quarta-feira, 13 de junho de 2012

Saruê


Neste feriado recebemos aqui em casa minha mãe, minha irmã e uma tia. Vieram na quinta, de ônibus, e foram embora na tarde de domingo (elas tem muito medo de dirigir em rodovias). O clima da casa ficou totalmente feminino, com sacolas de presentes, risos parenteando fofocas, receitas de tortas holandesas sendo postas na prática na cozinha, coxas de frango assando dentro de pacotes plásticos de tempero pré-fabricado, conversas prolongadas noite adentro, com todas deitadas na cama de casal (todas mais o Eric, que diplomaticamente tinha que deixar o pai sozinho na biblioteca dos fundos e interagir com a algaravia da parte da família que vem de dois em dois meses). Eu fico muito deslocado nestas visitas, e a grande bênção é que todas não dão a mínima para mim, o que me permite uma adstringente invisibilidade. A Júlia se esquece tanto do pai nestes momentos que por vezes tropeça nos meus pés e se levanta rapidamente, tomando o rumo da balbúrdia com algum pano de mesa ou camisa suja que retirou de algum lugar e revestiu com eles a cabeça. Nesses paradoxos do caos, nesse feriado eu tive muito tempo livre para ficar comigo mesmo e botar as leituras em dia. E tive tempo de sobra para compensar certo distanciamento que vinha tendo com o Miles, e que me deixava preocupado por notar nele um recuo meio depressivo devido à minha omissão involuntária. Fiz bastante carinho nele, saímos para passear de carro e à pé, e retornamos as brincadeiras de rasgar sacolinhas e atirar objetos para ele ir buscar. Levei uma bronca tremenda da Dani por ter deixado o Miles rasgar uma revista velha que ela ainda não tinha lido, e por lançar uma bandeja de plástico que achei ter sido escorada na pia para ser jogada fora, e que o Miles destruiu em prodigiosos vinte segundos de alegria furiosa.

Na sexta-feira comprei um Gato Negro e fui bebê-lo à noite numa pracinha desolada em frente a um templo desativado da Universal. Sentei-me no banco com a garrafa aberta e com um copo plástico, e bebericava o vinho enquanto via, enlevado, o vento frio revoar as árvores e as pequenas peças de lixo da calçada. Estava absolutamente sozinho e afastado dos sons de festa de quatro quadras mais para baixo, na praça central. Estava decidido a abrir aos poucos a minha sensibilidade alterante à bebida, coisa que imaginava ter voltado à estaca zero devido aos tantos meses de abstinência_ as últimas garrafas esvaziadas me pegavam no final mais sóbrio do que  antes, atestando que ou eu avançava para novos estágios de subjeção alcoólica ou continuava a beber apenas pelo sabor das uvas fermentadas_, pois queria apreender sem pressa o que aquela noite e aquele deserto tinham para me dizer. Os altos vidros do templo permaneciam soberbamente imóveis ao vento, conservando um sobrancelhamento indiferente ao musgo que crescia a olhos vistos nas bases das paredes e das teias cinzas proliferadas abaixo da cornija da frente.

