Se naqueles quatro meses que durou a fase mais terrível de seu sofrimento, o tio Márcio de 35 anos tivesse se apegado à decisão de que não havia mais motivos para continuar vivo após o pedido de separação litigiosa de sua esposa, teria evitado que o tio Márcio de 13 anos depois se tornasse um dos advogados mais ricos do país. Olhando do alto de sua condição estabelecida de sobrevivente muito bem sucedido, hoje deve lhe parecer uma das coisas enigmáticas daqueles anos já por natureza estranhos ter confiado a um trio composto por duas de suas irmãs e um pirralho de quinze anos a chance de lhe dissuadir de que não haveria outras hipóteses que a de um conformado e alentador suicídio. E o pirralho dessa história era eu. Não sei qual dos atributos da minha distração caiu na má interpretação de minha mãe e de minha tia Tânia para que me escolhessem como espécie de guarda-costas do tio Márcio, vigia sentenciador e "cagueta" dos seus menores movimentos. Se o tio Márcio, no restaurante aonde íamos os dois jantar (eu comendo pela primeira vez língua de boi ao molho madeira, ele com o prato intocado), mostrava-se uma fração a mais além da introspecção dos que imaginam outras funções para as facas por sobre a mesa, era motivo para reportar minuciosamente o fato às duas irmãs: como estava seu olhar, se voltado totalmente para dentro ou se houvera alguma margem de interesse para os objetos e circunstâncias do ambiente, se ele falara alguma coisa, quantas vezes suspirara. Como ele executava os passos na caminhada ao largo da represa perto do apartamento, onde os corredores do cooper cortavam em sentido contrário ao nosso como lampejos coloridos que reafirmavam sobre nossa dupla taciturnidade a prevalência da saúde urbana; ele com o paletó amulambado, eu com o uniforme de colégio suado _ me tornaram tão comprometido que me passava inadvertidamente a desatenção à higiene dos que pouco faziam caso com a existência. Minha mãe e minha tia de certa forma lamentavam que o agente mediador entre o tio Márcio e a morte padecesse da limitada experiência dos 15 anos, não tivesse bagagem suficiente para enxergar por debaixo do mosaico de homem traído os sinais significativos, as emissões de dor que partiam de sua alma arruinada. Elas tinham que acrescentar por conta própria o que vazava pelo filtro da minha infância e ficava faltando na compositura do retrato completo.
Uma das minhas suspeitas do por que o tio Márcio só tolerava (ou fingia tolerar, para manter o pouco de atenção às exigências familiares que ainda tinha que ter) a minha presença nesse dias, era a de que as vidas pessoais de suas irmãs evidenciavam que elas estariam defendendo o lado errado da contenda. Por minha mãe ser uma divorciada com dois filhos, e a outra irmã uma mártir do casamento suportando o marido alcoólatra, pela fidelidade compulsória ao Sagrado Sofrimento Feminino, as duas no fundo dividiam a alegria libertária por sua esposa ter-lhe pregado um par de chifres. Mesmo em meus 15 anos, a insurgência da verdade de gênero do Eterno Macho Dominador que falava em meu sangue me permitia interpretar as vezes em que meu tio firmava o olhar nas duas e um tremor de medo passava por seu rosto. Elas tinham com ele apenas o compromisso formal de impedir que o sofrimento fosse insuportável a ponto de lhe levar ao suicídio, mas o que havia abaixo desse limite mensurável em flagelo didático deveria ser bebido por ele até a última gota. Elas se referiam à sua esposa com toda a sinonímia à disposição do consolo _ o que não se importavam que eu ouvisse _ : aquela vadia, aquela puta devassa, a biscate desavergonhada, a mulher que havia colocado a buceta à frente da família. Era um teatro que, à maneira de Sherazade em ludibriar com as artes de contar uma história por noite o sultão de tirar-lhe a vida, elas encenavam para meu tio o que só era suficiente para mantê-lo vivo. (Isso é tanto verdade que hoje, as duas são fervorosas amigas da minha tia Valéria, a ex-esposa do tio Márcio.) Por isso então eu, com minha cara de alienação, meus modos reservados e meu coração cheio de amores platônicos, era o único elemento daquele ensaio de psicopatologia cotidiana que meu tio via como o que carregava menos conotações de justiça feminina e culpa.
Nesse fim de ano que eu recordo como um dos mais chuvosos e cinzentos, minha mãe, minha irmã e eu estávamos instalados no apartamento de minha avó que morava nos EUA, devido ao incidente com o Césio que fizera com que interditassem nossa residência original, e meu tio Márcio se mudara para lá depois que a tia Valéria lhe anunciara querer o divórcio por estar apaixonada por um médico carioca cinquentão que conhecera num congresso. O apartamento de minha avó _ ironicamente, também ela havia deixado o país trinta anos antes por ter descoberto que o marido estava tendo um caso com uma das empregadas do casarão colonial onde viviam em Minas Gerais_ estava se tornando o refúgio oficial de parte da família; de tempos em tempos alguém batia na porta da minha mãe solicitando as chaves por duas semanas, uma tia que tinha que fazer hemodiálise, um outro que precisava vender uma casa, outro cujo caráter ubiquamente conhecido requeria a sensatez de não se perguntar o por que precisava se esconder por algumas semanas. Entre esses exilados, alguns dos quais compartilhei a presença naqueles meses em que o prosaísmo sinistro de um acidente nuclear havia acontecido sob nossos narizes, o tio Márcio era o mais triste, o mais deslocado, o que transparecia o que nos outros era a verdade disfarçada com desmascarável laconismo: estava ali pela lucidez insuportável de se ver como um pai ausente e um marido sem a capacidade de carinho, um homo laborians comprometido animalescamente com a sobrevivência social, mas cujas portas adentro de sua casa revelavam sem eufemismos o que não escapava nem a suas irmãs, o direito outorgado a um estranho a vir substituí-lo no que fracassara de maneira tão inexorável.
