sábado, 3 de maio de 2014

Reflexão dissociativa de beira de estrada



Pode parecer que não tem planejamento nos textos que escrevo para este blog. Às vezes fico pensando por dias determinados temas que pretendo postar aqui. Todos, porém, são escritos em um mesmo dia, num fervor que pode durar de 30 minutos a 4 horas e meia ininterruptas. Durou 4 horas e meia, por exemplo, o texto que escrevi sobre a morte do meu sogro. Comecei-o às sete da manhã e só fui me dar conta das horas quando eram 11 e meia, horário em que finalmente o terminei. Há textos que me vem em locais improváveis, e na maior parte das vezes consigo parar tudo que estava por fazer para tirar aquilo da mente e jogá-lo no papel: exemplo disso foi um dos meus textos por qual eu sinto mais gosto, o Bebê 59, que escrevi em meu trabalho após ver a reportagem na televisão falando sobre o bebê jogado no cano da privada por sua própria mãe. Fiquei tão tocado que peguei uma folha a esmo e escrevi em um arroubo de raiva e ternura e desespero. Acho que o escrevi em 15 minutos. Há outros textos que escrevi em fila de banco (Mustang), na sala de espera de consultório médico, em praças públicas. Grande parte dos textos que estão aqui não me descem mais pela garganta; evito lê-los, para evitar de sentir uma desbragada vergonha de meu semi-analfabetismo. Mas há alguns que, tardia e inesperadamente, como Dumas pai ao reler um de seus romances, me faz pensar: "Poxa, não está tão mal assim". 

Mas escrever aqui no blog tem sido essencial em meu despertar para as letras. Sempre notei um talento em mim para a escrita (sou dessas pessoas que descartam a obsolescência absurda de falsas modéstias), mas antes da internet eu já havia perdido por completo a motivação para escrever. Talvez porque a escrita seja algo importante demais para mim, e eu não vi onde poderia acrescentar alguma coisa de valor real no que já está aí escrito. Talvez porque submeter algo tão íntimo quanto a escrita ao marasmo e ao olvido imediato me causava repúdio. Nunca vi a escrita como exercício puro de vaidade, e abomino escritores que pretendem ser apenas virtuoses de estilo e palhaços vivendo às custas de palmas. Sei que quando eu escrevia, antes da internet, o ato me deixava cheio de serotonina, cheio de um prazer inefável pela existência, por estar vivo, por ter aquilo. Escrevi de tudo: contos de pescaria à lá Hemingway, ensaios à lá Said, retratos de personalidades à lá Conrad, um romance garciamarqueano, um romance faulkneriano_ e até uma elegia às assombrações de William Golding, escritor que foi uma das minhas mais severas obsessões da juventude. Por anos, eu tratava a ânsia e o passar do tempo escrevendo excertos de imaginários romances, simulando o Sr. Sammler e Pynchon. E como escrever é uma ótimo remédio para a passagem do tempo! (Quando não posso escrever, submetido a algum horário impositivo em que nada tem que ser feito a não ser esperar o ponteiro do relógio percorrer o gigantesco raio da arena, eu canto mentalmente todo o Thick as a Brick, como placebo para matar o tempo.) Uma vez, quando esperava o aparecimento de um tio em seu escritório, aparecimento que prometia resolver um problema financeiro da minha parte, eu, cansado daquilo, escrevi duas páginas em um caderno sobre uma cena que não me saía da cabeça, e quando terminei, saí embevecido dali sem me preocupar em ter que esperar ninguém. Mas aí eu parei de escrever, porque o Brasil, porque a sobrevivência, porque a vida adulta, porque a gente tem que aprender a crescer afinal de contas, porque... Fiquei anos sem escrever nada de substancial. Me tornei um pragmático; um leitor voraz, mas não mais um escritor. 

