O leitor de É isto um homem? e A trégua dificilmente imaginaria, se não fosse o óbvio conhecimento da história conseguinte, que o autor destas apostas obstinadas no espírito humano acabaria com a própria vida muitos anos depois de ter escrito estes livros, se lançando do alto das escadas de um prédio em Turim. É difícil imaginar, justamente por esses dois exemplos de grandeza literária (entre uma bibliografia por si só cheia de pontos altos), que o mesmo olhar jovial cheio de uma indecorosa radiância de vida que atravessa as páginas dessas memórias aterrorizantes iria se esmorecer com a idade até o ponto do desespero irrevogável do suicídio. Pois existem poucas obras sobre o holocausto que contêm tanta alegria, se é possível dizer isso referente ao tema, uma alegria que transcende as formalidades do lamento reverencioso pelos que morreram nos fornos das indústrias da morte dos campos de concentração alemães, que passa por cima da destruição sem volta das filosofias que expliquem o homem como ser digno do pensamento superior, que se recompõe diante o excesso insuportável de conhecimento sensorial sobre o quanto a Terra é o verdadeiro inferno e o quanto a história é uma ordinária jaula de aflições para o animal humano.
A alegria de Primo Levi ao escrever esses livros é a pura e biológica alegria do sobrevivente, sem remates, sem compostura, com o imediatismo adaptado às implacáveis circunstâncias de que não se pode ter tempo para olhar em volta e raciocinar sobre o que vê; a alegria do instante conseguido, mais um segundo, mais um dia em que seu ultra-fragilizado corpo consegue se levantar, apesar da fome, do frio e do trabalho intensos, e seguir adiante até que se cumpram as 24 horas de sua suspensiva existência sem propósito. Talvez por estes textos_ principalmente os do mais arrebatador deles, o É isto um homem?_ terem sido compostos a partir de rascunhos feitos no calor do instante, quando Levi estava em meados de seus vinte anos e fazia anotações escondidas no Lager, encontremos neles uma esperança de prosseguimento típico da primeira juventude, um desconhecimento orgânico natural da própria finitude, por mais que ela estivesse explícita a cada momento. A alegria de Levi é a alegria que encontra forças ególatras substanciais para manter-se humano, para tecer pensamentos sofisticados alinhados no formalismo do extinto e impossível mundo antes de Auschwitz que Levi acreditava que nunca mais iria voltar a ver; é a fé incutida no derradeiro estágio do farrapo que alcança a sublimidade arrebatadoramente solitária de ter tanto o primitivismo puro do verme que se contorce sob o sol para garantir alguns segundos a mais de vida, quanto do repositório de toda a cultura humana que o faz ainda capaz do brilho de continuar a escrever a grande literatura. Levi é o elo inverossímil entre o que se perdeu para sempre do espírito humano na Shoá e a reconstrução a partir do nada do depois, suspenso no vazio.
Por isso, ler esses dois documentos de uma limítrofe verdade é uma experiência única para qualquer leitor. Acompanhar o Levi pós-adolescente no cotidiano do Campo é ser apresentado a uma mente privilegiada que cogita, explora, desespera friamente, se enche de súbitas e catárticas revelações esotéricas que vem mais da fome e da dor do que da abstração disciplinada (da fome e da mesma dor que alimenta todos os elucidados pelo esclarecimento extremo), se reduz à mera busca de suas satisfações básicas, tornando-se selvagemente desprovido de moral, amor próprio e constrangimento. Esses dois livros são espelhos um do outro, uma espécie de yin-yang, de calor e frio: É isto um homem? é indizivelmente pesado, mostrando uma realidade inescapável, um fim dos sonhos, uma morte lenta e cozida, uma vulnerabilidade que faz da vida continuada um milagre suspeito, cujo mais certo é que se extinguirá ao final de ardis tortuosos; é um buraco-negro de todas as realizações humanas e um adeus definitivo à capacidade de que a humanidade algum dia venha a se regenerar desse inextinguível erro; já A trégua é a parte do alívio, da volta da esperança, a parte solar e carregada de um êxtase feliz por se estar vivo_ é a força reconfigurada de Levi em se mostrar vaidosamente virtuoso em desenhar tipos imortais, paisagens devastadas mas carregadas de promessas, histórias dos sobreviventes que cada uma por si daria magníficos romances.
