Já tentei ler um livro de Michel Onfray sem que obtivesse sucesso. Não me lembro nem do título. Lembro que começava falando sobre a fábrica de queijo em que o Onfray criança trabalhava, a mesma fábrica que permitira à sua família sobreviver às custas de muita indignidade e exploração. Onfray cresce e consegue ganhar sua dignidade e liberdade dos aguilhões capitalistas entrando para o meio acadêmico. O livro me pareceu anacrônico e ingênuo em seu ultra-niilismo datado, e nada me pareceu mais francês, na pior interpretação do termo, do que Onfray. Um autor que existe apenas para manter adiante a tradição francesa do decadentismo e aquelas coisas todas que devem pensar os esnobes intelectuais superiores. Quando eu era adolescente e lia Nietzsche, havia uma eletricidade, uma promessa de recompensa, um quê de felicidade em uma revelação que seria dada e me manteria em vantagem visionária por sobre a malta de indivíduos comuns; depois, como é saudável acontecer, eu cresci e vi que se tratava de mais uma das propagandas cosméticas destinadas à parte etária mais influenciável da vida humana, ainda que uma propaganda em um grau mais sofisticado que as de tênis. De maneiras que levo Nietzsche, o filósofo, pouco a sério, e mantive meu amor pelo Nietzsche poeta e sinfônico. Já Onfray é um imaturo vivendo repetidamente sua adolescência, uma cria fanatizada pelo que há de pior e ultrapassado em Nietzsche, um continuador de uma escola obsoleta que pretende falar de um mundo psíquico restringido à primeira metade do século passado. A criança da fábrica de queijo se tornou um adulto que brinca que é um filósofo dizendo algo perigosamente novo e cataclísmico para um mundo exaurido de arautos de uma inédita verdade.
Por isso, talvez, que Onfray coube com sucesso na forma literária dos quadrinhos. A graphic novel assinada por ele, Nietzsche, e desenhada por Maximilien Le Roy, tem seus méritos e vale a pena. Mostra um Onfray apaixonado pelo seu grande mestre, tratando-o com um inusitado carinho e com uma descomedida defesa contra as ideias pré-fabricadas que se costuma atribuir ao filósofo de Zaratustra. Onfray escreve aqui para um leitor em formação, o leitor ainda passivo da mágica negadora de Nietzsche; há um tom leve, um lirismo que espanta o excesso de seriedade e auto-importância de Onfray; o Nietzsche dos quadrinhos se torna um personagem de quadrinhos, um homem assolado por visões, incapaz de se adaptar a esse mundo e órfão de uma vislumbrada dimensão de poderes. Mas a elegância e a beleza desse livro está quase tudo nos belos desenhos de Le Roy, que equilibra os exageros didáticos do texto de Onfray. Há partes forçadas, em que Onfray exagera sua defesa de que Nietzsche não era antissemita_ quem leu a estupenda apologia à força racial do povo judeu no subcapítulo 251 de Além do bem e do mal sabe disso_, e toda defesa exagerada acaba por dar um tiro no pé revelando uma insegurança por detrás.
Esse livro foi lançado no Brasil pela editora Singular e já está na segunda edição. Eu o procurei várias vezes e minha perícia não conseguiu achá-lo para comprar. Um amigo que me trouxe um exemplar, tomado de empréstimo das estantes da escola pública onde leciona. A maior parte das escolas públicas do país recebeu um exemplar. Um grande mérito.
Me interessei por essa obra, mas nem no site da Singular está disponível... Uma pena...
ResponderExcluirCurioso, né? Também procurei pra comprar mas não acha. O Ministério da Educação deve ter comprado todos. Não deixa de ser boa coisa, mas eles deveriam ter guardado uns para o público.
ExcluirBota curioso nisso, nunca vi, deve ser o medo do encalhe...
ResponderExcluirMeu Nietzsche eu comecei com aquele volume da Companhia, o da crítica a Wagner; depois parti pro Zaratustra deles -- a última vez que li Nietzsche verdadeiramente encantado; bem mais tarde peguei algumas daquelas edições de bolso charmosas*, mas aí eu já estava como que estragado para Nietzsche. Olhando hoje, Humano, demasiado humano e o volume sobre Wagner são os livros que revisito às vezes, mas desapaixonadamente, e tenho boas lembranças do Zaratustra, mas nunca o reli. Nietzsche como que não queria ser filósofo, e isso fica claro na distância entre a escrita dele e a dos seus ditos colegas. Foi a ideia de superioridade em Nietzsche que não me desceu muito bem, acabou prejudicando a minha apreciação da obra do bigodudo.
ResponderExcluirMeu lado tiete de Guimarães Rosa pediu pra comentar: me incomodou demais, por exemplo, a palavra "rebanho" em Nietzsche, apesar de saber que ele usa essa palavra como um jab no Cristianismo. Há dois contos em Sagarana que são como irmãos: Burrinho Pedrês e São Marcos; ambos vão te desvelando calmamente a forma de uma belíssima escultura, só para no final espatifar tudo no chão, não maldosamente, mas como um mais velho pondo a criança na água para que ela aprenda a nadar ao menos minimamente -- sim, fizeram isso comigo, e tenho pavor de mar até hoje. Em São Marcos, o percurso do protagonista floresta adentro esta escrito inteiramente, os menores detalhes sendo os mais maravilhosos, e isso tudo apenas para que o protagonista perca a visão abruptamente e tenha que fazer o caminho de volta no breu. Mas o importante aqui é O Burrinho Pedrês: umas sessenta páginas apenas para detalhar um grupo de vaqueiros levando uma boiada para o trem, e só para, nas últimas cinco páginas, todos morrerem -- os vaqueiros, afogados na travessia dum rio, e os bois também, porque estão sendo levados para o abatedouro -- exceto o vaqueiro mais fraco e um burrinho velho. A primeira grande proeza do Rosa é a descrição do rebanho, logo no início do conto, e depois dela eu não posso aceitar a ideia de uma massa agrilhoada, ou (ainda lembrando do Markheim de RLS) de gente arrastada pelos "gigantes das circunstâncias".
Ah: li agora sua resposta na postagem sobre RLS. Fiquei tentado a largar minha leitura atual e pegar logo Bulgákov, mas acontece que o que estou lendo é More Die of Heartbreak, do Bellow, uma edição americana velhinha e linda que comprei por UM REAL num sebo. Estou para começar a trilogia Snopes há semanas, e adiarei a leitura uma última vez por Bulgákov.
* - Eu juro: não estou fazendo propaganda... mas se a Cia. tiver gostado, aceito presentinhos.
Um amigo meu também me emprestou um de uma escola pública.
ResponderExcluirO mérito da HQ é todinho de Le Roy, que é brilhante. No todo não passa de uma série de informações breves, em vez de uma biografia uma cronologia, em nada diferente daquelas que vemos nas introduções de autores clássicos. Pra mim, o conjunto da narrativa não funciona muito bem. Vendo de perto porém, recomendo por algumas páginas belíssimas, breves momentos perfeitos, uma cronologia realizada por um poeta.