Contudo, a escrita não me abandonava, de uma maneira ou de outra, o que era, do ponto de vista de meus planos estéticos de outrora, uma aberração por se prestar ao cartoricismo. Vou explicar: me tornei um escritor de ofícios. Eu trabalhava na área de administração de penitenciárias, e todos sabiam que eu era fera para escrever. Uma vez, fugiram quatro presos de um dos presídios que estavam sobre minha administração, e, quando recapturados algumas horas depois, esses presos chamaram advogados e a pastoral carcerária, com a alegação de que haviam sido espancados pelos agentes policiais. Houve um tumulto da falsa moral dos que se alimentam da rançosa bondade midiática, e esses agentes estavam para ser demitidos e lançados em um processo penal desgastante que poderia levá-los a serem presos. Os presos, na fuga, surraram quase até à morte o agente de plantão, mas nenhum dos padres sequer mencionou isso nas audiências do caso. O diretor da cadeia me pediu, por telefone, para que eu escrevesse um texto explicativo sobre o que acontecera, para que ele assinasse como autor e enviasse ao juiz da causa. Escrevi uma apologia suada e apaixonada; a coisa fluiu tão bem que, lá para o final, fiz uma ousadia subliminar, em honra a meus tempos de escritor sério, em que, para quem soubesse ler, deixava claro que havia acontecido mesmo uma retalhação por parte dos acusados. No meio da apologia, surgiu em mim o escritor adormecido acostumado a evitar as armadilhas do maniqueísmo: ninguém era inocente. Mandei o texto por fax, e dias depois o diretor me liga agradecendo, dizendo que não só o juiz, após ler a novela, lhe chamara em particular para dizer que iria arquivar o caso, como ele (o diretor) havia ganhado fama de um cara altamente articulado e cerebral na cidade. O delegado foi lhe cumprimentar pelo texto. Extremamente umbiguista isso, eu sei, mas entendam como quiser. Fiquei orgulhoso, mas não menos decepcionado. Recordei meu instrutor de monografia do curso de veterinária ao ler minha monografia e dizer: "você escreve bem, mas tem a tendência de ser um mero funcionário público com um vocabulário vantajoso que não serve para nada". 

Por isso que, com a net, uma renovação no propósito da escrita surgiu em mim, ao ver que o universo nacional de escritores trabalhando em silêncio em seus escritórios é algo tangível. Há um mês, recebi um bom livro de contos de um escritor sulista, recomendado pelo Farinatti. Seu nome, Vitor Simon, o livro Bravos contos breves, que eu devorei em um dia e devo um comentário sincero por e-mail para o autor. E recebo outros livros de escritores brasileiros na ativa, que me mostram o quanto o ato de escrever é algo que jamais acabará. Escrever neste blog tem sido uma forma mais descarada de exercitar minha auto-crítica e aprender mais sobre a escrita, visto que antes eu jamais mostrava meus textos a ninguém. E o modo de atuar aqui me fez pensar a semana toda sobre Nietzsche e Kafka, lendo-os, na intenção de que, num supetão em que o tempo se suspende, possa escrever um texto sobre eles.

19 comentários:

  1. Excessivamente metalinguístico o teu texto. Um blog hoje em dia para ter "audiência" precisa ter alguma coisa interessante. A quantidade é infinda. A net se constituiu na "biblioteca de babilônia" borgeana. E, aqui, o que faz com os leitores voltem - ou pelo menos sejam capturados pela curiosidade - é a qualidade dos teus textos. Escreves bem e tens um carisma singular. Inegavelmente. Às vezes, quando leio os teus textos, fica-me a impressão de que já viveste outras vidas; de que não tens apenas quarenta anos. Um exemplo: essa descrição de que já estiveste envolvido com o cotidiano de uma penitenciária. Parabéns, Charlles!

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  2. BETERRABAS
    by ramiro conceição
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    Tanto o agricultor
    quanto o escritor estão à mercê da sorte:
    o primeiro muitas vezes planta e colhe só palavras;
    o segundo dos rascunhos muitas vezes, beterrabas.

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  3. "Sempre notei um talento em mim para a escrita (sou dessas pessoas que descartam a obsolescência absurda de falsas modéstias), mas antes da internet eu já havia perdido por completo a motivação para escrever. Talvez porque a escrita seja algo importante demais para mim, e eu não vi onde poderia acrescentar alguma coisa de valor real no que já está aí escrito. Talvez porque submeter algo tão íntimo quanto a escrita ao marasmo e ao olvido imediato me causava repúdio."
    Sempre me interroguei porque você e o Milton Ribeiro não publicavam seus textos de ficção. E minha impressão passava pelo que você declara nessas linhas. Vou te dizer, Charlles, como você sabe, estou entre o milhão de brasileiros que escreve contos e nunca publicou um livro. Depois de conhecer a ti e ao Milton, seu imenso universo de leituras, e posto que não publicavam ficção, eu me sentia intimidado. Cheguei a pensar que, sendo um leitor tão medíocre perto de vocês, eu tinha o direito de escrever. Durou cerca de 30 segundos essa angústia. Foi uma eternidade. Depois, me dei conta exatamente desse prazer vertiginoso, voraz, quase alucinante que escrever me trazia. Sigo escrevendo sem parar e mandei vocês catarem coquinhos.
    De qualquer modo, tenho muito gosto de lê-los. Escreva.

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    1. E, pelo jeito, sou um escritor medíocre também. Por favor, corrija, quando escrevi "eu tinha o direito de escrever" quis escrever o contrário "eu NÃO tinha o direito de escrever." Ou talvez a falha não se deva à minha má redação, mas sim a algum ato-falho...

