quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Malignidade Infinita



Ontem acompanhei meu sogro na capital para que ele fizesse certos exames médicos. O juiz, o terceiro pelo qual passa em mãos a já longa saga de seu pedido de aposentadoria, instituiu que ele refizesse todos os exames. Alguns homens bons cercam meu sogro, apesar de tudo, e o melhor deles é, contra todas as probabilidades, seu advogado. Esse homem é um senhor de 60 anos que vive na verdade dos rendimentos de uma lanchonete de comida mineira e não praticava a advocacia há 30 anos, mas pela amizade que deposita no cordato sr. Gercino, prontificou-se a pegar a causa sem cobrar nada. Pelo puro exercício da filantropia da boa vizinhança, esse senhor retirou-se dos afazeres pessoais e bateu nas alas do prédio do Ministério Público durante meses, na tentativa de fazer com que meu sogro tivesse o direito constitucional de parar com a labuta e viver seus últimos dias sobre essa terra garantidos por uma fração ínfima do espólio que por toda vida rendeu ao Estado. É um homem gordo, com uma raia de cabelos brancos que cai por sobre sua face esquerda quando está suado e com a respiração parecendo uma locomotiva prestes a soltar os pistões antes de chegar à estação_ e sempre está suado, com uma pasta marrom desgastada presa à mão que na certa é a mesma que julgara nunca mais precisar em que levava os pedidos de vistas de antigos e esquecidos clientes, antes de se desiludir com aquilo e se ocupar apenas com o paraíso dos temperos do arroz com galinha. A sua abdicação ao direito o cerca num grau espiritual tão inequívoco que as pessoas não conseguem, por puro instinto diante um dissidente convicto, dirigir-se a ele com o tratamento ditado pelo pedantismo formal: não é Doutor Joaquim, mas Seu Joaquim. Minha esposa quando fala com ele por telefone, diz "Seu Joaquim, como está o processo?", ao que ouço de longe a sua voz barítona agitada, o seu rosto sanguíneo dando os indicativos de que desta vez a caldeira da máquina explodirá sob o calor inclemente de sua desesperançada milésima visita à ante-sala do Juíz: "Hoje o juíz pediu para ver mais uma vez os laudos médicos"

Meu sogro, Seu Gercino, apesar dos agentes da estúpida e desumana e brutalmente negligente burocracia, ainda cativa mais homens bons em seu martírio. Os exames que exigiu que se repetissem um juiz que nunca viu o sr. Gercino, que se algum momento se ocupou em pensar sobre esse nome não foi além do mero léxico de sete letras iniciais grudadas em um ofício, tem o custo de mais que dois mil reais pelos laboratórios particulares. Mas o médico que o atendeu desde que foi dado o diagnóstico de seu problema realizou todos esses exames pelo sistema público de saúde, gratuitamente, desde que o Seu Gercino ficasse internado por quatro dias no hospital. Os exames ficaram prontos hoje, e o médico disse que só os mostraria para o advogado, Seu Joaquim. Assim foi. O Seu Joaquim me comunicou no corredor do hospital, quando estávamos para levar de volta meu sogro para sua casa, que dessa vez a aposentadoria se resolverá de forma imediata. E o médico disse à minha sogra, à minha esposa e suas irmãs, que o Seu Gercino pode comer de tudo, beber de tudo, passear, ficar noites sem dormir cantando, dar cabriolas. Lembrei imediatamente de um texto lido nos bancos da escola, que na época eu não pude descobrir seu significado e por isso me pareceu um texto profundo, com alguma singeleza cruel, em que o paciente pergunta ao médico  o que lhe sobrava fazer, e este responde algo assim: "dançar um fandango". 

Ontem em casa me caiu em mãos a referência de um há muito esquecido escritor que me entusiasmara na adolescência. Sheridan Le Fanu. A referência falava de um conto que tive a oportunidade de ler (cujo volume era um montículo azul de papel publicado nos Açores, por si mesmo bastante misterioso, e que fiz a graça de acentuar o mistério perdendo-o nas minhas mudanças), mas que me lembro vagamente ou quase nada, a não ser o impacto que me produziu a impressão do mal absoluto que agora via no comentário de um crítico. A história do conto era sobre um doutor que se vê perseguido incessantemente por um macaco que não para de rondar em cima de sua cabeça. Algo de "uma malignidade infinita", diz o comentarista. Li-o há 25 anos ou mais, e ainda me ficara a sugestão dessa força incansável e obcecada, surgida com o único propósito de ser o mais excepcional e idôneo possível na ação de levar tormento a um homem. Essas palavras por pouco não me reativaram todo o conto, ou pareceu ser capaz de fazer isso, tamanha a presciência que aos 15 anos tive de que existe a malignidade infinita, que dita a loucura, a indiferença e a alucinação. Há muito disso em Kafka, mas não da forma tão maniacamente sem contenção como em Le Fanu; há um conto de Kafka em que duas bolinhas saltitantes surgem do nada e seguem um funcionário de um cartório, determinadas a não abandoná-lo jamais. E não sei bem porque isso me abalou ontem. Minha atitude quanto a meu sogro é o não me envolver, não dar opinião, mas minha esposa insistiu tanto para que opinasse se seria certo aceitar que lhe fizessem quimioterapia, que só pude dizer: Se pudesse voltar, não admitiria que fizessem tal coisa a meu pai. Não precisou; o médico já vira isso. Me abstive de me meter no assunto porque, de forma que nunca supus antes, o sofrimento de meu pai me desestabilizou muito além do que estava preparado. Tenho uma desconfortável certeza de que não sou um dos homens bons a cercar meu sogro. O único exercício bem conseguido por mim foi o de parar de ver por detrás de sua presença humilde o marido e pai excessivamente severo que foi quando tinha saúde exagerada e energia descomunal. Há algo aí severamente intenso ou insustentavelmente leve, que pode ser muito eloquente ou não dizer nada, que quando penso me deixa cansado de ter um cérebro. Fica a imagem um tanto simplória demais, e que nego a explorar, de que o macaco não para de rondar a cabeça de um homem que pesa igual a uma pluma, e que pelos corredores dos tribunais e das bancadas dos juristas, vai um homem com uma esfacelada pasta de couro e sem títulos reais, tresandado de suor, em cujo encalço seguem duas bolinhas saltitantes.

3 comentários:

  1. A mera ideia da perseguição implacável, por duas bolinhas, um macaco, um pensamento impróprio, ou qualquer outra coisa, já é, em si, aterrorizante.

    Ah, o poema é do Bandeira.

    Pneumotórax
    Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
    A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
    Tosse, tosse, tosse.

    Mandou chamar o médico:
    - Diga trinta e três.
    - Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
    - Respire.

    - O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
    - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
    - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

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    1. Tava tentando me lembrar. Me fugiu por completo o "pneumotorax". Valeu!

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  2. Um colega de escritório ficou 2 anos para conseguir a aposentadoria da irmã, cujo evidente estado demencial exigiu visitas sem fuim a médicos, expedições de laudos e pareceres, tudo para se concluir depois de um longo processo que ela é meio tantã, coisa que qualquer criança de 5 anos percebe depois de ficar um minuto ao lado dela. É essa coisa de sociedade estruturada para suportar privilégios infinitos de um lado, e criar todos os problemas para aqueles quenão são partícipes da mesma festa. Isso muda, mas muda devagar; acredito, ainda assim, em um país melhor, mas não para nós: para nossos netos. Coitados de nossos filhos!

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