Ler É isto um homem? é medir-se através da régua perpétua do Levi que viu a convolução da história em seu movimento mais pavoroso; dificilmente o leitor torna a reclamar de seus tédios urbanos confortáveis do presente século após ler que o mais importante no Campo era manter os pés protegidos, seja pelos sapatos migalhados que os sobreviventes roubavam dos cadáveres, seja pelos farrapos de panos de que eles envolviam os pés para não sofrerem da gangrena do inverno feroz de Auschwitz ou qualquer outra doença_ ter a aparência alquebrada, mesmo no relativismo em que todos os prisioneiros eram verdadeiros zumbis, era o decreto de que seriam executados por total obsolescência. E esse é só um dos sofrimentos que Levi narra, em um tom sem reclamações, sem desejos de vingança_ às vezes, aqui e ali, uma explosão de ódio que vai mais contra os graus sempre avançados de corrupção tanto de si mesmo quanto de seus companheiros de prisão do que contra seus algozes_, com a disciplina expositiva do químico formado (Levi o era) que faz de suas memórias um desenho fiel da psicologia e do novo mundo biológico do Campo em que a espécie nova de animal em que se tornara se inseria. Vemos o mundo novo através dos olhos de Levi e o mínimo que nossas mentes adaptadas demais poderiam previr além dos nossos horizontes impostos seria a de que Levi, aos 24 anos, antes de ter dado entrada na prisão sob o número tatuado no pulso 174.517, era como nós, leviano e cheio de planos gananciosos, cheio da veranil sensação de que ele basta ao mundo e que nada poderia estar à frente de suas ambições de poder pessoais. E uma cena Levi se diz nunca mais esquecer, que é a do doutor loiro diante o qual ele tem que se submeter a um teste para ver se está capacitado para assumir uma das vagas de químico do Campo: o homem nem sequer o olha, nem sequer parece dar por estar ele em sua presença, é completamente indiferente à informação de que Levi se formou pela Faculdade de Química de Turim. Simplesmente, Levi não existia; ele poderia decretar a sua morte ali mesmo, como se pisa em um inseto, e o dia seguiria sem que aquilo ocupasse sua memória. Assim acontece com as mulheres germanas que conversam entre si trivialidades (em um cenário de horror indizível em volta), lixando as unhas, que trabalham no laboratório, e que só dão pela presença do esqueleto andante de Levi para expressarem entre si o nojo que sentem diante o podridão que sai de Levi e lhes ofende as narinas. Levi narra o ambiente em que Deus deixara de ser sequer um lenitivo metafísico e em que ninguém entre os prisioneiros já não se importava mais: a única coisa que lhes ocupava as réstias de vida era a sobrevivência instintiva imediata. Estaríamos nós escrevendo uma nova Bíblia, um novo Testamento?, Levi se questiona.
"...aguçar o engenho, fortificar a paciência, acirrar a vontade. Ou, também, sufocar toda dignidade, apagar todo vestígio de consciência, ir à luta, brutos contra brutos, deixar-se guiar pelas insuspeitas forças ocultas que sustentam as estirpes e os indivíduos nos tempos cruéis. Muitíssimos foram os meios que imaginamos para não morrer: tantos quantos são os temperamentos humanos. Cada um implica uma luta extenuante de cada um contra todos, e muitos deles uma longa série de aberrações e compromissos. A não ser por grandes golpes de sorte, era praticamente impossível sobreviver sem renunciar a nada de seu próprio mundo moral; isso foi concedido a uns poucos seres superiores, da fibra dos mártires e dos santos." (É isto um homem?, p.136)
Levi atinge um limite além de Kafka ao mostrar, sem fabulários e sem figurações, a crueza da desumanização absoluta promovida pela burocracia da máquina da guerra, na qual se intersecciona o maquinário caótico dos cenários de coletivização insensibilizada dos Campos de Concentração e do mundo destruído dos vencedores após a guerra. Para ele, a humanidade deixou de ser e deu lugar ao insofismável monstro de mil faces, um Leviatã que assume sua insanidade em simular um pesadelo de papéis e números que não se pragmatiza em nada em uma sociedade regrada e segura. A Europa que o combalido mas radiante de vida Levi atravessa, após o fim da guerra, em A trégua, é um mundo em que só por exercícios de esperança é a mesma Europa oitocentista da promessa do novo iluminismo através da evolução sem freios das técnicas médicas e de conforto urbanos _ a Europa do Zeppelin e das festas de passagem do século na Torre Eiffel. A Europa descrita por Levi é a que vai figurar nos cenários de destruição dos filmes de Tarkóvski e na desolação sônica de O arco-íris da gravidade: já não é simples localidade geográfica, mas uma composição espiritual no que tem de novas percepções sobre a distorção inalterável. A Europa que se oferece ilusoriamente em sua estatura impossível para um Levi que não chega a brincar que crê na resiliência é a mesma que deve ter-lhe confrontado em um ataque de vingança final no alto das escadarias de Turim, em seus 70 anos de vida. A mesma vida que lhe pareceu, naquele instante em que mais uma vez sua mente aguçada percebera, agora contra ele mesmo, se acionar nos mecanismos de repetição da história em que novos Auschwitz e sempre recorrentes e inconclusos Testamentos estão a serem escritos. Só que deve ter lhe parecido impossível responder: para quem?
