Parece que um dos mais complexos dilemas intelectuais do Brasil de hoje é saber o que quis dizer um professor de ensino médio quando resolveu colocar em sua prova de filosofia uma questão em que diz ser Valesca Popozuda uma grande pensadora. Eu não sabia quem era Valesca Popozuda até o advento dessa bombástica revelação, mas, pela amplitude que alcançou o ato enigmático do professor, está na cara que a dita tem mesmo o nível de Grande Pensadora Brasileira, ao menos pela forma em que molda o esteticismo de grande parte da população. Que há anos a ausência de argumentação nos debates intelectuais brasileiros é uma realidade entediante, isso é sabido por todos, mas o erro de interpretação_ ou, melhor dizendo, a má-fé_ desse gesto um tanto simbólico do tal professor revela um automatismo por parte dos ditos formadores de opinião que fica claro pouco lhes interessar os benefícios para as massas que a Valesca Popozuda possa oferecer. Eu flano pelos sítios cibernéticos dos pensadores progressistas (visivelmente menos grandiosos e menos profundos que a Valesca), e vejo que agora eles se cumprimentam usando o refrão da música da Grande Pensadora: "beijinho no ombro". Aonde se vai, os catedráticos e os arremedos de alunos clubistas deles dizem um para o outro: "beijinho no ombro", e completam inventando um certo "recalque" que eles parecem ver na horda de seus inimigos, inimigos esses que estão solidamente calcados no esteriótipo de "burgueses", "classe média", "direita", "Globistas", "Vejaistas", etc, etc. Ou seja, todos que não sejam de algum nível apadrinhados por um universo imagético firmado nas mesmas apreensões do que era conhecida uma esquerda pré-século XXI nesse país (uma esquerda que descartou a sua história e o presente confeccionado por dez anos de traições, corrupção, assassinatos, conveniências de sociedades partidárias prostituídas até a medula, e finge absurdamente que nada aconteceu), são postos como recalcados, centrando em um arranjo improvisado sem a mínima consistência todo o preconceito dessa classe em um repúdio destes contra Valesca Popozuda. Como se alguém, fora de um restrito nicho midiático ocupado com divulgação de música popular, algum dia tenha se preocupado com Valesca Popozuda. Na falta de situações intelectualmente interessantes, que há anos repete o mesmo tédio discursivo nacional, esses intelectuais investem Valesca Popozuda com a aura de mártir dos excluídos; inventam para ela uma atmosfera de perseguição e expurgo; por pouco o automatismo deles não vai além em dizer sobre uma Valesca Popozuda presa e torturada, seviciada pelas armas dos ditadores abastados e retornada em glória para vingar de seus inimigos e levar a boa nova para o povo. E nesse Forte Apache e G.I. Joe em que brincam os progressistas, fica perdido de qualquer tentativa de análise contundente o que quis realmente dizer tal professor de filosofia, que desespero ou estoicismo humorado existe por detrás de sua questão, o que isso desanuvia sobre o crime que se comete todo dia contra a educação de milhões de jovens já antecipadamente abortados para os prazeres reais da cultura e do pensamento.
Eu já fui professor por dez anos em escola pública, e sei o que quis dizer tal professor. Não foi um deboche, não foi uma ironia, não foi um desrespeito à Valesca Popozuda, não foi um ataque contra seus alunos, não foi tão pouco um desejo de fama. Embora o próprio professor, mantendo uma diplomacia exemplar que demonstra um leitor profissional de filosofia, tenha usado de uma ambiguidade em suas entrevistas aos jornais, lançando uma insinuação cordial e não afeita a mais polêmicas idiotas de que "por que Valesca Popozuda não pode ser uma grande pensadora?". Assim, ele volta tranquilo para seus exercícios de professor, e não desperta o foco dos progressistas contra ele_ ele que deve saber muito bem que nesse país nunca houve debate, mas só louvações ou condenações, e conheça bem a astúcia que se deve ter para a sobrevivência. E de quebra, ensina a seus colegas de profissão que o mundo midiático de hoje, com uma câmera de celular e com as redes sociais, transforma uma desmaiada bobeira em uma bandeira de guerra. O que ele quis dizer, retorno, é o que a maior parte dos professores dizem todos os dias ao estado filistino criminosamente omissivo e ao aluno zumbi que se senta diante ele nas aulas. Foi um gesto regrado de desistência, sem drama, sem reivindicações: apenas um gesto marcial de desistência que diz mais da preservação psicológica do professor que qualquer forma de ironia: é como essas escoras para se descansar as pernas, alongando-as por debaixo da mesa, que os funcionários de bancos tem afim de evitar o L.E.R.; essa questão da prova feita pelo professor é uma terapia inocente para evitar em si mesmo um L.E.R. mental a que os professores estão sujeitos diariamente. Eu mesmo como professor colocava várias dessas questões nonsense nas provas que eu dava para os alunos, e uma vez, chamado a ajudar um outro professor em uma aula de religião, transformei a aula em um culto evangélico em que, enquanto meu colega lia passagens na Bíblia, eu ia impondo a mão por sobre a testa dos alunos enfileirados e os próprios protótipos do capeta se lançavam ao chão encenando um exorcismo, estrebuchando e espumando pelas bocas. Daí os alunos se levantavam, gritavam um "Aleluia, Pastor!", e voltavam para suas carteiras com as malandras cabelas baixas redimidas de todo mal, purificadas de todo pecado. E daí meu colega anunciava que eu iria passar de carteira em carteira coletando o dízimo, ajuntando uma advertência de que quanto mais generosos fossem em encherem a sacolinha, mais a graça de Deus se voltaria para realizar seus objetivos santos de terem uma Hilux, uma tv de plasma, um celular de último modelo..., e eu passava com uma sacola aberta de supermercado encontrada no lixo e eles depositavam, com caras compungidas, tiras de papel rasgadas dos cadernos no interior. A barulheira que fizemos contaminou toda a escola, e mais tarde ficamos sabendo que as coordenadoras e os outros professores não foram ver o que era porque, simplesmente, ficaram com medo. Essa frase, ficaram com medo, nunca me saiu da cabeça; com medo de quê? Considerei esse temor deles como um diagnóstico do imaginário de terror subjacente que domina tais profissionais; eles teriam pensado: enfim um professor não aguentou e está sucumbindo ao L.E.R; enfim o estoicismo que preserva por um triz nossa sanidade mental diante tanta coisa contra nós cedeu, e ele agora deve estar pegando as cabeças dos alunos e as arremessando contra as paredes, e seu colega deve estar arrastando pelos cabelos o pessoalzinho miúdo do fundão e dando-lhes chutes nos traseiros, e não seria nem um pouco conveniente que algum de nós vá lá interromper um momento sagrado de catarse, seja lá as consequências que isso vá ter.
