sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Naipaul



Passei todo o ano de 2005 lendo tudo de V. S. Naipaul. Já conhecia a obra desse autor solitário e áspero antes mesmo que lhe dessem o Nobel de literatura, e uma vez quis comprovar a estranha sensação de inefabilidade me causada por um de seus romances emprestando-o a uma namorada, que me devolveu semanas depois esclarecendo de um jeito enviesado minhas impressões sobre o livro. Ela disse: "É cheio de ferros corrugados e muito depressivo". Os ferros corrugados haviam me passado batido_ coisa que depois, com um olhar feminino emprestado para me antenar a esses mobiliários cenográficos, vi que o autor tinha uma compulsão por eles_, mas a enorme tristeza e desolação de Uma casa para o sr. Biswas correspondia ao que ela estava dizendo: para um leitor pouco acostumado, era algo depressivo. Eu quis responder a ela que era o retrato exato, sem maquiagens, de nossa condição social e de nossa história, mas antevi que seria uma discussão sem objetivo para os propósitos imediatos de nosso relacionamento, e que talvez ela reagisse negativamente a uma comparação com nossa situação nacional com um enredo acontecido na distante Trinidad y Tobago. Naipaul não serviria à sedução ou à manutenção de um relacionamento. Anos depois, como iniciei dizendo, resolvi que escreveria sobre esse escritor desconcertante em minha tese de conclusão do curso de história, e me pus a ler e reler suas obras. Foi um ano em que, inadvertidamente, me tornei o que se pode dizer um fã obcecado. Naipaul dividia com Saul Bellow as opiniões dos críticos sobre quem era o maior escritor vivo da língua inglesa, ora um retirando o outro do cume.

O título de meu trabalho era um insight bem arranjado: As encarnações imprevistas, as Américas subdesenvolvidas na visão de Gabriel Garcia Marquez e V. S. Naipaul. As duas palavras portentosas foram retiradas de uma passagem de Lord Jim, em que um velho capitão da guarda imperial inglesa é flagrado pela lucidez excessiva de Conrad com seu olhar perdido, por sobre seu cavalo, como se questionando quais arranjos do destino o jogaram naquelas terras da África, quais encarnações imprevistas o trouxeram até ali. Era uma metáfora cósmica perfeita para tudo o que sentem os personagens de Naipaul, toda a deslocabilidade irremediável de um Naipaul que Edward Said uma vez definiu como o intelectual exilado por natureza. Claro que o projeto era bem maior que as minhas capacidades do momento, e vários fatores da vida diária me levaram a escrever com o coração umas quase 200 páginas empregando meu escasso tempo livre, com uma paixão que tentava passar por cima das várias carência formais que sofria minha monografia. Tive que restringir a abordagem, concentrando-me em dois livros de cada autor, mas eu sabia de tudo e lera tudo sobre eles. Escolhi Cem anos de solidão, pelo óbvio, e, estranhamente para mim, escolhi um dos títulos de Naipaul do qual menos gostava, mas que reconhecia sua excelência, o Um caminho no mundo. Foi um ano em que vivi plenamente a felicidade da leitura; tudo que fazia tinha o direcionamento programado de sopesar em que contribuiria para minha tarefa; tudo se relacionava com a beleza e o impacto das páginas que eu, e só eu, estava tendo contato_ recordo de uma noite em que passei horas recapitulando mentalmente uma série de ideias, sentado em um bar após beber duas doses de vodka.

A parte mais difícil foi a de escrever sobre Garcia Marquez. O colombiano parecia apolítico e simplista demais perto de Naipaul, e eu ainda estava sofrendo a rejeição natural depois de vinte anos devorando GGM. Enquanto em GGM se encontrava uma fé e um cavalheirismo arturiano, uma fantasia sensual que poetizava a realidade, em Naipaul se encontrava a matéria podre, incapaz de eufemizações, a brutalidade, a ultra-violência, a americanidade desse lado austral do globo sem retoques e sem papas na língua. Naipaul é visceral, escatológico, impiedoso, seco_ antecipa com maior força a adrenalina criminalística de Roberto Bolaño, e é uma mistura de sociólogo maldito com Elmore Leonard. Mesmo o seu mais "lírico" romance (e haja aspas), Uma casa para o sr. Biswas, em que narra, ouvindo a voz de Dickens, as desventuras sempre malogradas do sr. Biswas em ter uma casa, há o elemento individualizado do niilismo naipauliano, sua denúncia resignada e cruel sobre as mais profundas resoluções da História. E Uma casa para o sr. Biswas, para maior agravante, é uma das narrativas mais engraçadas da metade final do século XX, em inglês. Mas trata-se da graça recapitulativa sobre a desgraça do pai de Naipaul, um trinitino semi-analfabeto que nunca teve uma casa, e que sonhava ser escritor mas que purgava uma rotina insossa de jornalista policial. Tal romance é de uma beleza destilada, de uma potência denunciativa sobre a opressão e a mutilação espiritual dos povos colonizados, que tal montante de susceptibilidades reativas se transformou apenas no laconismo fundo da namorada que resumiu tudo em mera depressão.