"Meditava pensamentos amargos: que a natureza concede raramente reparações, e assim é a sociedade humana, enquanto é tímida e lenta ao separar-se dos grandes esquemas da natureza; e que conquista representa, na história do pensamento humano, o chegar a ver a natureza não mais como modelo para ser seguido, mas um bloco sem forma para ser esculpido, ou um inimigo contra o qual devemos lutar." (A trégua, p.36)
por coincidência (não), me chegaram os dois aqui hj! lerei alguma coisa agora no ônibus. amanhã leio isso aqui, abraço.
ResponderExcluirimportante:
ResponderExcluirhttp://www.saude-mental.net/pdf/vol8_rev6_leituras1.pdf
Muito obrigado, Wagner!
ExcluirCharlles, vou te mandar o artigo que interpreta o É isto um Homem? como um travelog, traçando paralelos entre o tour pelo inferno da Divina Comédia e a chegada de Levi em Auschwitz.
ResponderExcluirJá assististe ao Shoah de Claude Lanzmann? Foi um dos primeiros documentários sobre o Holocausto que entendeu ser hora de captar em vídeo os relatos de testemunhas oculares ao genocídio Polonês antes que essas morressem. Lanzmann entrevista um kappo Judeu encarregado da fornalha de Auschwitz-Birkenau...
"que entendeu ser hora de captar em vídeo os relatos de testemunhas oculares ao genocídio Polonês antes que essas morressem"
ResponderExcluirEra início da década de 80 e até então não se havia atentado para a necessidade de registrar de forma mais duradoura a história oral do Holocausto.
Ficaria agradecido, Luiz.
ExcluirHá uns anos li em uma revista sobre um dos primeiros documentários sobre Auschwitz, em que a câmera mostrava alemães soldados disfarçados de prisioneiros, quando os russos chegaram, mas que era evidente a farsa devido a brutal diferença entre os judeus sobreviventes que eram só couro e osso daqueles bem nutridos teutônicos. Saberia me dizer qual filme é esse?
Não sei de que documentário você fala. Esse do Lanzmann é um que reúne cerca de nove horas entre entrevistas e imagens. Eu o considero mais que um registro histórico. É uma peça de arte. Nele Lanzmann passa em revista Auschwitz-Birkenau, Lodz, as deportações das comunidades Judaicas da Polônia, Romênia, Salonica na Grécia...
ResponderExcluirAs entrevistas são sobretudo muito fortes. Há até entrevistas com ex-Nazistas que trabalharam nos campos de concentração. Essas últimas entrevistas são feitas sem que os entrevistados saibam que estão sendo filmados.
Vou atrás deste documentário do qual fala.
ExcluirTem aqui: http://thepiratebay.sx/torrent/8583327/Shoah.1985.CRITERION.COLLECTION.720p.BluRay.x264-GECKOS_[PublicH
ExcluirNo ensino médio, meu professor de história tirou um mês inteiro pra segunda guerra. Vimos trechos de Shoah. Nunca esquecerei do depoimento dum dos homens responsáveis por raspar as cabeças dos presos; foi entrevistado em sua barbearia, enquanto atendia um cliente -- Lanzmann, você é um gênio.
Esse mesmo professor botou a gente pra ler Joachim Fest. Há quem mereça o Dia do Mestre.
Recordo-me bem desse barbeiro também, João. Dele e do Rouxinol de Lodz. Um então rapazote, prisioneiro do campo de concentração de Lodz que era obrigado a cantarolar na proa do barquinho da SS, enquanto os agentes do campo passeavam pelo riozinho da região.
ExcluirLanzmann inicia esse trecho do documentário com o agora já velho rouxinol cantando o seu canto desconsolado.