terça-feira, 6 de março de 2012

Capando Gatos


Estou numa velocidade lentíssima para concluir Bartleby e companhia, de Enrique Vila-Matas. Agora não se trata de provocação: esse livro vai entrar para minha lista de piores livros de todos os tempos. Eu me julgo um excelente leitor, desprovido de preconceitos e adepto de não me deixar levar pelas opiniões institucionalizadas sobre escritores e livros, mas minha própria preguiça em demorar para chegar até o final de cada página de Bartleby é um sinal unívoco da minha opinião já formalizada sobre essa obra. Receio que o Doutor Pasavento  ficará longo tempo me esperando na estante.

Não sei, acho que o que me inquieta mais em Bartleby é Vila-Matas levar até consequências arriscadas sua teoria mistificadora sobre o papel do escritor. O escritor para Vila-Matas é um ser predestinado, não um simples ser humano qualquer, o que, de certa forma ligada à vontade de procura por distinção espiritual, eu concordaria; mas Vila-Matas não pega essa estrela na testa com a mesma ótica do sofrimento da busca de sentido de um Dostoiévski ou de um Camus; ele a deriva para uma imagética puramente instrumental. O escritor, para Vila-Matas, é um ser que tem a relevância dos animais perturbados, pela simples inconveniência de que põe-se  a executar os movimentos da escrita ou abstêm-se de fazê-lo, e nessas hipóteses o que realmente interessa é somente a própria perturbação. A prova de que o fetiche do escritor se resume ao ato físico insofismável da escrita se revela por sua admiração se centrar justo naqueles que se negaram a executar tal gesto. O que impressiona Vila-Matas é a quietura da mão, não a sugestão do que essa mão inflamada pela Chama poderia criar. E Vila-Matas fica tão estacionado nesse espanto carregado do mobiliário de sua ortodoxia, que não vê que está a escrever um romance policial, já que, como a gênese desses romances se sustem no jogo de regras programadas para descobrir-se um mistério oculto,seus livros também exigem que os motivos patológicos da afasia de seus personagens sejam revelados no final de um extenso atirar e recolher de dados. O grande pecado de Vila-Matas é, se percebe isso, não desenvolver os passos seguintes da confecção do policialesco, e se recusar a fazê-lo não sei por quais melindres de uma auto-consciência que se julga acima do que não seja a exposição erudita de segredos mais elevados, não simplesmente mundanos.

Essa obsessão pelo ato mecânico da escrita, que se espalha generosamente em Bartleby, pode levar seus seguidores a cometer o equívoco de acreditar que escrever é somente escrever. Mera datilografia, como Truman Capote definiu para o descarte definitivo da escrita de Jack Kerouac. Escrever e escrever até que a mágica aconteça, ou a escrita se instale de vez numa categoria empregatícia formalizada de carteira assinada e a quantidade de laudas estipulada por dia para contar na aposentadoria e no direito das férias anuais remuneradas. Preencher maniacamente todas as superfícies brancas até que uma floresta inteira justifique a atividade motora mais infundadamente nobre da espécie humana. Isso me fez lembrar de quando eu era aluno do último ano de veterinária e eu e um amigo participamos de uma campanha para erradicar a gestação em gatas de rua. Era-nos entregue sacos e sacos de gatas vivas e em questão de minutos, as anestesiávamos, abríamos, retirávamos seus ovários, costurávamos, e as atirávamos delicadamente para uma sala de recuperação. Fazíamos isso de modo tão mecânico, que contávamos piadas e ríamos durante toda a noite. Uma certa gata deu-nos trabalho: procuramos onde estava seus ovários, revirávamos ela de alto a baixo e nada. Profundamente espantados, olhamos mais uma vez e descobrimos a causa do mistério: era um gato.

5 comentários:

  1. Engraçado que um novo professor meu, escritor conhecido, teu xará, elogiou muito esse livro no início da semana durante uma aula (pode ter sido o contrário, peguei o assunto no ar, pois admirava os atributos de duas moças sentadas nas cadeiras da frente, mas creio que foi isso mesmo) e pensei comigo "o que será que o Milton e o Charlles diriam sobre?".

    E aí está.

    Sincronicidade sinistra hehe

    ResponderExcluir
  2. Matheus, dentro dos parâmetros da literatura atual, esse livro pode muito bem se encaixar na categoria de obra representativa. Meu respeito à formação do cânone e da necessidade de elogiá-la é real, mas minha paciência de leitor para tanta embromação já se esgotou. Se for se aventurar em Vila-Matas, recomendo Dublinesca, que é sim um romance de primeira.

    ResponderExcluir
  3. Charlles, o Doutor Pasavento tem o mesmo estilo do Dublinesca. Tu vais gostar. Abraço.

    ResponderExcluir
  4. Jà tá engatilhado o Zuckermann Acorrentado, que estou sequioso por ler, o Chamadas Telefônicas e o Homem Comum, que a patota vai me trazer amanhã quando voltarem para casa.

    Dublinesca realmente é muito bom. Depois dessa lista, talvez seja a hora de tirar a prova dos nove com o Doutor Pasavento.

    Abraço.

    ResponderExcluir
  5. Vila-Matas, sobretudo, é um fingidor, que finge tão completamente que nós devereas sentimos que é um bom escritor, quando nem ele sente, e ri-se de nós em seus livros. Com o perdão de Fernando Pessoa.

    ResponderExcluir