16 de junho. Hoje é um dia especial para todos os agraciados pela leitura de Ulisses, de James Joyce. Para todos que sabem que a felicidade é continuamente encontrada nas grandes leituras. Para todos que amam os livros; que nunca foram contemplados pela exaustão ou a insuficiência diante as palavras. Trata-se do Bloomsday, o dia em que transcorreu toda a ação de Ulisses, em 16 de junho de 1904 (na verdade o final do romance pega as primeiras horas da madrugada do dia 17 de junho, fato que pouquíssimamente é comentado; mas tudo bem, abre precedente para aumentar-se o prazo da comemoração). Eu já encontrei a felicidade na leitura de muitos livros: Anna Kariênina, Os Demônios, Herzog, O Teatro de Sabbath, Longe e Há Muito Tempo, Absalão, Absalão, Luz em Agosto, A Montanha Mágica... e a felicidade que me esperava em Ulisses, em quatro dias febris de 2006, me mostrou de uma vez por todas que o maior poder da literatura é isentarnos da consciência do passar dos anos, dando-nos uma imperativa certeza da continuação da juventude. Que a leitura nos mantem jovens eu já o sabia nem que fosse pela constatação não-oficial de que doenças degenerativas pouco acontecem com leitores, ou que leitores não se suicidam com frequência, afora, nesses dois casos, as exceções da regra das últimas informações sobre Garcia Marquez, o Alzheimer da narradora de Reparação, e todos os adeptos da solução do eternamente jovem Werther ao longo dos últimos três séculos. Os velhos notórios dos quadros da UTI dos hospitais costumam serem retirados dos sofás em frente à televisão, ou de frente a janelas que dão para as sempreternas tramas de vizinhos em trânsito. E os suicidas são ocupados demais com seus desesperos financeiros para dignarem-se ao tamborete tombado sob a corda por motivos de desalento da alma.
Tenho as três traduções de Ulisses para o português do Brasil, e o livro original. Pela década de 90, tentei de todas as formas ler a do Houaiss, mas nunca consegui. Fiz fila ao grande número dos que acham Ulisses a mais empolada e leviana enganação da indústria cultural livresca, o que por si já daria um enredo poderoso para uma sátira conspiratória de empresários desvirtuados das indústrias do amianto e da exploração do diamante africano para dedicarem suas vidas a pregar uma peça em um por cento da humanidade que ainda lê. Só fui conseguir ler a tradução da professora Bernardina, no auge da aclamação do lançamento da Alfaguara. Ulisses só pode ser lido com uma atenção despreocupada. Não é um livro sagrado. É um livro divertido, fascinante, elétrico, maravilhoso. Se há uma conspiração para estragar sua leitura, ela é feita, talvez involuntariamente, pelas pessoas que o amam, quando ressaltam que sua dificuldade é hermetismo, ou que a grande força retórica de Joyce se centra em tolos jogos e fusão de palavras. Ulisses é tão difícil de se ler quanto qualquer livro de Dostoiévski ou Tolstói, nada além disso. Não é um livro destinado para 99,9% da humanidade. Como toda produção do alto intelecto, é uma obra elitista. Barram-se em suas portas os que não exercem a capacidade de atenção, os que limitam o alcance da visão para os informativos da sessão de preços e cotações de mercadoria, os intrinsecamente preguiçosos, os que bocejam em uma sinfonia de Beethoven, os doutores pragmáticos em armadilhas televisivas de danças sensuais da moda, os que se transportaram em definitivo para o universo digital. Por isso é uma data a ser celebrada, o dia de hoje. O dia da conflagração maçônica dos que tem um tesouro íntimo inigualável guardado a sete chaves. Como disse certo crítico, os livros não nos tornam melhores, mas mais ricos. Celebremos nossa fortuna.
(Seguem nos dois posts abaixo, um pequeno texto sobre Ulisses, e uma resenha sobre um bom romance sobre o Bloomsday, retirados da memoriabilia do blog.)
Lerei Ulisses. Você me manda e-mail avisando que começou o Grande Sertão, que do lado de cá eu empresto um Ulisses da biblioteca.
ResponderExcluir(E agora, José?)
