Não precisou do período de trabalho que passei no sistema prisional para que alguma iluminação fulgurante me garantisse que a espécie humana tem um gene homicida em potencial. Havia por lá presos que assassinaram toda a família, com requintes de horror, ou os mais assustadores, que o fizeram por assépticas e silenciosas razões pessoais, consumidores de drogas pesadas que findaram uma vida apenas para a aquisição de uma pedra de crack, estupradores que mataram suas vítimas ao final como se essas fossem animais de consumo, sem a mínima culpa. Trabalhei cerca de um ano e meio, antes de partir para outro emprego; assisti a um motim no maior presídio do estado, numa madrugada em que o rádio portátil anunciou na guarita onde eu estava que era para todos os agentes subirem em rápida debandada para a guarda externa porque a ala C estava quebrando tudo que encontrasse pela frente, mil e quinhentos detentos enfurecidos retirando as grades das celas dos encaixes e atirando-as do alto para o centro dos corredores, e furando o grosso paredão intermediador para alcançar os inimigos da ala vizinha. Fui supervisor regional para abrir sindicâncias contra funcionários que se compactuavam em vários graus com os crimes internos das cadeias, mas nada de forma alguma me incutiu o ineditismo surpreendente que somasse à minha já fundamentada crença que em toda pessoa repousa em latente espera por ativação a capacidade do assassinato.
Penso em um livro de Zola que li quando era adolescente, A Besta Humana. Todos nesse livro, pelo que me lembro, são assassinos, ou transladam em desejo de colocar para fora a mesma sanha de destruição alheia que obceca o assassino psicopata herói da história. Li-o com o enrijecimento frio típico das grandes revelações, acometido por uma tristeza de perceber que já chegava enfim a hora de sair da eufemização da infância. Esse livro antecipou em alguns anos minha leitura de Sartre, em especial a melhor literatura produzida por um escritor que definitivamente nunca foi um dos melhores e tinha sérios problemas com a escrita ficcional, O Muro, uma série de contos que me encantou uma só vez, como uma espécie de pirita que nos confunde apenas uma vez com sua falsa aparência de ouro, pois tentei reler esse volume há pouco tempo e tudo me pareceu miseravelmente ruim. Mas há um conto ali que fez sucesso entre os alunos do ginásio do meu tempo, Erostrato. Liamos e relíamos em voz alta, um para o outro, e sonhávamos com a possibilidade daquela imensa libertação proposta pelo assassino do conto. Se eu fosse professor hoje em dia, estaria acometido da curiosidade de saber se ainda há grupos de adolescentes que se tomam de febre pela literatura como acontecia com meus cinco ou seis amigos, que aliás nada tínhamos de intelectuais além dessa contingência de às vezes sermos pegos em admiração por Sartre, por Kafka, Dostoiévski e Allan Poe. Eramos inconformados com a sociedade, com nossas famílias, com as garotas, com nossas caras de idiotas contumazes, com as notas ruins, com nosso futuro sem nenhuma garantia que, à semelhança da geração de jovens ingleses que pressentiam o desemprego e a miséria na era Tatcher, também sabíamos que nosso país não nos deixaria em paz com as sucessivas substituições de iguais mazelas que os coronéis estavam preparando para sobrepor ao militarismo.