O fato desses vidros estarem intactos numa praça conhecida como Praça da Maconha deveria ter motivado o pastor desistente a reavaliar com mais fé a persistência em angariar um rebanho financeiramente viável. O próprio banco no qual eu estava sentado atestava que a turba invisível que agia de madrugada não costumava ter tanto respeito por objetos não vigiados: faltava-lhe duas traves de madeira abaixo de mim, de modo que eu estava suavemente com os glúteos afundados para baixo. No meio desse devaneamento vejo um vulto caminhando de frente ao templo. Arregaço os olhos e percebo ser um homem que poderia ter qualquer idade acima dos 60 anos. Andava furtivamente e com a clara consciência de que havia alguém ali que logo iria vê-lo, e quando entrou sem direito a dúvidas dentro do ângulo da minha visão, adotou uma atitude misto de criança e um bicho silvestre qualquer interessado em aproximação. Usava uma camisa de mangas compridas que ia até os pulsos, e uma calça de flanela desgastada, mais umas botinas bege que lhe davam ainda mais uma áurea de animal híbrido, fruto de algum cruzamento improvável que determinava que aquela hora era a única ideal para que desse as caras no mundo. Quando completou seus passos estudados em linha reta, fez uma curva rápida para a rua e veio cordatamente se sentar no banco ao lado do meu. Tudo sem me olhar; revirava a cabeça observando como se pela primeira vez as árvores da praça e eu notava o brilho prontificado na periferia da pupila onde eu estava instalado. Tinha um rosto desmaiadamente servil, que me atiçou fundamente a curiosidade. Eu não estava querendo companhia, mas algo no rosto dele, que não consegui firmar quando dava seus passos inseguros e bambeantes, me instigava. Parecia para dentro, em um primeiro momento, com alguma deformidade inapreensível. Na faculdade havia visto cães com os rostos mutilados a tal ponto que os zigomáticos e as cavidades nasais ficavam expostas, e o velho gnomo me passava essa suspeita. Mas ao mesmo tempo eu sabia que sua inofensividade era tanta que não comportava nenhum grau de tragédia mais acima de uma solidão destinada aos bobos. Lembrei de um marsupial típico do cerrado, um ratinho descabelado e maltrapilho que poderia viver cem anos devido a sua total fealdade estragar-lhe para sempre como presa, e me veio a certeza de que um saruê havia se metamorfoseado em humano  aquela noite onde o frio de desolação escondia enfim uma melifluosidade que me escapava. Vai ver o pastor fez mesmo bem em sumir dali, pois no momento nenhuma inspiração erraticamente eclesiástica me despertara para o fato de que talvez se cumpria alguma maldição divina por eu estar quebrando a promessa feita com meu rosto em as mãos piedosas de minha esposa que não voltaria a beber.

Mas tive a oportunidade de olhar o rosto do velho e constatar que o estranhismo era que seus ângulos magros me faziam associar a algo da prontificada lealdade do meu cão. Percebi que ele era bem mais velho, 70 anos, talvez 90 anos bem vividos de total humildade saruênica. Fui tomado de um mau-humor irrequieto, pensando que ele deveria fazer o favor de não perturbar senhores incautos que se aventuram em praças da maconha, nas quais nem a interseção de duvidosas forças de deus havia surtido efeito, para ficar só, inteiramente só. Eu sentia o vinho enlanguescer os caminhos arteriais até o cérebro, e me ative ao meu direito de incomunicabilidade. Cinco mulheres e um guri barulhento não haviam conseguido me tirar de meu silêncio em minha própria casa, não seria um protótipo caboclo de Smigol que faria isso. Em outros momentos adoraria falar com ele, mas não aquele hora. O velho, que também me fizera crer que se falasse notaria sua voz um tanto anasalada (um fanho e um gago numa noite solitária), contrariando as minhas expectativas, não em dirigiu uma palavra sequer. Ficou em absoluto silêncio, de braços cruzados olhando à frente a rede oceânica de sombras e ventos.

