Em sua autobiografia Nas Peles da Cebola, não é o propósito de Günter Grass fundar um novo tipo de humor identitário dos alemães do pós-Segunda Guerra, mas seu enfado estoico diante a bestialidade massificada a que o jovem Grass se entregou no Terceiro Reich poderia bem servir a isso. O Grass de Nas Peles da Cebola é o mais desencantado e desprovido de eufemismos que conservem a mínima dignidade de sua memória; não se guarda nem o direito relativamente abrigado de ser um anti-herói. Em uma narrativa que alterna a primeira e a terceira pessoa, Grass afirma sem qualquer pudor que foi sim absorvido pela comoção generalizada do amor ao Fürher, alistou-se em uma das agremiações juvenis de guerra e marchou vestido com algum dos uniformes dos ricos tons de cinza que serviram a calar a auto-crítica em uma população que ansiava por se reerguer da destruição espiritual perpetrada pelo Tratado de Versalhes. Grass fala de si mesmo vendo-se à distância temporal, menciona o jovem de 17 anos que levava seu nome como um ser com direitos associados ao Grass que ora escreve aos 77 anos.
O Grass de 17 anos, ele escreve, nunca matou ninguém na guerra, servia a Hitler mas nunca se entusiasmou a participar das grandes cerimônias populares de adoração a ele (não por algum resquício de lucidez histórica, mas tão somente por ser alienado demais para fazer frente mesmo a manifestações de fé política insustentáveis), e escapou da morte em batalha por covardia ou pela mais involuntárias das sortes. Em uma das vezes, seu batalhão se escondeu dos russos em um porão cujo teto sustinha uma série de bicicletas novas com os pneus calibrados, e seu comandante, desesperado pela fala de outros planos de escapada, manda cada um pegar um bicicleta e sair disparado pela ruela atrás da casa. O jovem Grass revela ao comandante, encabulado, que não sabe andar de bicicleta. Quer se justificar que nunca teve tempo de aprender pelas agruras da pobreza, pela falta de dinheiro e tempo de seu pai, mas o comandante o interrompe e ordena então que ele fique da janela, armado com um fuzil, dando cobertura aos ciclistas fugitivos, que assim que possível, eles voltariam para buscá-lo. Nem essa oportunidade surgida de heroísmo se cumpriu, escreve Grass, pois assim que se posicionou em seu posto com o fuzil em punhos, só teve tempo de ver a fila de ciclistas mal atingindo o limite distante da ruela de terra caindo em sequência sob a metralha dos russos. A perna de seu comandante ficou erguida por cima do guidom numa posição jocosa, e Grass pôde se salvar graças a esse sacrifício impresumido de toda sua tropa. Mesmo na velhice, Grass escreve, ele nunca aprendeu a dirigir automóveis e bicicletas, e não vê vantagem em ensinar isso a seus filhos e netos.
Esse humor de Grass, a exemplo do humor auto-depreciativo judaico, tem uma força libertadora sustentada justamente pelo que parte da imprensa mundial fez de conta que não viu ao condenar a moral do autor por ter servido ao nazismo: na total independência das boas suposições e da lúcida e por vezes cruel reavaliação de si mesmo. Sebald, em Guerra Aérea e Literatura, salienta a quase completa ausência da literatura alemã sobre as cidades alemãs destruídas pelos bombardeios aliados. Os intelectuais alemães dividiam a crença popular subjacente de que eles mereceram as tantas cidades destruídas, e os milhares de civis mortos, diz Sebald, como pagamento pelos crimes do extermínio nos campos de concentração e pela retroagem consequente na filosofia humanista. O que o silêncio parecia dizer era: o que são nossos mortos diante todo o niilismo derrotista implantado no coração de toda a humanidade? Para se escrever sobre Dresden e outras cidades transformadas em ruínas, teve-se que esperar a imaginação sublocada de escritores já bastante exilados da imagem de teutônicos, como Vonnegut e Bernhard. O silêncio alemão revelava o constrangimento cuja história mostrava estar por detrás da origem do orgulho ferido e recalcado talvez à espera de uma cíclica nova oportunidade de catarse, de uma nova ascensão à violência. Grass oferece esse legítimo humor pós-Hitler como consolidação do expurgo do modo de ser do alemão padrão que sobreviveu não apenas fisicamente da segunda guerra, mas que fez para si um refúgio contra a reavaliação moral, podendo estendê-lo a seus descendentes: o humor mais profundo que a complacência, que vai mais longe que o riso de suas mazelas; um humor inédito que entrelaça-se com a mais insofismável e pouco cordial seriedade de suas deformidades espirituais. Como se uma pedra pudesse rir.
