Recuperei alguns amigos através da net, amigos da universidade, de bairros onde morei por algum tempo, de cidades onde a aventura do diploma recém ganho me fez ir e que me ficaram na memória como remansos que só existiam enquanto estive lá, com sua vida prosaica e sua população de mil habitantes. A net resgatou todos eles para mim, me mostrando que a distância os transformaram em diversos níveis de profundidade. Um dos meus melhores amigos, José Canavarros, que não o vejo há doze anos, o maluco despojado com quem aprendi muita coisa e formamos uma banda despretenciosa com um nome um pouco menos (God´s Sound), me fez ver o quanto eu mesmo me tornei outra pessoa. José tem dois filhos, assim como eu, e deve sentir a espécie de aturdimento que eu sinto pela roupa do adulto sereno e atarefado ter-lhe caído tão bem no corpo. Quando o vi pelo Facebook me passou uma fagulha de vergonha de reconhecimento por termos traído aquelas ideias seriíssimas de liberdade, e me doeu calmamente a memória de que quando o dia prefixado chegou, nossos pés se desviaram da longa trilha da Patagônia com a qual sonháramos tanto. Eu estudei espanhol, ele, que já o sabia, comprou e aprendeu a tocar um charango.
Também tive o choque de descobrir que um outro amigo dos tempos da veterinária morreu escorado a uma árvore. Poderia-se ter imaginado por detrás de seu olhar que não pousava mais que alguns segundos nos objetos, que as drogas o cosumiriam? Minha primeira namorada se casou, teve dois filhos, o marido a deixou, seu irmão deu-se um tiro fatal no ouvido, e a encontrei com o carro roubado acionando o seguro em alguma esquina do Google. Ontem, porém, ou antes de ontem, me aconteceu o maior choque dessas redescobertas todas. Assistindo ao Jornal da Cultura, vejo que um dos usuais professores universitários que comentam por lá, não me era de forma nenhuma estranho. Aguardei o anúncio de seu nome e, era ele: Vladimir Safatle. Meu Deus, há quanto tempo não pensava nele! Estudamos juntos no Colégio Objetivo de Goiânia, e tínhamos 16 anos. Desde então, depois que nos afastamos, por uma incrível distração eu o havia apagado da memória. Não, é mentira. Uma ou outra vez, trazido por alguma correlação de pensamento, punha-me a cogitar o que a vida tinha feito dele. Lembrava-me que um amigo daqueles tempos, que hoje, aliás, o encontrei médico pelos espaços virtuais, dizia que não chegaria aos trinta anos, um suicídio o aguardava cordatamente pela frente. Nunca compartilhei com essa teoria.
O Vladimir hoje, abaixo da calvície que lhe saiu melhor que o receio (entre os ruivos e os negros, a calvície cai bem, azar o meu!), é exatamente igual ao quando tinha 16 anos. Era um cara para lá de excentrico, e dono de um senso de humor que se firmava nas reticências e no olhar de resignação diante sua superioridade intelectual entre nós, os outros moleques. Conseguia despertar o riso alheio por se misturar a um senso de vergonha que compartilhávamos diante ao segredo que levava. Ele chegava à sala de aula sempre com alguma novidade chamativa no corpo, disfarçada como algo naturalíssimo. Ia com alfinetes enfiados na carne das bochechas, com a cara maquiada ou simplesmente com um risco enigmático rosa traçado da orelha à boca. Dormia com o rosto no tampo da mesa religiosamente durante todas as aulas, insistindo em se levantar como um Lázaro ressuscitado por alguma besteira dita pelo professor para lançar com sua voz rouca (embargada ainda mais pelo sono) a verdade sobre o tema. Os professores não o gostavam muito, compreensível. Chegava quinze minutos antes das provas, com um olhar de desconhecimento simulado, e, com um caderno emprestado em mãos, em sua modéstia ostensiva mostrava o quanto sua concentração era primorosa por apreender o conteúdo de uma vez.
Ele tinha ido ao programa do Jota Silvestre e ganho o prêmio máximo de conhecimentos gerais. Sua figura de garoto esfalfado por uma felicidade estranha desvinculada aos brinquedos comuns dos outros garotos rodara o Brasil inteiro, a criança prodígio do Fantástico. Claro que um garoto cabeludo com a cara cheia de timidez estúpida como eu não poderia interessá-lo, e meu nível de autismo social era muito grande para também ele me interessar. Mas aí me deram um prêmio de literatura e ele se achegou a mim. Passou a me instruir em vernissagens que serviam bebidas alcóolicas, me apresentou ao García Márquez, ao Joy Division, e me emprestou o Crime e Castigo em volume duplo. Fui a uma apresentação de sua banda "Oficina de Testes", e até hoje não compreendo o disparate da música dark que ele compunha aceitar um vocalista rebolante que queria ser o Paulo Ricardo.