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    2. Recordo de dois contos seus muito bons pela meticulosidade, Farinatti. Sobre o que disse de mim, tenho sérias ressalvas. Mas obrigado pela generosidade.

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    3. E eu fiquei para lá de feliz com tuas observações, Charlles. Pura verdade.

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  4. Eu conheci Gilberto Gil ontem, no show em q colocou abaixo o Salão de Atos da Ufrgs. Um cara genial... e simples, essas qualidades q quase sempre vêm, e melhor q venham, casadas. Tua gentileza, e a leio na costura das tuas palavras (o q torna dispensável tua reincidente observação sobre a modéstia; nós te entendemos - nós q temos toda a costura em mãos, e não só a linha donde tu partes).
    Em certo momento do show do Gil foi natural q eu chorasse... ele lá, com a "agulha do real nas mãos da fantasia", de repente canta, conta Se eu quiser falar com Deus...
    "E apesar de um mal tamanho
    Alegrar meu coração"

    tua escrita tbm alegra me coração, Charlles

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    1. Ramiro Conceição5 de maio de 2014 às 16:04

      “Se eu quiser falar com Deus” e “Sobre todas as coisas”, em minha opinião, são as duas maiores obras da MPB associadas à referida temática. Se tivessem sido elaboradas em inglês, não tenho dúvida, estariam entre as maiores canções populares da cultura judaico-cristã de nosso tempo.

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  5. Obrigado, arbo. Essa música do Gil é de arrepiar mesmo.

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  6. Charlles, o título, o conteúdo e a foto do post me deram a coragem para deixar isso aqui…
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    RASCUNHOS
    by ramiro conceição
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    A arte não vem cedo.
    A arte não vem tarde.
    A arte vem /1/
    em rabiscos
    da realidade.
    *
    Dos rascunhos,
    que fique a cor
    que cante /2/
    ao mundo.
    O resto é cena,
    não vale a pena
    porque é mudo.
    *
    *
    /1/ Certa feita, o Marcos Nunes inventou um bicho denominado “Há rumores de vida em Marte”. Pois bem… A cada capítulo publicado, dentro do possível, eu deixava um comentário… Lá pelas tantas, o carioca me apareceu com a seguinte construção: “A morte não vem cedo, a morte não vem tarde, a morte vem…” Achei extraordinário… Chequei no Google: de fato, a frase era original… Então, fui logo avisando - ao brabinho… - que havia encontrado os títulos dos capítulos do meu livro: “A arte não vem cedo”; “A arte não vem tarde”; e “A arte vem”. O último poema, o poema-resumo-do-livro, deu-se de maneira automática.
    *
    /2/ Na versão original, no lugar da palavra “cor” aparecia “sumo”. A redundância “sumo-mundo-mudo” me incomodava, apesar de ser uma solução possível… Ontem, após a volta de uma viagem, meu filhote, de 5, e eu disputamos a televisão… Como sempre - ele ganhou!… Mas não é que, no final de um determinado desenho brasileiro, apareceu “eu escuto a cor dos passarinhos”: um verso de Manoel de Barros… Levei um susto… Gritei “eis a solução!”: se escuto então ela canta…
    *
    Todo esse blá-blá-blá é pra dizer que os escritores se polimerizam… E isso acontece também quando leio as suas criações, Charlles…

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  7. Respostas
    1. Ramiro Conceição6 de maio de 2014 às 18:24

      Mui grato, Anônimo e Charlles…
      De ontem para hoje, ocorreu-me uma outra imagem além da polimerização entre os escritores, isto é, a criação de longas e contímuas estruturas culturais…; ocorreu-me também a imagem da polinização, ou seja, a fecundação entre si à continuidade e transformação cultural de um dado período histórico.

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    2. o anônimo era eu. e tinha lido como polinização hehe

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  8. Bom demais seu texto, infelizmente não sou um homem que fala e por conseguinte escreve bem, mas sempre admiro um bom texto, como os que você escreve, parabéns e continue nos brindando com essas maravilhas literárias.

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  9. É bom esse Charlles! És uma inspiração e uma esperança por uma literatura melhor em português. Não é puxa-saquismo, mas verdade. Só aguardando um passo maior teu.

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  10. João Antonio Guerra8 de maio de 2014 às 19:18

    Meu notebook antigo resolveu cometer suicídio, explodiu por problemas de resfriamento, e só agora arranjo um novo e frequento novamente o blog. É gostoso ficar um tempo fora e ser recebido de volta com textos dessa qualidade e honestidade.

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