O estranho é toda a reação de assombro diante a revelação de Grass de que pertenceu ao movimento nazista, como se ele não tivesse deixado excessivamente claro sua coaptação_ mesmo que efêmera_ ao nazismo em toda a sua obra. Nas Peles da Cebola está perpassado de uma vergonha sedimentada, incontornável, do fantasma onipresente da culpa, como os insetos e pequenas partes vegetais imortalizados em seus últimos instantes de vida no âmbar, nesta outra imagem usada pelo autor no livro. E todo o livro relaciona-se ativamente com a bibliografia de Grass, afirmando com veemência, numa reação antecipada à esperada retalhação que iria obter com sua confissão aberta: mas vocês não viram os tantos indícios que estão em minha obra? não reconheceram essa vergonha na trajetória em O tambor, em Anos de Cão? Não souberam dessa extensa mea culpa, de uma vida toda, de oito décadas, nas páginas finais de A Ratazana, nas quais a ratazana mãe não concede a opção de uma nova chance de redenção para a humanidade? Não viram o que estava por detrás da não tão sutil metáfora da transposição de todos os mortos de um cemitério para sua terra de origem, em Maus Presságios? As palavras duras de Nas Peles da Cebola, sua poesia sofisticadamente vulgar, sua auto-segregação corajosa dos salões literários do bem estabelecido e moralmente aceito, ressaltam com uma força soberba o extremo sarcasmo que Grass adotou em cada um de seus livros: se vocês fingem que não veem, eu vou esfregar a hipocrisia na cara de vocês agora sem meios termos.
Quem lê Grass desde seus romances antes do Nobel não se assombrou nem um pouco com sua "confissão". Não é o caso de condenar Grass por ter se alicerçado de porta-bandeira da moral alemã dos que não se renderam ao nazismo durante toda a vida, e vir se confessar aos 77 anos. A escrita de Grass sempre foi forjada no aço, sempre distante da estética da literatura norte-americana ou das demais literaturas europeias, cultivando uma independência às formas do beletrismo ortodoxo do que vinha se fazendo nos melhores romances contemporâneos, e essa independência se revela também nas fáscias não tão facilmente descobertas do tema de Grass. O Tambor, por exemplo, para pegarmos sua obra mais conhecida, é carregado de imagens escatológicas; um romance cuja definição apropriada seria emético, com suas enguias cruas nos tempos de premonição da grande inflação, os mijos das crianças servidos de bebida obrigatória nos bullyings dos pátios de recreio; os dedos penetrantes dos pés procurando por debaixo das saias da mãe de Oskar, do amante, no refúgio de debaixo da mesa de jantar. Esse romance cheira a dejetos e panos sujos, a batata cozida em latas sobre pequenas fogueiras de petróleo. Sua primeira heroína tece a linha de não se servir como modelo a ninguém dos personagens de Grass, sendo a avó de Oskar, ao esconder um ladrão pervertido dos algozes que o caçam por debaixo de suas quatro saias. E seu artífice da sobrevivência principal é o anão Oskar Matzerath, o solitário autista social que quebra vitrines de catedrais com o grito e sustenta, em sua estatura e em si mesmo, todo um leque de metáforas da consciência moral da Alemanha. Em Anos de Cão, vemos a mesma sublevação de disformidades nas cicatrizes no rosto de um dos personagens, nas descrições sexuais cruas do buraco da Tulla, uma das primas devassas para as quais um soldado raso escreve suas cartas no front.
Essa crueza sempre foi a marca característica de Grass_ e sua escrita exuberantemente literária. Grass desfez astutamente a teoria posterior de Sebald sobre o Silêncio Envergonhado. Ele falou, gritou, da maneira como cabe aos fariseus o fazerem, comendo pelas beiradas, afirmando-se nas loquazes reticências. Há uma cena em Nas Peles da Cebola em que esse deslocamento de voz fica perene e o leitor se percebe lendo a voz do inimigo: o jovem Grass chega a um acampamento de soldados retirantes da invasão russa, e se senta junto a eles para comer gulash. São rapazes mal saídos da puberdade, contando piadas singelas e rindo, fazendo graça e sendo levianos. Nazistas. Estavam fugindo do exército responsável pela maior libertação da história do século passado. Como apraz a esse fundamental escritor, sua biografia diz mais que aparenta, e penso que o faz para gerações do porvir que tomara não nos vejam pela ótica obtusa dos que se acham sempre jovens e infalíveis.
