segunda-feira, 5 de março de 2012

A Sonata do Sr. Vinteuil ( II )


O longo capítulo de No Caminho de Swann, intitulado Um Amor de Swann, seria um estudo psicológico e anamnésico integral das relações entre um homem e uma mulher? Quero entender que esse texto seja o que há de melhor sobre as mais profundas complexidades da paulatina construção do amor e da paixão de um homem por uma mulher, desde seu caráter irracional e deletério, até suas mais indeléveis intersecções sociais e seus variados acenos metafísicos. Mas como Proust exige uma guarda ilimitada de suspeita por parte do leitor quanto  às suas astúcias conceituais (em que determinado entendimento sofre uma reviravolta completa, não de forma a se dizer súbita, mas perfazendo um lento grau de descongestionamento das certezas a tal ponto que se põe o livro de lado por um momento e se cogita se terá que começá-lo de novo, afim de identificar onde, em qual página, pôs-se a nascer o engano), fica-se com a impressão que só depois de transcorridas as mais de 3000 páginas da obra completa que se poderá dar um diagnóstico seguro, dizer na verdade quais eram as subliminares e sublimes intenções de Proust. Uma das chaves para Proust, ao menos para mim (sendo o que me conduziu de vez e numa atração inexorável), está no entendimento de Walter Benjamin de que Proust, em sua luta contra a morte, que na verdade se organiza em torno de uma enorme indiferença a ela e num desmedido esforço de tagarelar e falar mais uma vez, essa luta repousada, "determinou também o convívio de Proust com os contemporâneos: uma alternância tão dura e cortante entre o sarcasmo e a ternura, que seu objeto, exausto, corre o risco de ser aniquilado."

Essa extraordinária percepção de Benjamin resume como nenhuma outra a visão em alternância do grande romance de Proust. Essa alternância permeia o capítulo Um Amor de Swann de forma acachapante; trata-se de um capítulo em jorro de sensações sumárias atordoantes, que mexe em regiões neuro-físicas do leitor, que promove um sentimento de lucidez entorpecida através da intencional tagarelice do autor em nos iludir sobre o objeto a ser alcançado, sua intensidade quase ofensiva (na medida em que uma tamanha intensidade não se acopla mais nos moldes sensoriais de leitura hoje em dia) nos inquieta sobre nossa real capacidade de adultos treinados e gabaritados pelas impressões da experiência em avizinharmos do quanto de força emana dessas páginas, do quanto seremos capazes de suportar o que ele tem a nos dizer, o que subjaz de genuíno e autêntico por debaixo das torrentes de sonoridade e suposto acomodamento espiritual nas oferendas do trivial e das superfícies burlescas. E esse capítulo segue ao capítulo idílico das lembranças infantis do narrador, numa maquinação ardilosa e nefasta: pega-nos numa surpresa progressiva após relaxar nossas almas devotadas nas noites em que o narrador espera o imprescindível beijo da mãe, na incrível visão de um aleph no gesto de uma tia em molhar uma madalena na xícara de chá, na hilaridade das reuniões de família para os almoços aos sábados, nas fofocas da velha tia encamada e sua convivência com a empregada companheira de longa data, nas audições de um Swann já amortecido dos dramas de sua juventude pela idade e pelo acoplamento sem muitas arestas na aceitação social. E daqui Proust nos insere no perigoso capítulo Um Amor de Swann, para que desse campo de suaves plenitudes domésticas retornemos ao passado, antes da existência do narrador, para que vejamos às custas do quê as nuances da sociedade são confeccionadas, como a flacidez do que antes era determinado pelo retumbante escândalo destila as condenações até a consciência da equidade de erros comuns de uma sucessão inevitável de velhos à espera do desaparecimento. O narrador mostra porque a famosa esposa de Swann, a mulher que ocupa o núcleo de sofrimentos que atormenta Swann, ainda não era devidamente digerida pela sociedade, de forma que, mesmo na distância temporal de todos os eventos, Swann não a levava nos jantares na casa dos pais do narrador. O segundo grandioso capítulo (uma sequência de umas das maiores páginas da extensa obra), mostra a estruturação do amor obsessivo de Swann por Odette, a quem ele cultivava um leve desprezo por não achá-la um mulher bonita, mas que, sendo pego por suas divagações fetichistas, começa um devotado culto a  ela ao associá-la a uma das figuras de Botticcelli. 