Voltei dali uma hora para casa. Quando me levantei e entrei no carro, olhei pelo rabo de olho que ele me ignorava combativamente, mas conservava uma calda de sorriso no canto da boca para quaisquer recaída diplomática de minha parte. Na manhã de sábado minha esposa me acorda no colchão de solteiro na biblioteca e diz que o pai dela estava na esquina mais longe aqui de casa, esperando que eu levasse as crianças para ele as ver. Mas que diabo, resmunguei, por que o Seu Gercino não vem aqui e entra para ver as crianças? A Dani responde que é que seu pai estava com o Seu Juvenil, e esse se negava a entrar em casa desde que viu o movimento e constatou que haviam visitas. Meu sogro, o seu Gercino, foi diagnosticado há mais de dois anos (seis meses antes do nascimento da Júlia), com um câncer terminal, que se criara em um dos rins e se proliferara para fígado, estômago e intestinos. Os médicos lhe haviam sido francos e dito que a quimioterapia só iria apressar o processo, que ele voltasse para casa, comesse e fizesse de tudo, para aproveitar os poucos meses que lhe restava. Ele ficara em profunda depressão nas primeiras semanas, chorando pelos cantos. Aceitou participar das sessões de acompanhamento psicológico do hospital, no qual conheceu o Seu Juvenil, um mulato de mesma idade que ele, que havia tido seis tumores no maxilar, devido ao tabagismo de toda a vida, e cuja excisão cirúrgica lhe levara o queixo. Tornaram-se amigos inseparáveis, ocupados em longas viagens para pescarias. Seu Juvenil era um homem curiosamente assimétrico, que afrontava a perspectiva mesmo para os mais preparados de ante-mão para a confrontação com o seu problema. A falta do queixo tornara difícil entender suas vocalizações, que eram muito abafadas e despendiam o odor de nicotina de décadas que transvertia os ares do ambiente. Meses depois da remoção dos tumores, uma nova massa compacta brotou na pequena parte que lhe restava do queixo, onde antes ficavam os dentes sisos, e crescera tanto que dera uma aparência tão mais distorcida a seu rosto que era como se tivesse saído de uma tela cubista. Isso lhe servia ao propósito de não mais parar de fumar, já que a coisa não tinha mais jeito.

Ele e meu sogro haviam alcançado um altaneiro e despreocupado grau de adaptação à doença. Meu sogro sorria, estoico, ao me relatar em sua última visita como se pode conviver bem com a doença. Ele não tomava mais água ou líquido algum há quase três anos, para não sobrecarregar seus rins deteriorados. O seu Juvenil só se alimentava de leite e bolachas dissolvidas no leite, como ensinou a Dani a fazer em sua última visita_ sendo traduzido por uma das irmãs da Dani que tem o dom quase esotérico de entendê-lo cristalinamente. Eu liguei para seu Gercino e disse que era um descabimento eles se recusarem a entrar na minha casa só porque minha mãe estava aqui. Mas meu sogro transmitia a decisão peremptória do amigo de que não iria entrar. Levei as crianças para que o avô as visse, e lá pelos tantos minutos de conversa os convenci, finalmente, a entrarem em casa. Seu Juvenil cumprimentou da varanda às pessoas de dentro, e só se levantou de seu canto em que olhava pacífica e sobriamente o tempo_ sem a mínima importância para o que transcorria em torno_ para se aproximar de mim e balbuciar uma pergunta que me lançou no mais profundo constrangimento. Eu não conseguia entender o que ele estava dizendo, além de uma única e improvável frase. Ele a repetia para mim e eu só balançava a cabeça, até que seu Gercino surgiu à porta para me salvar. "Ele pergunta se aqui tem algum banheiro externo que ele possa usar". Seu Gercino respondeu que não e o acompanhou até um dos banheiros de dentro da casa. Eu estava suado de esforço em entender o que ele dizia. A mim a frase enevoada de cigarro mausoléico e de ausência tecidual teimava em ser: "O senhor tem veneno?"

25 comentários:

  1. Depois que li "Sentei-me no banco com a garrafa aberta e com um copo plástico" quase parei de ler. Vinho em copo de plástico!

    Não sei o quanto a narrativa perpassa sua experiência real, e o quanto de adaptação dos fatos à consciência criativa literária criou um ambiente novo, mas fiquei particularmente triste com a fusão das doenças (e o câncer intratável de seu sogro, na medida do meu) com a fealdade e a morte em contraponto à vida explosiva do mulherio.

    Numa palavra: queria um final feliz. Mas veio o copo de veneno. De plástico.

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    1. Reconheci a heresia no momento em que a escrevi, e juro que estava esperando a retalhação por parte do Marcos. Mas foi um ato clandestino. Para alguém sob vigilância, o desaparecimento de um copo é uma evidência do delito.

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  2. Pareceu-me um reverente e respeitoso aceno à fealdade da vida.
    Excepcional!

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  3. ...daí que o cara tá lá na dele, na praça, na festa de família, no seu cotidiano às voltas com o amigo quase ex, e, de repente e sem que ele saiba, pobre infeliz, transmutou-se em personagem literário, e não receberá um puto de direitos autorais por isso. É dura a vida de um ser humano, por menos humano que ele pareça.