O estranho é toda a reação de assombro diante a revelação de Grass de que pertenceu ao movimento nazista, como se ele não tivesse deixado excessivamente claro sua coaptação_ mesmo que efêmera_ ao nazismo em toda a sua obra. Nas Peles da Cebola está perpassado de uma vergonha sedimentada, incontornável, do fantasma onipresente da culpa, como os insetos e pequenas partes vegetais imortalizados em seus últimos instantes de vida no âmbar, nesta outra imagem usada pelo autor no livro. E todo o livro relaciona-se ativamente com a bibliografia de Grass, afirmando com veemência, numa reação antecipada à esperada retalhação que iria obter com sua confissão aberta: mas vocês não viram os tantos indícios que estão em minha obra? não reconheceram essa vergonha na trajetória em O tambor, em Anos de Cão? Não souberam dessa extensa mea culpa, de uma vida toda, de oito décadas, nas páginas finais de A Ratazana, nas quais a ratazana mãe não concede a opção de uma nova chance de redenção para a humanidade? Não viram o que estava por detrás da não tão sutil metáfora da transposição de todos os mortos de um cemitério para sua terra de origem, em Maus Presságios? As palavras duras de Nas Peles da Cebola, sua poesia sofisticadamente vulgar, sua auto-segregação corajosa dos salões literários do bem estabelecido e moralmente aceito, ressaltam com uma força soberba o extremo sarcasmo que Grass adotou em cada um de seus livros: se vocês fingem que não veem, eu vou esfregar a hipocrisia na cara de vocês agora sem meios termos.
Quem lê Grass desde seus romances antes do Nobel não se assombrou nem um pouco com sua "confissão". Não é o caso de condenar Grass por ter se alicerçado de porta-bandeira da moral alemã dos que não se renderam ao nazismo durante toda a vida, e vir se confessar aos 77 anos. A escrita de Grass sempre foi forjada no aço, sempre distante da estética da literatura norte-americana ou das demais literaturas europeias, cultivando uma independência às formas do beletrismo ortodoxo do que vinha se fazendo nos melhores romances contemporâneos, e essa independência se revela também nas fáscias não tão facilmente descobertas do tema de Grass. O Tambor, por exemplo, para pegarmos sua obra mais conhecida, é carregado de imagens escatológicas; um romance cuja definição apropriada seria emético, com suas enguias cruas nos tempos de premonição da grande inflação, os mijos das crianças servidos de bebida obrigatória nos bullyings dos pátios de recreio; os dedos penetrantes dos pés procurando por debaixo das saias da mãe de Oskar, do amante, no refúgio de debaixo da mesa de jantar. Esse romance cheira a dejetos e panos sujos, a batata cozida em latas sobre pequenas fogueiras de petróleo. Sua primeira heroína tece a linha de não se servir como modelo a ninguém dos personagens de Grass, sendo a avó de Oskar, ao esconder um ladrão pervertido dos algozes que o caçam por debaixo de suas quatro saias. E seu artífice da sobrevivência principal é o anão Oskar Matzerath, o solitário autista social que quebra vitrines de catedrais com o grito e sustenta, em sua estatura e em si mesmo, todo um leque de metáforas da consciência moral da Alemanha. Em Anos de Cão, vemos a mesma sublevação de disformidades nas cicatrizes no rosto de um dos personagens, nas descrições sexuais cruas do buraco da Tulla, uma das primas devassas para as quais um soldado raso escreve suas cartas no front.
Essa crueza sempre foi a marca característica de Grass_ e sua escrita exuberantemente literária. Grass desfez astutamente a teoria posterior de Sebald sobre o Silêncio Envergonhado. Ele falou, gritou, da maneira como cabe aos fariseus o fazerem, comendo pelas beiradas, afirmando-se nas loquazes reticências. Há uma cena em Nas Peles da Cebola em que esse deslocamento de voz fica perene e o leitor se percebe lendo a voz do inimigo: o jovem Grass chega a um acampamento de soldados retirantes da invasão russa, e se senta junto a eles para comer gulash. São rapazes mal saídos da puberdade, contando piadas singelas e rindo, fazendo graça e sendo levianos. Nazistas. Estavam fugindo do exército responsável pela maior libertação da história do século passado. Como apraz a esse fundamental escritor, sua biografia diz mais que aparenta, e penso que o faz para gerações do porvir que tomara não nos vejam pela ótica obtusa dos que se acham sempre jovens e infalíveis.
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