segunda-feira, 11 de junho de 2012

Notícias de Gabriel Garcia Marquez



Abro meu e-mail agora e vejo um link postado ali pela Caminhante já com um título que me põe de guarda: "Que triste!". Vejo que se trata de um texto sobre o escritor que mais me coloca de sobre-alerta nestes últimos anos, por ser ele um dos criadores do qual mais me sinto perto e íntimo o bastante para amá-lo e odiá-lo na mesma medida, e por seu longo silêncio prenunciar que as coisas não andam bem no alto de seus mais de 80 anos. Gabriel García Márquez faz parte da minha vida da mesma forma que alguns de meus mais insubstituíveis amigos da vida real, e talvez até com mais proeminência espiritual devido à cumplicidade que obtive dele em tantos anos de releituras fervorosas. Nossas idades cronológicas se encontraram mesmo ele sendo quase meio século mais velho do que eu, pois quando eu tinha 19 anos e aspirava aprender a escrever bem unicamente para meu deleite secreto, aprendi com as crônicas maravilhosas de um Garcia Marquez de 20 anos que transvestia as ruas de Bogotá com a áurea mítica das ruas de Londres; quando vivi meu primeiro grande amor, foi Florentino Ariza que me servia de medida para os meus próprios vexames iluminados; quando me infiltrei de paixão pela América Latina que vicejava por debaixo dos arquétipos estúpidos da grande mídia, foi Aureliano Buendía que me revelou verdades até então inconcebíveis sobre a impossível juventude de meus avós; quando eu já partia para outras leituras e outros ídolos literários, nos idos de meus trinta anos, foi um GGM desacreditado e imitação de si mesmo que me acenava a ruptura da amizade e o distanciamento. Até na despedida eu ainda iria me ocupar por dois anos com a escrita de uma monografia na qual expus com mais emoção que devia as causas de meu recente repúdio a um senhor que envelhecia mal e cuja fama máxima lhe servira unicamente a trair seu enorme talento literário. Tanto é que, de profundo enfado, me desfiz de todos os livros que tinha dele, da mesma forma que um amante em processo de regeneração se afasta de todos os símbolos asfixiantes que quase o levaram ao crime passional. Eu havia lido tudo de GGM, cada página, cada entrevista, cada curso de literatura que sua flacidez resolveu ministrar para alunos inúteis para a literatura mas cheios da gaita em uma casa luxuosa em Cuba. Li seu roteiro de cinema, seus exercícios de ficção faulkneriana mal engendrados da adolescência, e, claro, suas magníficas três obras inatingíveis, as únicas que irão permanecer: Cem Anos de Solidão, Ninguém Escreve ao Coronel (que sempre achei a tradução literal do título de uma beleza maior que a arranjada para o português: O Coronel não tem Quem lhe Escreva), e O Amor nos Tempos do Cólera.

Há muito que meus pensamentos se dirigem a ele, na dúvida do por quê de tão longo silêncio. Minha volta à sua amizade se deu na publicação de sua auto-biografia, há dez anos, que, contudo, não traz nada de novo ao antigo aficionado, a não ser a comprovação de tudo que foi dito antes nas outras obras; mas que, como um último esforço de recuperação da juventude e do ímpeto pela escrita, ele retorna à sua musicalidade original, ainda que, por vezes, não se esconde de todo o cansaço. Depois veio o Putas Tristes, fraco e dispensável, evidenciando ser tarde para o arrependimento por ter desperdiçado duas décadas (ou três décadas, considerando que a de 1970 foi também de um retumbante silêncio) com bajulações a coronéis e arcebispos (como afirmou a respeito Bolaño). Suas tentativas tristes de recuperar a grande voz lhe outorgada sempre me lembrou o vaticínio que Hemingway fez ao mutismo definhante de F. Scott Fitzgerald, comparando o talento finíssimo do autor de O Grande Gatsby com o pó das asas de uma borboleta, que se esvai ao menor movimento. Pois GGM morreu em vida por uma ridícula acomodação a um luxo tão cruel diante a sua vaidosa cegueira de laureado, que não o permitiu perceber que sua postura pessoal passou a ser milimetricamente contrária a tudo que ele havia escrito em seus livros. Os sofás italianos de couro em sua masmorra solar em Cuba e suas roupas brancas de guru supersticioso, à maneira dos bijoteirismos caros de Roberto Carlos e Madonna, lhe transformaram numa lastimável estrela antinomínica que nada tinha de intelectual e muito de produto em franca obsolescência da mais perversa indústria midiática. Ele trilhou o caminho contrário da trabalhosa expurgação do latino americano burro e hedonista de seu livros, se transformando no oposto de José Arcádio e Aureliano Buendía: nada se via nele da bravata anti-acadêmica  e da inteligência combativa aos americanos das companhias bananeiras que se vê em seus personagens. Ele criou tipos soberbos que valorizavam o latino-americano pelo que nós somos, sem necessidade de eufemizações, mas em sua Távola Redonda ele se satisfez apenas com o que reluzia vagamente das portas para fora, confinando o amor, a guerra, os pelotões de fuzilamentos, os heróis que mandam tudo para a puta que pariu e tem a inconcebível coragem de voltarem para casa, as virgens que ascendem ao céu e as prostitutas com sonoras gargalhadas e com os sovacos com cheiro de cinzas, tudo no interior, se comprazendo a ser o velho gordo e bonachão das verdades instituídas e do mundo como nos veem as tradições preconceituosas do exterior. Em um texto sobre Neruda que ele escreveu, creio que em Doze Contos Peregrinos, o poeta chileno aparece como um inofensivo excêntrico glutão, que fica no limite do mal comportamento à mesa, que escreve poemas superficiais em guardanapos de papel que não são nem a sombra dos cantos gerais e dos vinte poemas de amor e da canção desesperada. Não uma profecia sobre o futuro iminente do próprio autor, mas um novo arremedo da antiga glória num conto insubstancial que é fácil diagnosticar o modelo bambeante e a prosa sem inspiração.