O que eu percebi é que foi uma catarse para nós, professores, e para os alunos, submetidos ao positivismo idiota de regras religiosas implantadas nas escolas sem debates, com um cristianismo em ponto morto e cheio de uma rançosa piedade sem conteúdo. Nada contra o ensino religioso nas escolas_ pelo contrário, sou a favor_, mas da forma como é feito não foge em nada ao ensino de fachada, ao contar as horas e assinar pontos, ao preencher as estatísticas forjadas para benefícios políticos do governo. Esse contexto rico e carregado de uma urgente clemência pelo debate, os progressistas fingem não ver, por ser algo espinhoso demais, sem charme, incômodo demais. O que interessa a eles é a superfície glamorosa, a latência pelas palmas que tem o olhar maniqueísta puro, o eleger inimigos e combatê-los com hinos de guerra. Nós contra eles. Que a educação se foda diante esse arranjo simplório de usos pessoais. Que as vítimas continuem ouvindo Valesca Popozuda e ela as continue condicionando às suas vidas sem oportunidades, à hermética imobilidade social ditada pela rasura do aprendizado a como acessar o conhecimento. Que continuem a ser a antropológica massa de manobras pelas elites pensantes ególatras que só existem nesse país.
Postei esse comentário em um blog progressista, em um texto padrão sobre a Grande Pensadora:
Rapaz! Que texto! Exemplar de capenguice de tom e de clichês pomposos. A começar com essa forma epistolar querendo palmas e com a série de perguntas. Por isso que a esquerda brasileira está completamente desacreditada. Defendendo idiotices midiáticas como se fossem salvações espirituais para os “excluídos”, como se Valesca Popozuda fosse a única coisa em um universo de opções culturais que a “periferia” e os “desprivilegiados” tem para possuir. Como se em cada casa hoje não houvesse um computador ligado à internet, com uma reserva sem fim de música e arte em geral de primeira qualidade, a ser pego de graça. A esquerda deveria promover o fim dessa alienação em massa de novelas da Globo e funk apologético de prostituição e tráfico de drogas, e levar algo realmente construtivo para as massas. Mas vocês foram os primeiros a aplaudirem o tal beijo gay na tv, como se fosse uma revolução sem tamanho na expansão do intelecto brasileiro; uma cena unicamente mercadológica de uma empresa que por 40 anos tratou os gays como esteriótipos bizarros, como macacos de realejo. Mas… acontece que vocês estão longe de querer promover um debate verdadeiramente progressista, né. Todo mundo sabe disso. Os interesses da esquerda-oligarca brasileira estão vinculados a ganhos pessoais e a sonhos partidários de grandeza e poder. O ruim para vocês, é que não consiste mais em nenhum segredo. Não há um infeliz que não tenha pleno conhecimento disso.
Jean François Revel já dizia que informação não é conhecimento...
ResponderExcluirCharlles,
ResponderExcluirnem vou discutir se a mencionada cantora seria filósofa ou não… Sinceramente, não vale a pena. Por outro lado, só para dar um exemplo do absurdo no qual a educação brasileira chegou, mostro a seguir uma questão da prova de Língua Portuguesa do Processo Seletivo para Cursos Técnicos Integrados ao Ensino Médio do Instituto Federal do Espírito Santo (ou seja, tal prova foi destinada a selecionar alunos adolescentes para uma instituição federal de ensino). Tal fato ocorreu em 2012. Chamo atenção para a resposta oficial da banca organizadora do exame. É inacreditável…
http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2012/12/pais-consideram-questao-de-prova-do-ifes-pornografica.html
Ramiro, já tinha visto essa matéria à época em que saiu. Achei válido esse comentário que segue abaixo do post:
Excluir"Por isso que nosso país é praticamente o último colocado em educação. Todo mundo só pensa em sacanagem ao invés de prestar atenção na pergunta e responder a questão. Fica todo mundo querendo desculpa pra passar direto. "