Naipaul é uma experiência limítrofe para um leitor, sobretudo um leitor do mundo situado na zona do subdesenvolvimento, tanto americano, como africano, asiático ou médio-europeu. Ele escreveu sobre todas as modalidades geográficas do subdesenvolvimento, visitou todos os países, e levantou grandes polêmicas. Onde esteve foi repudiado, na mesma medida em que teve reconhecimento de sua afiada capacidade de analista intelectual desvinculado de raízes. Parecia aquele personagem real do fraco filme de Spielberg que, sem nacionalidade, morava em um aeroporto internacional. Era a antítese de todos os escritores contemporâneos: sem pátria, detinha uma liberdade que soava amarga para quem sentia ter pelo que lutar. Por causa disso, ele foi meu escritor preferido, e por um longo período, eu compartilhei da crença dos que o julgavam maior que Bellow. Um de seus mais belos livros trata, ousadamente, sobre a visão da decadência da velha Inglaterra pós-imperial, o magnífico O enigma da chegada.

Fiz uma monografia capenga mas mesmo assim tirei a nota máxima, e seu volume encapado me rende, de quando em quando, que algum raro estudante me procure para falar sobre literatura e para que eu lhe proponha um tema. Apaguei o trabalho do computador, para que existam apenas as não-cambiáveis cópias da faculdade e a minha pessoal. Mas eu escrevi este post, de forma rápida, para noticiar que, o livro que me custou os olhos da cara na importação de seu original inglês, e que é uma das obras mais instigantes de Naipaul (que lhe rendeu o Booker Prize) acaba de ser publicado no Brasil, com um incompreensível atraso (visto que quase toda sua bibliografia já foi lançada por aqui). Estou falando de Num estado livre, lançado com uma capa horrível pela Companhia das Letras. Um espetacular livro de contos, com toda crueza e violência sem misericórdia de Naipaul. Falei de Naipaul no passado, mas, como todos sabem, o homem vive, apesar de ter anunciado há algum tempo sua aposentadoria nas letras. E há pouco foi lançado uma biografia devastadora sobre ele (um biografia autorizada !!), em que devassa os capítulos de sua vida em que foi um péssimo marido, e mostra seu crescente rancor ao que ele chama, injustamente, de um desprezo do mundo anglo-saxão por sua obra. Vai o homem, mas sua obra colossal fica.

6 comentários:

  1. a vaidade mata,a incomunicabilidade fode,a vida passa,a nota máxima,mas ainda assim....eu li.
    que merda meu.realmente pra que?

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    1. Ocupar-se com tais certezas extremas é a mais idiota das opções para preencher a vida.

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  2. Tá. Mas tenho que matar quem para conseguir essa monografia? Sério mesmo. Faço o que? Imploro uma cópia a ti, à universidade, ao Papa, ao capeta?

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    1. Tenho uma incômoda vergonha dela, Matheus. Sem falsa modéstia. Muito provavelmente você descobriria todos os meus embustes e deixaria de frequentar esse blog.

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  3. Naipaul e Delillo (e Mishima, mas aí a culpa é do Luiz) foram as maiores descobertas que tive lendo este blog.

    Terminei One out of Many, segundo conto do livro. O empregado indiano que, levado pelo patrão indiano aos EUA, começa a perceber pelo contraste centenas de explorações sobre si. Na conclusão do conto, ele já casado, cidadão americano, cem dólares semanais ao invés dos três e setenta que ganhava inicialmente, ele entende a exploração como algo inerradicável a todos.

    Até sexta termino o livro e passo aqui de novo para perturbar. Muito obrigado pela recomendação.

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    1. Bom saber, João. Fico envaidecido.

      Meus preferidos do Naipaul, além do deste post, é o sr. Biswas, e Uma curva do rio.

      E o Mishima do Luiz foi mesmo uma grande descoberta também para mim.

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