Como eu queria aceitar seu desafio agora, caminhante. Mas tenho pela frente uma série de leituras já engatilhadas.
ExcluirMas não sou alguém para sair tão de fininho assim de uma provocação. Aguarde que esse email vai chegar bem mais cedo que você imagina.
Meu dia.
ResponderExcluirInveja de você aí, Penelope. Com certeza curtiu bastante o dia de ontem.
ExcluirBaita texto, Charlles. Comprei há alguns dias atrás uma edição do Ulisses. Mais de mil páginas. Um cartapácio, verdadeiramente. Após ler o seu texto, resta-me o grande desafio de empreender uma grande caminhada nas trilhas literárias do mundo joyceano. Comprei sombras sobre o Rio Hudson, do Issac B. Singer - indicado por ti. Aguardo a chegada com certa ânsia.
ResponderExcluirBom domingo, Charlles!
Chega a ser chato ficar falando isso, Carlinus, mas realmente Ulisses é um marco na vida de um leitor. Está com a edição da cia das letras, né. Ela acertou pelo lado do preço, mas talvez tenha feito um desserviço para a divulgação de Ulisses entre possíveis interessados, com um calhamaço de mais de mil páginas. Não vi isso como uma boa técnica de vendas. Mas talvez se insira no interesse elitista a que me refiro.
ExcluirO Bashevis deve sim despertar ânsia em você. É maravilhoso!
Obrigado. Bom domingo para você.
A cerca do ano 4.000 depois de cristo, deus não existe. Há um dia, o Bloomsday, em que se celebra o ocaso do último dia em que se manteve o grau máximo de crença nas epifanias, mas tal celebração não é religiosa, ao inverso: baseia-se em um texto escatológico sagrado em que o criador descobre o sentido da vida ao mergulhar de boca no cu sujo de sua amada, para logo em seguida recobrar a consciência e rebaixar a descoberta apenas a um nível de prazer obsedante, comum a todos os primatas.
ResponderExcluirNeste dia não sagrado as pessoas retiram-se para seus banheiros e, todos juntos às 23:59 hs, dão a descarga, liberando as fezes acumuladas durante o dia inteiro nas privadas.
Infelizmente, a partir do século XXX, todos os dejetos passaram a receber tratamento instantâneo em sofisticados centros de reprocessamento de materiais, de forma que, nos séculos seguintes, todos eles se revertiam, instantaneamente, em refeições, de forma que nós, felizes humanos pósfuturistas, tão logo cagamos também comemos.
Este fato é gerador de enorme economia e perfeito equilíbrio ecológico, sem deixar nada do adorável aroma de merda tão adorado pelo criador, ao contrário: a substância retomada é devidamente insípida e inodora, possuindo somente uma ligeira coloração verde, que contém flúor e deixa uma agradável sensação de frescor e bom hálito, por também insípido e inodoro.
Tudo isso deveremos àquele que, diz-se, um dia se chamou James Joyce.
A felicidade, soubemos, entre lamentos, durante o intervalo que cobriu os séculos XX e XXVI, não passava de uma quimera piedosa, mergulhada em patética autocomiseração.
Por isso, até o mencionado século XXVI, resistiu a chamada Literatura.
Parece que dela nos resta hoje o Bloomsday, mas os objetivos se transfiguraram, ao que dizem, de uma celebração religiosa dos encantos metafísicos da matéria, em um rito cuja finalidade é preservar o sentido essencial da superação de todos os males pela via do higiênico equilíbrio de todas as vias materiais.
Ford nos guie.
"[...]de forma que nós, felizes humanos pósfuturistas, tão logo cagamos também comemos."
ResponderExcluirOu seja, o único determinismo histórico é que o mundo caminha a passos largos, inexoravelmente, para um cu colossal...
Distopia para uns, utopia para outros, merda pra todo mundo.
Excluirtambém kundera...
ResponderExcluirO que eu acho é que não há melhores ou maiores livros; o que mais conta é o resultado da colcha de retalhos feita por todos os livros (os bons, os médios, os ruins não - não se deve chegar ao final da leitura de livros ruins, embora, para saber se eles são mesmo ruins, muitas vezes temos que chegar até o final...) na mente confusa de cada leitor, que desfia, desfia e desfia tudo...
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