desconhecendo os lugares badalados. Ao mesmo tempo, sempre estive envolvida com coisas que às vezes me fazem Curitiba parecer pequena. Por hora, apenas interiorizo minha cidade grande. Quem sabe um dia.
Que pena que as árvores não brilham no escuro, senão pareceria um pedaço de Avatar em plena Goiânia... (ri muito com teu comentário).
Como são as coisas!!! Só agora que percebi o incrivel elemento lúdico: meus amigos e eu aproveitávamos um prédio de onze andares interditado por uma catástrofe mundial, sem nenhuma alma viva por perto, para ensaiarmos nossa banda de rock. As pessoas que passavam de longe e os eventuias guardas que na verdade só faziam rondas no papel, deveriam associar a guitarra distorcida, a flauta do demônio e a bateria do capeta como algo assimilado pela catástrofe. Deve ter algum cientista russo que vai escrever em suas memórias sobre a luz solitária da janela do alto e a canção desesperada dos condenados.
ResponderExcluirA propósito, viu lá no post da Patagônia a resposta do Vladimir ao texto (nos comentários)? Influência sua.
Eu vi sim! Achei muito bacana e irônico. Irônico porque eu jamais procuro pessoas que fazem parte do meu passado. Nem se quisesse poderia fazer isso, esqueci o nome de todo mundo.
ResponderExcluirVocê acerta a mão quando escreve ensaios. Quem diria que Schopenhauer e condomínios classe média de Goiânia ocupariam algum dia a mesma frase sem alguma dissonância
ResponderExcluirVocê imita alguém desavergonhadamente quando rascunha os seus ensaios?
Teu texto evocou ainda outra coisa. Por que é que esses feladaputas que escrevem bem ainda por cima não padecem da aborrecida e arrastada vida dos demais mortais?
hahahahaha. Bom, Luiz, eu passei muito tempo escrevendo com medo e com variados graus de culpa (se saía bom, me vinha o arsenal de autodepreciação de que EU não podia fugir um pouquinho sequer do senso comum). E...eu tenho uma terrível autocrítica, que acho ser derivado do excesso de leitura; devido a ela, passei muito tempo sem escrever, ou escrevendo em rodapés de cadernos ideias que nunca se concluíam e que eu nunca levava a sério. Minha decência em não te importunar além do elogio gratificante que me fez me impede de falar aqui de outros projetos mais ambiciosos, mas esse artifício do BLOG, que por muito tempo eu via com preconceito (coisa de fracassado, vou ser sincero, me desculpem), me ajuda de maneira que me fez pagar a língua. Se sai bem, me alegro; se sai mal, eu digo: porra, é só o maldito de um blog, o equivalente menor a um samizdat ou a um grafite virtual melhor programado.
ResponderExcluirA melhor coisa que aprendi no ramo da escrita _ e me perdoe as citações _ é falar o que se quer, sem vergonha, pondo a cara a tapa, sem medo. Assumir-se como INTELECTUAL no bom sentido, no sentido saidiano, não no sentido fernando henrique e seus algozes. E tem sempre o eco de Said na cabeça, e a esculhambação séria e com classe de Pynchon para equilibrar as coisas.
Muito obrigado pelas suas palavras. Mas descordo: sou o campeão da trivialidade, minha vida tem tantas doses cavalares de trivialidade que forçou a fomentar um humor mais acentuado para o pobre poder aguentar.
NAVEGANTES(à “WONDERWALL”)
ResponderExcluirby Ramiro Conceição
Por mais assustador que seja,
não há qualquer porto seguro
a não ser no mar de si mesmo;
e, mesmo assim, é só por instantes:
a nossa essência é dos navegantes.
O resto é a religião dos náufragos
em que são salvos só os capitães!
acabei imaginando a bandinha tocando o radiohead do título lá, charlles, embora a evocação agora pareça melhor combinar com um pink floyd "das antiga"
ResponderExcluiraliás, tenho q me lembrar o nome da banda citada pelo homem da locadora. ele falava com outra pessoa sobre essa banda de q não me recordo o nome, essa banda q seria "a pink floyd dos russos". fiquei curioso, mas sou um esquecedor... algo breve como "kina"... mas ainda nem googlei, deve ser fácil
fiquei na mesma frase estarrecida da caminhante
"Nossa, você morava em frente ao prédio com césio!"
ela falou em bicicleta e deu vontade de morar ONTEM no interior. minha esposa, a bianca, morou em resistência-arg, e tem uma saudade disso...
O Pink Floyd dos russos? Me deixou curioso. Olha que eu conheço muitas bandas de progressivo, e nada me vem à cabeça. A não ser que seja uma boa banda de progressivo iuguslava, chamada Tako. Pergunte ao cara e me informe depois, se puder.
ResponderExcluirQuando me mudei para o interior, achei que não suportaria. Voltava todos os finais de semana para a capital. Hoje, não suporto ficar um dia inteiri enfrentado trânsito etc.
Claro, na época (1988 ou 1989 ?) não havia o Radiohead. A referência da música foi uma associação sortuda na hora de nomear o texto.
Ah! Rômulo, vou ter que te contar... sou um xereta, e acabei encontrando uma foto sua e um texto (para concurso?!). Não fiquei surpreso. A imagem que tinha do Ramiro, p. ex., era completamente diferente do que ele é na verdade: imaginava-o magricela, de uns vinte e poucos anos. Ele é um senhor de barba e taurino, alto e forte. Agora, sempre te imaginei como vc realmente é na foto, um cara que a juventude e a simpatia transparecem no rosto.
ResponderExcluirbá, q bom q tu contou, assim posso me desculpar pela tua passada de olhos naquilo! outro dia me deparei com aquelas letras amontoadas para caberem num espaço determinado, sim, por um concurso qq da internet, q dava um prêmio não-qq, uma viagem pela europa. q horror, sério, me faça o favor de não mais procurar. me pede ehehe. aliás, pensei em mostrar outra foto, alguma q tivesse pela internet, mas acho q aquela dá o recado, melhor assim, eu estava entusiasmado com a viagem ao chile q se iniciava. anos mais novos.
ResponderExcluir*2005.
ResponderExcluirhj tenho 27a.
Eu não tinha pensado em procurar o Ramiro no Google até você falar...
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