Então Erostrato era o convite sofisticado ao desaparecimento, à não importância, na medida do quanto era sedutor acompanharmos os passos de um assassino pelas ruas de Paris que era nosso emblema filosófico de repudiarmos o absurdo. Sartre era o punk do qual precisávamos naquela instância da vida em que sentíamos o lento e inexorável desabamento de nosso período de sursis. Mas o livro de Zola antecipa todos os temas sociais do existencialismo de Sartre. Lembro o quanto fiquei impressionado com os trilhos de trem, as noites onde não havia qualquer esperança, a compulsão nua entre desejo sexual desenfreado e assassinato, a pobreza que acomodava os danados zolianos num subsolo onde não entrava qualquer direito civil ou justiça social, o rebanho de exilados, de inassistidos. Sempre adio para mais tarde as chaves de alguns comportamentos meus que se encaixam nessa concepção desgraciosa da espécie. A vinda de meus filhos, que me transformou como dizem que transforma a vinda dos filhos no espírito e na visão de mundo de uma pessoa, me deixou com a consciência aliviada de aceitar que não há problema nenhum no egoísmo; fecho as portas de casa e meu mundo é aqui dentro; ainda não consigo olhar nem a velha senhora que mora na casa vizinha com seu filho solteirão, que faz graça para minha filha cada vez que nos encontra, como não sendo alguém que, no melhor dos elogios, luta com as tendências de sua atração para o deplorável onde se ajuntam o misoginismo da idade e uma atenção de abutre pela vida alheia; e não consigo deixar de perceber o olhar dissimulado de seu filho de quarenta anos como o do avaliador solitário que se masturba diante videos pornôs da internet todas as noites. E quando me perguntam se eu não tenho algum temor de que meu rottweiler faça algum mal para meus filhos, eu digo que confio imensamente nele, que já deu mostras de que nos protege às custas da própria vida, do que confio minimante em entregar algum de meus filhos por alguns instantes a qualquer parente que não seja a mãe deles. A Dani diz que eu sou um pai paranóico, que eu vejo maldade em tudo, que eu tenho uma visão naturalista das pessoas, como se estivéssemos num experimento cósmico selvagem em que ninguém se importa verdadeiramente com ninguém. E não estamos?
Ligo a tv por cinco minutos nos noticiários, e vemos a luxuriosa fauna humana se revirando sob a pedra deslocada onde o sol nos pega em contorcionismos de dor diante a incidência de luz, diante o flagrante, um menino de 14 anos mata uma menina de 3 anos loira lindíssima com toda sua vida infinita e cheia de possibilidades que tinha pela frente, e o que fazem os pais do garoto, senão retirá-lo às pressas da praia onde promoveu o acidente fatal dirigindo ilegalmente um jetski e deixando a menina por 40 minutos à espera de socorro. Simples assim, retiremos nossas crianças do local, foi tudo uma fatalidade, quem não está submetido a essas infelizes e súbitas fatalidades? Vemos um parque de diversões onde até o advogado dos funcionários admite que a poltrona do brinquedo que cai de uma altura gigantesca a uma velocidade abismante deveria estar com uma enorme faixa anunciando seu defeito, para que ninguém a usasse, pois o risco de acidente fatal ali seria bastante real, mas os administradores do parque ignoram o fato porque isso faz bem para seus rendimentos, e uma moça de 14 anos se destroça ao cair do banco estragado e morre. Uma mãe que lança acetona e álcool sobre o cãozinho da filha, por vingança, e ata fogo ao animal indefeso. Pais que estupram filhas há anos, filmam os atos e lançam em comunidades pedófilas na internet. Um vídeo que um amigo me mostra no youtube em que uma caminhoneta dessas que custam mais que toda a renda do período inteiro de vida de um brasileiro padrão, capota várias vezes num racha, o motorista é jogado para fora da cabine e cai morto no chão, e a multidão faz um círculo em torno do cadáver, cerveja nas mãos, mulheres de biquine, risos, danças, pessoas saqueando os pertences que estavam no carro, e tudo sob o olhar da câmera que é o portal de deleite da grande festa canibal, o pragmatismo mais fiel da teoria de Canetti sobre o sobrevivente e da alienação das massas quanto a qualquer noção de moral individual.
