quinta-feira, 17 de abril de 2014

Morre Garcia Marquez



Morre Gabriel Garcia Marquez. O que dizer? Aliás, precisa dizer alguma coisa? Precisa edulcorar mais ainda o que agora mesmo já está se fazendo em todo canto do mundo na mídia? Enfileiram-se os velhos soldados da opinião massificada, cada um de seu lado, cada um dando seu palpite pautado por cores ideológicas e novamente revigoradas visões políticas capengas. Foi um gênio burro, por defender Fidel; foi o mais lúcido romancista do século passado, por seja lá qual matiz de seu pensamento de esquerda. Não há como deixá-lo em paz agora; a sorte é que isso pouco importa, no alto de seu quase nonagenário, no âmbito em que está a certeza de que, cumprida sua última função fisiológica, xingamentos ou bajulações não tem mais os ouvidos destinatários para recebê-los. O que eu sinto vontade de escrever agora é que a morte dele me faz ainda mais velho, ainda mais voltado para a irrevogabilidade de que o tempo é a locomotiva cosmológica mais rápida do universo e que eu estou lá dentro, sentado na minha poltrona, à espera. Morre GGM. Porra, um dia eu vou morrer, não por ser uma obviedade, mas sim pela lembrança que me assola de que, aos 19 anos, eu vendi dois livros dele para ter grana para duas horas de motel com uma namorada. E existe um vínculo entre esses dois eventos no todo absolutamente indiferentes para o correr contínuo dos dias, mas que para mim parecem investidos de uma lógica pessoal inelutável: morre hoje o senhor que, em alguns dos meus mais felizes dias de animal jovem o suficiente para não pensar na morte, me proporcionou dinheiro para transar. Vendi em um sebo os dois volumes de Textos do Caribe, e fui, radiante, elétrico, carregado de poesia sensual iletrada, passar duas horas com uma namorada na imersão despudorada do incrível poder de nossas saúdes. Para um cara de 19 anos, isso era o cume do tesão: pesava-me na alma a traição ao meu maior autor, mas o peso era suplantado pela consciência dos tantos e tantos anos que eu tinha pela frente_ que nós tínhamos pela frente, GGM e eu. Eu entreguei os livros baratos, o preço suficiente para as duas horas no Hotel Chuí do centro da capital, mas me prometi que iria comprá-los assim que minha condição de estudante acabasse e eu me tornasse independente financeiramente. Não só esses livros, mas todos os outros que GGM viria a escrever no rastilho de sua própria juventude de senhor de 60 anos. (O hotel Chuí, com seus quartos sombrios mesmo às três horas da tarde, em frente a um depósito de gelo e do lado de um hospital; com sua recepcionista lésbica, uma gorda que era a cara da irmã da Margie Simpson, e que passava altas cantadas na minha namorada, "que menina linda você tem", e que nós subíamos pelo apreensivo elevador rindo da coisa toda, eu me vendo, em meus restos de culpa, como se vivendo em um livro de GGM). Eu comprei de novo vários livros de GGM. Li muito e muito de GGM. Ele é um dos amores da minha vida. E, no meio da inadvertida tristeza, só consigo por agora pensar nessa tarde em que vendi, esfuziante, seus livros para poder transar. Como fui imensamente feliz naquele dia, em que nada havia de certo e amparável em meu futuro, apenas os seios, os longos cabelos louros, as pernas torneadas que mantinham um quê delicioso de castidade, os odores. Para mim isso tem uma imensa rede de significados.

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