Swann, um desgarrado das etiquetas sociais de sua classe de solteirão rico, que se nega a deixar sua casa de subúrbio parisiense para se mudar para algum bairro nobre, transverte sua bonomia e sua paixão pelas aventuras sexuais com empregadas de hotel, após se apaixonar por Odette. Swann passa a ser um escravo submisso às exigências dos Verdurin para que possa fazer parte do esnobe e restrito círculo deles, no qual Odette é um dos alicerces. Acompanhamos o inferno que se torna a vida de Swann, pois Odette é uma mulher independente em todos os aspectos, revelando-se ainda mais no âmbito sexual, o que lança Swann numa rede quase psicótica de ciúmes. Não fica claro o que Odette faz para viver, ou se ela se embrenha mesmo em variados casos sexuais tanto com homens quanto com mulheres, mas o que temos é a ótica de uma infinita e sufocante insinuação por parte do narrador, que parece deter um conhecimento supraciente sobre todos os crimes, mas que não os revela sob sua voz ainda investida pelo maravilhamento do tom infantil e de um subliminar sarcasmo refinado. 

Proust traça a narrativa em um tríptico onde os dois ângulos da base são o sarcasmo e a ternura, e o ângulo de cima, suspenso sobre os demais e só percebido em surdina, é o ângulo do sublime, das inserções inesperadas de beleza que ao mesmo tempo cala e dá vazão aos outros dois. O ângulo do sublime se condensa no fator decisivo do amor de Swann por Odette: a frase musical que Swann escuta de uma sonata composta pelo sr. Vinteuil, ouvida em um dos jantares na casa dos Verdurin. Swan é imediatamente arrebatado pela estupenda beleza da música, e pergunta ao pianista quem era o compositor. O pianista responde ser um tal de Vinteuil, e todos na sala se debandam em leves cogitações de quem seria essa personalidade, ao que Swann diz conhecer um Vinteuil, mas que não poderia ser o autor daquelas notas maravilhosas_ o Vinteuil que julga conhecer, ele reflete, tem uma aparência ignóbil e derrotada para ser aquela antena portentosa de uma verdade dimensional além da nossa transpassada para esse lado de cá através da música. Há uma dulcíssima armadilha de Proust aqui quando o oculto sr. Vinteuil se liga de forma indissociável ao amor de Swann por Odette. Em páginas de beleza extrema, já pelo final do capítulo, o narrador descreve a sonata de Vinteuil, mais precisamente a frase que abduziu Swann da realidade e o transportou para chaves da revelação de uma Verdade intocável, e essa descrição se adjunta na definição acima de Benjamin, a extraterrenidade, o arrebatamento oferecido por Proust que aniquila o romance de cenários sociais e nos dá algo maior, algo que vai além de nossa imediata capacidade de assimilação, algo que resvala nas fronteiras do que Kafka mencionou como as possíveis infinitas dimensões acima da nossa seladas de nossa intrusão pela exigência de um entendimento superior, algo que nossa faixa evolutiva ainda não autoriza. E isso se conjuga na armadilha proustiana de o sr. Vinteuil ser uma simetria de Odette, pois contornamos com as mãos a forma do Inominável e só podemos entendê-lo na concepção de Odette, a pecadora Odette, como sendo uma especie de entidade cuja distintiva riqueza intrínseca, insolúvel aos julgamentos da sociedade, só poderia ser alcançada através das reviravoltas do amor de Swann; só Swann_ e o narrador, nas páginas finais do capítulo_ poderiam vê-la em toda sua tranquila superioridade, como a única mulher entre as outras excêntricas figuras da fauna social feminina, como a mais elegante, a mais naturalmente soberba, a mais despegada e dona de si mesmo. Assim também o sr. Vinteuil, o velho condenado pelo tribunal imaginário da sociedade, que Swann deixa um grupo de pessoas distintas para ir apertar-lhe reverenciadamente a mão e oferecer suas terras para quando lhe aprouver passear por elas. Uma das grandezas e astúcias de Proust em forçar o que nos limita nesse grau de percepção para além.


2 comentários:

  1. Eu dei muitas risadas com esse capítulo da paixão de Swann.

    Depois que a gente termina de ler, não sei como, o livro se torna uma sonata também. Exatamente como uma música, essa sonata retoma aos seus próprios temas, com frases que nos causam o mesmo fascínio que aquela frase causou a Swann. Mas Swann falha em interpretar essa sensação. Mas Marcel se torna Proust.

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    1. É um capítulo engraçadíssimo mesmo, Letícia. A parte em que ele fica espionando de fora da janela, pensando ser de Odette, e se depara com um casal de velhinhos desconfiados, é uma maravilha. Não tem como superestimar Proust.

      Pensei nisso que disse, e vi que retrata com fidelidade o que sinto em relação ao livro. Penso nele todos os dias, com certa saudade. A força é tão grande, que tive que dar uma pausa de algumas semanas antes de passar aos outros volumes do romance.

      Abraço.

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