    P.S.: autor que bebe vinho em copo de plástico não merece respeito, isso a princípio, e se bebe escondido da mulher, menos ainda; pra complementar, o faz em um banco de praça fodido que o deixa com a bunda de fora! Api é demais, o cara é um desclassificado mermo!

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    1. Copo de plástico, medo da esposa, a bunda de fora do banco. Se eu fosse aforista colocaria isso tudo em uma frase bombástica para dizer que a literatura sempre foi feita pelos derrotados...

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  4. Bacana esse conto quase ensimesmado dos interiores goianos. E, ah, haveria mais dignidade em tomar vinho no bico.

    Fábio Carvalho

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  5. o final "feliz" seria "serve vinho em copo de plástico?"
    essa tbm não me passou
    e o engraçado é q é sempre o gato negro

    Espero q tu esteja longe do fim da tua biografia, charlles. mas q publique logo a primeira parte ;)

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  6. arbo e Fábio: tá bom... eu mereço a condenação eterna pelo copo de plástico com vinho. Gato Negro é o vinho chileno que mais gosto, e um dos únicos de qualidade que chegam por aqui.

    Coloquei o marcador "autobiografia" para fins de procura mais fácil aí do lado. Não me vem outra denominação mais eficiente.

    Obrigado.

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  7. Vocês reclamam do copo de plástico sendo que eu teria parado de ler se ele tivesse levado uma taça. Quem sai de casa com uma taça na mão? Ia parecer que o Charlles estava num episódio de Friends.

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    1. "Quem sai de casa com uma taça na mão?"

      Meu marido sai. O Marcos Nunes. E trate de não pensar o que você deve estar pensando agora!

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    2. Vítima da própria esposa. Isso tá virando moda?

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    3. Lamento, Rachel, já pensei. Com musiquinha e tudo.

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    4. Putz, Caminhante! Era isso que eu deveria ter respondido!

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  8. Houvesse o autor fumado um baseado na Praça da Maconha, em conformidade com tradições locais, possivelmente teríamos registros de um diálogo de monossílabos que se demoraram na vogal com o Smigol – e, claro, alguma conhecida pilha analítica do gato preto. Na manhã seguinte, ao se levantar da nuvem solteira onde dormiu, Charlles iria ter com o sogro e com o senhor que tanto fuma. Não suaria desconfortável ante a pergunta “O senhor tem veneno?”. Franquearia, seguro da gentileza, a ponta que sobrara da noite anterior para o seu Juvenil.

    Mas o cara inventou de tomar vinho em copo de plástico para polemizar. (F.C.)

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    1. Diante ao bullying tão cruel que estou sofrendo neste post, acabo de colocar outro Gato Preto na geladeira para tomar à noite, ouvindo Elvin Jones. E tomar-lo-ei em um copo de vidro. Mas nada de taças.

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    2. Se for copo de requeijão dá na mesma...

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    3. Ou taça de cristal ou bunda de fora. A opção já foi feita.

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    4. Caminhante, depois aparece nos jornais que um blogueiro oprimido invadiu alguma convenção de redes sociais_ onde estavam as presenças confirmadas de alguns curitibanos, portoalegrenses e cariocas_ atirando para todos os lados e suicidando depois, e vão dizer que o cara era meramente um desequilibrado.

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  9. ...e não se coloca vinho tinho na geladeira; vinho tinto frio perde o sabor; a temperatura deve ser entre 14 e 17 graus Celsius.

    Importante: o ideal é beber vestido com uma sainha frufru rósea.

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    1. Acho que você está sendo enganado por algum enólogo muito mal intencionado, Marcos.

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    2. Uma vez, numa boate de uma cidadezinha interiorana de Minas, eu acordei vestido com uma meia calça; mas eu havia tomado uma bebida bem mais forte que o vinho...

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    3. Numa cidadezinha interiorana de Goiás, houve um fulano que acordou de meia-taça ao lado de um gato negro e forte. (F.C.)

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  10. Belo texto, Charlles! Essa história daria um belo blues, daqueles bem chorosos!

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