Uma vez eu levei a melhor sobre ele. Para fugir ao martírio de assistir ao Beijo da Mulher Aranha, anunciei ao bilheteiro que tínhamos 16 anos. Em represália, quase fomos linchados pelo público impressionado de Alienígenas do Espaço, quando ele passou a comentar alacremente cada cena do filme em voz alta. Sua casa tinha um ambiente pesadamente intelectual. Ele era uma cópia do pai, taciturno, avidamente grudado a suas crenças políticas, se havia carinho por ali era segredo para horas noturnas, escondido do olhar alheio e da consciência de autoimportância. Minha família também tinha o mesmo hermetismo, mas essa semelhança em vez de me alegrar me deixava mais deprimido. Preferia os amigos com radiosa normalidade burguesa.
Nossa amizade chegou ao fim por causa de um aspirador de pó. Havíamos comprado, cada qual, o LP que trazia a melhor canção nunca cantada pela Madonna, "Maria Madalena", de uma tal de Sandra . Estávamos na casa de minha mãe e ele, num de seus arroubos de inconstância, olhou para o aspirador de pó e, sentenciando-o como objeto fútil da burguesia, lançou-se a destruí-lo com os pés e mãos até reduzir a coisa a fragmentos de plástico. Rolamos no chão na porrada, um enforcando o outro até não sei quem obter a rendição. Ele saíu pela porta, para minutos depois voltar para pegar a Sandra que havia esquecido por sobre a mesa. Nunca mais nos vimos, o que pode ser razão da bolha de supressão que minha memória criou.
O que eu posso dizer agora, do alto da minha maioridade, caso Vladimir tenha um tracking tão bom a ponto de cavucar esse blog obscuro. Cara, eu também odiava aquele aspirador!
Resposta via e-mail do Vladimir ao post:
"Charlles,
Primeiro, creio que estou te devendo um aspirador novo. Nao consigo lembrar porque eu o quebrei, mas temos que nos encontrar para que eu possa pagar esta dívida. Fiquei muito sensibilizado com seu texto. É sempre meio aterrador nos descobrirmos pelos olhos dos amigos antigos. Talvez você também tenha a impressao de que a vida de alguém acaba sendo uma sucessao de personagens que ficam meio pelo caminho. Algo se vai e algo fica.
Bem, entendi que você virou veterinário e mora em algum lugar que nao é Goiânia, certo? Entao, seria legal ter mais notícias tuas. De fato, eu também tenho boas lembrancas desta época.
Um grande abraco,
Vladimir
Já citei e transcrevui trechos de artigos do Safatle em meu blog. Outra lembrança divertida foi o fato dele ter participado do programa do Jota Silvestre, que só vim a conhecer através de um curta metragem (ou média?) sobre um dos participantes mirins do programa, um menino que tocava piano e se lembrava de várias canções clássicas da música norte-americana, principalmente trilhas sonoras de filmes. Ele reaparece, velho e um tanto frustrado, a fama perdida e qualquer sentido para sua vida também.
ResponderExcluirBom saber que isso não aconteceu com o Vladimir.
eu pensei q eram cenas dos próprios capítulos, mas era vale a pena ver de novo. okey.
ResponderExcluir-----------
Inúmeros
isso de um deus
três quatro...
qualquer criança conta
- sinal positivo (+) dos tempos
“… a vida de alguém acaba sendo uma sucessão de personagens que ficam meio pelo caminho. Algo se vai e algo fica.”
ResponderExcluirESPELHO
by Ramiro Conceição
O primeiro à porta
foi um voo à horta.
Tudo dormia,
ninguém via.
De olhos abertos,
ao ninho voltei.
Mas não adormeci.
O segundo foi às cegas,
quase além das árvores.
Tudo adormecia,
ninguém via.
De olhos abertos,
ao ninho voltei
e… adormeci.
O terceiro, perfeito!
Amanheceu. Ninguém viu.
De olhos abertos ao ninho, jamais.
Mas… é engraçado: mesmo de olhos abertos,
mesmo com muita sorte… sempre se morre.
Por isso penteio a morte, todo dia no espelho.
Uma resposta, querido Charlles, ao seu desabafo, lá no Blog do Milton,no post sobre ateus, com tanta angústia... e descrença.