Hoje fui tirar um xerox de um boleto de pagamento na faculdade, e a funcionária recebe um telefonema enquanto a máquina gira as roldanas e a luz verde pisca lá onde o duplicamento acontece. A moça se senta num banco de madeira e arreganha os olhos, enquanto diz para a voz do outro lado: "Meu Deus, eu não acredito! Isso não pode ser verdade! Você confirmou?". Ao desligar, ela me conta, embasbacada, que a professora do curso de biologia, que acabara de sair dali após entregar material de xerox para seus alunos, foi morta em uma acidente de moto. Pergunto-lhe o nome, e ela diz: Miriam. Tinha 23 anos, sua formatura seria dia 16 próximo, e ela já era uma professora convidada do curso. Sinto um peso na alma pois eu havia, em sua época colegial, lhe dado aula de genética no terceiro ano. Encontro um amigo de frente ao hospital municipal onde está uma multidão de curiosos, e tenho dele a informação de que a moça é parente distante dele, e ele me conta que ela havia parado a moto que estava dirigindo afim de fazer a volta na pista, parou de seu lado, à espera, e vem um jovem numa outra moto e se choca contra ela em alta velocidade. Como estou de férias prolongadas, ele me atualiza das demais desgraças que acontecem nesse dia bruxesco pela cidade: um outro acidente de moto matou atropelada uma senhora ainda há poucas horas, e nessa mesma manhã um estuprador foragido da cadeia de uma cidade vizinha estuprou e matou uma senhora que fazia cooper pela rodovia, arrancara-lhe um mamilo com os dentes e fizera toda sorte de hemorragias internas na mulher. Fora preso, e há suspeitas que sua fuga anterior fora facilitada por funcionários do presídio. Entro no carro e ligo para minha esposa que está na casa de minha mãe na capital, ouço as crianças ao fundo gritando e fazendo suas manhas corriqueiras sempre por pequenas coisas, por coisas insignificantes, retirar as roupas de uma gaveta, despentear os cabelos, querer descer para andarem pelo pátio de recreação do prédio, para que lhes deem a única bolacha que gostam, de maisena, o que nos enche de um estranho orgulho por serem tão naturalmente humildes, bolacha de maisena, o que tem de especial em uma bolacha tão seca, tão insossa e sem graça, mas que eles adoram, enchem as boquinhas com elas e ficam sorrindo mostrando aquele entulho próximo às gargantas e as movem com as línguas, e as esfarelam nos colos e vão deixando pedaços diminutos e amassados por todos os cômodos que vão.
Depois que o meu irmão sofreu seu acidente, eu havia me proposto a ser voluntária no hospital onde ele havia sido internado. Me inscrevi e participei de um curso que durou o dia inteiro, onde eles explicaram o funcionamento do hospital e o trabalho dos voluntários. Acabei não ficando, prevendo que teria problemas com o fato do hospital ser evangélico. E também porque me conscientizei que não consigo ver certas coisas e viver em paz.
ResponderExcluirAinda estou muito triste com isso tudo. Me lembrei do discurso do David Foster Wallace, em que ele diz que os carros em um engarrafamento avançam deseducadamente pelo dele apenas pela chance de terem uns estúpidos quarenta metros pela frente. À frente do hospital encontrei com um professor com doutorado, muito gente boa, que foi meu orientador em uma monografia que fiz sobre Garcia Marquez, e ele lamenta e lembra que ontem se sentara à mesa junto à Miriam, em uma reunião de professores. Eu estava triste pra caralho e contendo o choro, pois essas coisas me tocam de uma maneira que não sei dizer, e lhe disse que já estava passando da hora de autoridades locais como ele, o presidente da AOB (que é um completo de um inútil omisso), o capitão da polícia (que é um prevaricador de altíssimo grau e um risonho obeso), a delegada (que disse a um amigo advogado meu que não iria apurar certo crime eleitoral porque não queria ficar mal entre os chefões da cidade),e os presidentes de bairros e de associações se unissem em um manifesto de desgravo contra o caos do trânsito e o entregasse como denúncia ao Ministério Público, pois cada semana acontece um assassinato no trânsito daqui. E ele respondeu, placidamente: "É, tá passando da hora."
ExcluirQue baita texto, Charlles. É schopenhaueriano na essência. É enviesado e pessimista. Estupidamente realista. Faz-me lembrar uma frase de Dostoievski: "Todo homem carrega dentro de si um demônio". Coaduno com esse pensamento. Vivemos a mais plena bárbarie civilizacional. Na verdade, não se trata de um problema quanto ao modelo de sociedade ou de filosofia. Seja sob o capitalismo, o comunismo ou o feudalismo, o grande problema será o homem. É por isso que as grandes religiões constroem esses grandes discursos, numa tentativa de levantar diques contra o caos.
ResponderExcluirVivemos como entes assustados. O entendimento dos naturalistas do século XIX, como você bem citou Zola, não deixa de ser uma premissa para refletirmos acerca desse "gene homicida" citado por você.
Mais uma vez: parabéns pelo texto. Ele é amargo, duro, faz apertar o estômago, gera uma sensação de sufocamento. Ou seja, Schopenhauer até a última gota.
Obrigado pelos elogios, Carlinus. Penso mesmo isso, e parece que a transformação nunca virá. Como diz Jared Diamond em seu maravilhoso Colapso, a preocupação reinante entre as pessoas é a luta pela vantagem de ser o último o morrer.
ResponderExcluir