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Treze anos depois ele se tornara obscenamente rico. Ganhara um ação histórica contra a Petrobrás, e os donos de postos e refinarias de petróleo que o contrataram abarrotaram sua conta com quarenta milhões de reais de honorários. Escrevera uma matéria de duas páginas inteiras para a Folha de São Paulo explicando em linguagem despermeabilizada de juridisquêz todo percurso burocrático da aventura. Até seus detratores e os ascetas ao dinheiro estudavam suas palavras na busca dos sinais da predestinação. Quando me chamara para conversar, dividi na minúscula saleta de espera de seu escritório, num edifício destoante que ganhara a mítica justificativa de ser uma camuflagem, o espaço joelho a joelho com senhores de terno e pastas de couro, alguns com o desespero indisfarçável do empresário falido atrás de um empréstimo, outros com as insígnias vocabulares dos desembargadores. Fiquei uma semana em sua companhia, dormia no condomínio fechado onde ficavam em perfeita plenipotência fotográfica a sua nova esposa e seus outros dois filhos, aguardava nas salas ao lado da sua até que o expediente findasse, me entupindo de café na máquina de expresso. De tardezinha íamos a um clube fechado onde na mesa ampla senhores de bermuda esporte e os rostos vermelhos saturavam-se de whiskey. Cada um tinha uma moça de seus dezessete anos do lado, que definitivamente não eram suas filhas. Uma das moças estava acompanhada pela mãe, uma senhora que havia vestido sua melhor roupa e não se continha de felicidade por sua filha ser a escolhida, nenhuma delas se importando que o homem às vezes falasse com a esposa pelo celular. Meu tio era uma espécime diferente de besta honorável, não era imune ao universo de macho alfa para o qual sensibilidades eram atrasos na obtenção de todo hedonismo que o dinheiro tinha para oferecer nas horas de folga do cotidiano acirrado em que tinha-se que obtê-lo, mas ainda via em seu infinito traquejo e sua genialidade em angariar simpatia o menino provinciano, o cara simples que em caminhos paralelos teria conseguido ser feliz com bem menos que isso. Ao mesmo tempo que interrompia a conversa séria com um desembargador, num corredor do Centro Administrativo, para apresentar-me como seu sobrinho veterinário, eu o ouvi instruindo taxativamente sua filha, que lhe insistia por telefone que precisava levar o bicicleteiro que havia atropelado para um hospital particular de ortopedia, a deixar que o SAMU cuidasse do caso, "quando ele descobrir de quem você é filha, vai pedir uma senhora de uma indenização". Em sua cadeira rotativa ele me deu um conselho que deve estar talhado em madeira na porta de entrada de seu santuário íntimo: "a gente passa a vida toda que nos resta tentando consertar as besteiras que fizemos na juventude". Anda hoje penso o que teria me salvado da proposta que me fez, em meus trinta anos, de estudar o curso de direito totalmente bancado por ele, e ser um de seus estagiários. Se não tivesse sido a aprovação no serviço público, qual outro fator inviolável teria feito com que eu virasse as costas para a porta de seu escritório e seguisse a minha própria vida ?
BÁ.
ResponderExcluirmto bem escrito isso, charlles. mas, tbm, é cada história PRONTA q tu tem pra contar, hein?
incrível
Rômulo, concordo contigo. Estou eu aqui pensando que família mais sem histórias que eu tenho.
ResponderExcluirO danado da mente treinada na crítica é que numa situação dessas não me sai da cabeça que, por detrás dessas suas palavras, há um contudente: PÔ MEU! QUE CARA MENTIROSO!
ResponderExcluirNão tem nada disso por detrás das minhas palavras!
ResponderExcluirMe passaram pela cabeça várias hipóteses para explicar a minha falta de histórias: 1- a família com quem eu tenho mais convívio é a de sangue chinês. Não há cenas, tudo é subentendido e resolvido por meio de telefone, climas e panos quentes. 2- Passei grande parte da vida afastada deles, seja porque meus pais moravam longe quando casados, porque minha mãe passou anos afastada deles quando se separou e agora que estou casada praticamente não os vejo. 3- Pura incapacidade literaria a minha, de olhar para histórias fantásticas sem reconhecê-las.
Algumas famílias são mais eficientes em manter um auto-imagem respeitosa. De nenhuma delas sai Isabel Allende, claro.