Esses dias me deparei com um dos programas do Chacrinha na tv paga, e, sério, foi uma experiência psicológica aterrorizante. Só não gritei porque o conforto da distância temporal me assegurava que não se deve fazer isso quando uma lembrança demasiadamente ruim volta para nos assombrar. E ver o Chacrinha, um velho vestido de palhaço espacial, com ceroulas e bermuda prateada, falando e falando e ninguém escutando_ ninguém ouvindo sua caquética voz anciã_, enquanto alguém da plateia erguia um cartaz pago escrito “Deixem o Sarney trabalhar. Ele é amigo do Brasil”, me fez ter uma pane psíquica. Senti um enorme desejo de deitar no colo da minha esposa, ou voltar para a casa da minha mãe para que fizesse isso com ela, e ser consolado. “Calma, Charlles! Foi só um sonho ruim. Passou”. Revi as salas escuras da minha infância, senti subindo de novo pela espinha a burrice centenária sacralizada pelos esquemas da pátria, a estupidez ufanista que me mantinha sempre de cabeça baixa e sem horizontes, sempre à espera da latente ordem de fracasso que me abateria em minha vida adulta. Como fugir desse regramento? Como escapar do mais latino-americano dos países latino-americanos? Como colocar a cabeça por sobre a superfície e… RESPIRAR? Ver os Titãs no Chacrinha, o Leo Jaime magrinho sem camisa, cantando sua parcela paga de alienação e todo mundo aceitando gratificado como se ele fosse os Beatles. Um mundo sem concorrência, sem diversidade, um mundo falso em que o pior do pior em matéria de entretenimento era jogado sem piedade em cima de nós, a ponto de colocarem um velho_ um velho! (parece revolucionário em seu nonsense, mas em se tratando do Brasil de 1980, era apenas a mais intrancedente das gambiarras), para nos distrair nas tardes de domingo, nas sagradas tardes de tédio cósmico dos domingos. Só um brasileiro médio da minha idade, no universo todo, sabe plenamente o quanto um domingo pode ser metafisicamente triste. O quanto a televisão é um Aleph aleijado que foca unica e exclusivamente um mesmo ponto em toda a infinitude, e declara, como o arauto de Joseph K., que aquele ponto está aberto para mim e mesmo assim, essa pobreza toda, está destinada a me expulsar um dia.
Olhando o Chacrinha, eu confirmei o que acontece. O que mudou em nossa vida psíquica de brasileiro? Para boa parte de nós estarmos, mesmo que retoricamente (porque jamais os militares retornarão ao poder, para grande alívio), brincando com uma nostalgia da ditadura? Para mim, ouso diagnosticar, é porque ainda estamos em uma espécie de infância nacional. Olha só o que fizemos quando fomos 120 mil na Rio Branco: nada! Tivemos toda a estrutura flamejante da mudança em mãos (com a rede Globo pedindo desculpas ao vivo no JN, e os políticos cogitando criar um parágrafo na lei em que a corrupção seria crime hediondo!), e a deixamos perder. Como um cão que corre atrás de um carro, e que quando o carro para olha constrangido para o vazio com uma imensa vergonha de não saber qual o gigantesco passo adiante que deveria dar. Tenho pena dos que falam a sério sobre uma ditadura como salvação para o Brasil. O Brasil não tem salvação. Simplesmente isso. Vamos afundar, e afundar, e afundar cada vez mais, até que algo além de nós aconteça, algo que não depende da benevolência ou maldição de nenhum deus, mas de uma configuração matemática. Quando o estado brasileiro sucumbir de vez diante tanta hipocrisia e prostituição moral de toda as mais distorcidas formas, a equação atingirá seu zero de retorno ao início. Pode ser que esse dia seja um dia glorioso de sol, ou mais um desses domingos cinzas de irretocável tristeza. O bom é que eu já não estarei mais aqui. O guardião da porta já terá me expulsado há muito tempo.
Charlles,
ResponderExcluircompartilho com você toda a agonia… Sentia a mesma coisa… Aquela esculhambação moral… Aquela falta de respeito aos mais humildes… Aquela falta de amor ao Brasil… Aquela ignorância colossal querendo enfiar por nossas goelas que éramos aquela excrescência…
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Lembro-me da minha revolta quando lia algum “inteléca” a afirmar que aquilo era a nossa canibalização cultural que deveríamos ensinar ao mundo… Sentia náuseas… Quando o Tropicalismo afirmou que Chacrinha era o nosso mito cultural tive vontade de mandar Gil e Caetano à merda… Vivia uma dor insuportável, pois os baianos, de fato, criaram páginas magistrais da música popular brasileira, mas aquilo, aquela deformidade civilizatória, aquele atestado determinista ao subdesenvolvimento, aquele vírus que gerou a música brega, o axé baiano, esse atraso monumental que estávamos a viver nesses dias com os tais sertanejo universitário, o funk ostentação e o caralho-a-quatro-a-quatro-a-quatro ad infinitum…Tudo estava lá, embrionário, até a contaminação total de nosso corpo cultural.
errata: não é estávamos, mas ESTAMOS.
Excluirerrata (2): apesar das aspas o melhor, sem dúvida, é "inteleca"
Excluirpretty nice blog, following :)
ResponderExcluirIsso aqui é bom, Charlles. Tua vocação é para o apocalíptico mesmo, chapa.
ResponderExcluirSe pelo menos tivéssemos algum charme distintivo da tragédia, para se falar em apocalipsismos. Mas é tudo previsível.
ExcluirOnde você estava, seu *****.
Eu estava preso entre a sexta e sétima dimensão do inferno Mahayana.
ExcluirA subida até a superfície não foi nada fácil, chapa.
ExcluirNão vai me oferecer nem um copo de água?
A segunda metade desse seu primeiro parágrafo é deliciosa. Conheço poucos escritores que se voltaram para pensar a maldade incrustada na televisão brasileira -- digo pensar, isto é, algo bem diferente dos ataques curtos, comentários pré-prontos para pintar de descolado o seu autor, esmolar do leitor médio um miligrama de carinho; como bons exemplos de gente que se voltou para esse assunto, lembro só do Nelson Rodrigues e do João Antônio (que tem circunflexo no nome e é Ferreira Filho, não Guerra), autor de um dos meus contos brasileiros favoritos: Tony Roy Show, do livro Dedo-duro, de oitenta e dois, que tem como protagonista um apresentador à moda dum Chacrinha mais miserável.
ResponderExcluirDavid Foster Wallace parte da televisão americana para discutir como os grandes endinheirados, para garantir seus públicos e portanto seus tronos, institucionalizaram a ironia. Ainda não tivemos por aqui alguém que tentasse algo daquele tamanho, mas boto fé que você (com suas estórias autobiográficas) ou o Bernardo Carvalho (principalmente depois que ele escreveu Reprodução, que só não foi o melhor livro que li ano passado porque teve o Bleeding Edge do Pynchon) certamente se sairiam muito bem.
Ah, mais uma: é muito bom ver que o inferno não conseguiu segurar o Luiz. Agora comecem logo a discutir jazz, pra eu ficar lá no fundo do auditório anotando os nomes. Por causa do Luiz, Ornette Coleman virou um dos meus mais amados, e desde a última conversa de vocês tenho garimpado Cecil Taylor dos confins da internet,
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