ResponderExcluirAOS DE TRÊS PATAS
by Ramiro Conceição
Ah, essa cultura de massas caracterizada por sua ‘espizzalidade’ de mandar brasa na lenha, pois depois de cozido - tudo se devora de qualquer maneira.
Basta um “cabra” dizer que a ciência, hoje, pode explicar a existência de Deus… Pronto! Um outro “cabra”, dito, jornalista faz uma matéria; e um rebanho de “cabritos” começa a defecar um monte de sandices ‘quadrupedeláteras’ em meio a arrotos quase pseudo-esféricos: em terra de bestas, quem sabe pouco é um sábio manco de três patas.
Na verdade, a ciência chegou a um ponto em que não consegue explicar nem se explicar. Isso o proparoxítono colégua de profissão, o tal “cabra-cientista”, não explica nem comenta.
Não acredita, então vamos lá:
1) PRIMEIRO MISTÉRIO: Parece não haver dúvida de que, de acordo com a mecânica quântica, na escala atômica, existem partículas ditas “entrelaçadas”, isto é, por exemplo, há uma probabilidade de existir partículas idênticas, quer dizer, se ocorrer alguma transformação em uma, então a outra, “entrelaçada”, sofrerá a mesma transformação, não importando a distância entre ambas. Isto quer dizer o seguinte, por exemplo: imagine uma supernova num milionésimo de milionésimo de segundo antes da sua explosão final à etapa de nebulosa; pois bem; neste instante, no interior da estrela moribunda, átomos de ferro e átomos de oxigênio já estariam formados sob pressão e temperatura colossais e inimagináveis, nestas condições, poderia haver a probabilidade da formação de duas moléculas de Fe2O3 idênticas. Ou seja, a formação de uma solução iônica de íons Fe3+ e íons O2-. Tal arranjo é denominado de hematita (o mais estável dos óxidos de ferro). A hematita possui estrutura cristalina conhecida como hexagonal compacta. Portanto, as duas hematitas possuiriam o mesmo arranjo. Bem, depois de trilhões de trilhões de anos da explosão da estrela e da expansão da nebulosa, as duas irmãs idênticas estariam existindo, porém, vamos supor, a trilhões e trilhões e trilhões… de kms de distância. De acordo com a mecânica quântica, se, por exemplo, umas das hematitas sofresse uma mudança de reticulado, por exemplo, para cúbico de corpo centrado, a outra, no mesmo instante, sofreria a mesma mudança estrutural. de acordo com os físicos, especialistas em mecânica quântica, tal fenomenologia seria possível dentro do leito das equações da referida teoria. contudo, não faz sentido!!!!. não se consegue compreender tal fenômeno!!!. ou seja, é inexplicável à luz da ciência!!! pois a velocidade de transformação, da hipotética transformação iônica, seria superior à velocidade da luz. O que constradiz a teoria da relatividade de Eistein.
2) SEGUNDO MISTÉRIO: parece ser verdadeira, até o momento, a teoria do Big-Bang. Segundo ela, o Universo estaria em expansão vertiginosa. Quer dizer, daqui a trilhões e trilhões e trilhões e trilhões de anos o Universo não teria mais nenhuma estrela: restaria apenas um escuro NADA absoluto onde a entropia seria zero e a temperatura, 0K (zero Kelvin) - de acordo com a terceira lei da termodinâmica. Pois bem, tal acontecimento só é possível se o Universo for um sistema aberto, pois se fechado o número de eventos seria finito e, forçosamente, cairíamos na teoria do Eterno Retorno de Nietzsche, isto é, o presente aconteceu, acontece e acontecerá trilhões e trilhões e trilhões de vezes - igualzinho! Mas admitamos que o Eterno Retorno seja falso, portanto, advém a necessária pergunta: a ser o Universo aberto, então do que consiste a sua vizinhança?!
Logo, diante disso: pensar-sentir que se sabe pouquíssimo…
Nestas condições, se calar e, sob o escuro do céu, inocentemente crer na revelação; pois ainda há O TERCEIRO MISTÉRIO: aquilo, aquele, aquela, a trama, a natureza, o amor, a energia, a VIDA a entrelaçar partículas idênticas, e outras diferentes, quem sabe, à qualquer distância e tempo, no universo.
A César, o que é de César. Ao É, os tempos do Ser.
Leio sempre os texto do Safatle na Folha e na Cult, além de ouvi-lo no excelente programa que ele vem conduzindo na Cultura FM de SP, relacionando música e filosofia.
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