Por isso a certa tristeza ao ler o link apresentado pela Caminhante. Então, pelo que parece, GGM mal reconhece os amigos mais íntimos, mal se lembra dos detalhes mais fulgurantes de sua longa vida de glórias e feitos nem um pouco desprezíveis. Meu grande herói não passa, trocando em legítimos miúdos, de um senhor para quem só se pode dirigir a mais pavorosa sensação de pena, por sua prostração e sua evidente condição humana. Qualquer pensamento mais acurado do que este, qualquer crítica mais acentuada, e nos cai em cima a culpa do dever de respeito aos que deixaram há muito de ser uma entidade fulgurante e se tornaram convalescentes da única e paciente resolução natural. Mas isso não me afasta a lembrança desagradável de Herman Hesse, em Lobo da Estepe, acusando Goethe de ter morrido com a perigosa idade de 83 anos, ou Thomas Bernhard fazendo seu narrador dizer, em O Náufrago, que é uma abominação viver  mais que 50 anos. Ou da viúva de Maiakóvski pondo fim em sua vida já quase aos noventa anos, enfadada de tanta vida. Ontem mesmo estava lendo no banheiro o primeiro volume de Textos do Caribe, do GGM de 19 anos, um livro que eu vendi e recomprei incontáveis vezes, que eu amava nos tempos do colégio, me tornara indiferente em meus tempos de estudante de jornalismo, que foi exemplo de escrita criativa e logo se transformou em peça de literatura de terceira qualidade, mas que há alguns anos se estabeleceu definitivamente como uma coleção dos melhores e mais magníficos textos escritos pelo colombiano, por serem cheios de vida e extravagantemente saudáveis de tanta fé na escrita, de serem inexauríveis e ilimitados em suas falhas e grandiosas insuficiências. Coloquei esses dois volumes de crônicas do jovem GGM entre as minhas consideradas grandes obras do autor. Muitas vezes em minhas confabulações com meu velho amigo GGM, eu o exortava a parar com aquelas empolações cheias de equilíbrio perigoso que o Nobel o fez mutilar a sua escrita, e retornar ao fôlego destemido e sem preocupações de errar dos Textos do Caribe. Um exemplo: depois de um de seus melhores textos, que trata de um dissidente de uma família de sapateiros que opta por ser trombonista, publicado em El Herald, o jornal provinciano para o qual ele escrevia sem falta todos os dias por cinco anos, GGM escreve no dia seguinte pedindo desculpas pela falta de sentido e desconexão de ideias do texto anterior. Tudo num humor leve, na certeza da própria autosuficiência da juventude. Deixe essas palavras medidas em excesso dessas porcarias de grife que você escreve desde o Amor nos Tempos do Cólera, e volte a escrever como em seus vinte anos, no tempo em que você não se preocupava em ser inimigo dos advérbios. Você anunciou que dali para frente, depois do Nobel, nunca mais usaria advérbios, mas lembre-se que há no mínimo um deles em cada página da saga dos Buendía.

Para escritores como Hansum, Saramago, Céline, Philip Roth, Bellow, Tosltói, Llosa, a escrita é uma febre que nunca se cura. Para GGM, nós que o amamos e de certa forma sempre nos sentimos órfão dele, a adaptação convida e reavaliar o que para sempre se confinou nos porões do mais remoto passado.

9 comentários:

  1. Um texto que reflete bem o ocaso do herói que escolhe mal a sua morte.
    E do Homem que não tem bem como escolhe-la.

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    1. GGM havia prometido escrever mais dois volumes de sua autobiografia, cujo primeiro se encerrou no momento em que ele publicou seu primeiro romance, aos 20 anos. Não sei o que pode estar escrito e reservado para a postumidade, mas não acredito que ele tenha tido fôlego para tal empreitada.

      GGM encorpora bem o escritor que, para o bem de sua sobrevivência profissional, jamais deveria ter ganho o Nobel.

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  2. A morte é pior que a coleira de um cão; enquanto a última delimita a ação, a primeira a encerra, daí porque amamos a vida e latimos felizes.

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    1. Gostei. Mas...isso é um aforismo, Marcos, e dos bons.

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    2. Eu sei que é, como nos meus comentários anteriores resolvi brincar de aforista só pra provar que pra escrever um aforismo ninguém precisa de muita inteligência nem muito talento, só uma visada técnica para manipular contradições e impor o "comentário de gênio". Me sinto, portanto, tão idiota quanto o Cioran; a diferença é que o Cioran é o Cioran e eu sou o Marcos Nunes.

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  3. Depois de ler este post fiquei com uma vontade imensa de ler "Amor nos tempos do coléra", leitura que venho adiando há alguns meses. Ao saber que Gabo estava nessa situação achei que TINHA que honrar sua memória da melhor forma possível: lendo-o. AH! Que descoberta! Em algumas passagens eu simplesmente parava e ficava sem saber o que pensar.É como se ele fosse uma pessoa próxima, o avô que não tive (essa doença de leitor...).

    Ana Paula R.S.

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    1. Li "O Amor nos Tempos do Cólera" umas cinco vezes, Ana. Garanto que será uma experiência que você levará para sempre e sempre revisitará o livro.

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  4. Olá
    Não entendi por que você diz que ele ficou em silêncio na década de 70. Há duas obras incríveis dessa década, o Outono do Patriarca e o Erêndira. Também não entendi esse ressentimento, já que o ídolo fez o que bem entendeu da própria vida. Não compreendo esta crítica ao escritor que não produziu eternamente em seu ápice para saciar aos irremediáveis fãs deslumbrados. Afinal, ele não é autor de folhetim ou telenovela. Agora, o que discordo totalmente é desautorizá-lo ao Nobel, o galardão que lhe seria devido sempre, por causa de um desafeto pessoal, ou em benefício de uma suposta prorrogação de seu ápice; é até contraditório, isso desautoriza inclusive O Amor nos Tempos do Cólera, que veio depois. Também não parece justo colocar o que se supõe que ele viria a realizar, sem a fama, acima do que ele realmente realizou. É justo exaltar o Vargas Llosa pela febre da escrita, mas parece que a essa altura já podemos dizer que ele vai permanecer sem superar o García Márquez. E quanto ao Neruda, se entendi bem, eles se conheciam pessoalmente desde antes da fama do García Márquez, e esse deve saber do que fala.

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    1. Carlos, não creio que Outono do patriarca seja uma obra representativa de GGM. É um romance falho em vários sentidos, chato e hiperbólico. Tem certa fama pelo conjunto da bibliografia, mas seria desconhecido se GGM não tivesse produzido seus três grandes livros. Cândida Erêndira realmente é um conto espetacular, junto com Os funerais de Mamãe Grande, mas a produção de toda uma década se limitar tão somente a um conto é algo lamentável. A questão aqui não é saciar aos fãs deslumbrados, que nenhum escritor tem a obrigação de fazer isso, mas a de dar voz a seu talento (e um enorme talento, no tocante ao colombiano) e saciar a si mesmo. Neste quesito, GGM foi um autor preguiçoso, que se deixou ele sim se deslumbrar pela fama e pela mídia e por ser consagrado herói das letras, e se satisfez com isso, relegando a escrita a um segundo plano. O Amor nos tempos do cólera foi a última obra de peso do autor, e depois... nada. Ou vai me dizer que os doze contos e o amor e seus demônios são algo mais do que literatura inercial inodora e cansativa? Sem contar ainda a lamentável biografia de Bolívar, e o arremedo palavroso e sem sentido artístico nenhum de Kawabata, o romance das putas tristes? Não sei se vc está certo sobre Llosa; minha impressão é que Llosa será mais lido que GGM daqui para frente, e olhando sem paixão, o peruano tem títulos muito mais dignificantes que os do colombiano. Cem anos de solidão continuará sendo o Dom Quixote da literatura latino-americana, mas toda a obra restante de GGM (excetuando as duas que citei) se torna opaca demais diante maravilhas como Festa do Bode, A guerra do fim do mundo, Conversas na Catedral.

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