No ano de 2000 eu estava completamente arruinado. Uma série de atos desmiolados da juventude e uma onda de má sorte sem precedentes haviam feito com que minha primeira mulher me deixasse, eu brigasse com um chefe imediato a ponto de perder o emprego, e ainda coroasse a grande coleção de fracassos do que parecia ser o radiante momento do fim de alguma coisa na vida de Charlles Campos, com uma batida de carro que retalhara diversos pontos da minha cara. Minha mulher havia tido o que só sei explicar, em meus conhecimentos livrescos circunstancialmente limitados a essa realidade, a um surto de esquizofrenia, mas o que ocorrera mesmo foi algo que só a obsessão espiritual explica. Nos quatro meses de sua gravidez interrompida, adquirira uma repulsa tão intensa contra a simples menção do meu nome, que suas feições delicadas se deformavam de desconfiança e irascividade sempre que sentia a minha presença dobrando a terceira esquina mais distante.
Escondera-me, para remoer meus infortúneos, numa casa afastada em uma cidade do interior, onde os carteiros reclamavam que não podiam deixar as contas de luz atrasadas no alpendre por causa de um cão negro que passeava pelo quintal, que eu nunca vi, mas cuja sensibilidade às exalações que me envolviam me fazia crer que não era uma desculpa coletiva para não pedalarem tão longe, mas a aparição de uma das minhas entidades obsessoras. Uma vez ou outra encontrava a personalidade singela de uma vaca, pastando o enorme capim do desmazelo que tampava a vista da casa. Sobrevivia devido a uma poupança milagrosamente previdente que havia feito durante quatro anos, dedicando-me a encher a cara à noite e olhar para as manchas das infiltrações da parede à cata de uma nova ciência interpretativa do destino. Uma noite, quando voltava à pé de uma das minhas andanças sem rumo, fui atacado por uma tempestade de raios que me fez pensar: ao menos isso, Senhor, uma morte excentricamente gloriosa! Refugiando-me numa construção abandonada, esperando a chuva passar, me veio a certeza: não havia, em bom iídiche, um chazerai maior do que eu, um lixo tão sem importância.
Mas me enganava. Uma semana depois encontrei Gahleb El Assal. Ou fui encontrado por ele, como gosto de dizer para provocá-lo, pois sinas assim é que nos encontram, não o contrário. Gahleb é o fracassado profissional, o suicida impossível. Sua vida é uma espécie de estelionato de deus, um cheque sem fundo sem retorno das potentades celestes. Esse libanês da tribo dos drusos planejou minuciosamente sua morte para uma sexta-feira de abril de 1980. Alugou um quarto em um hotel vagabundo no centro de São Paulo, limpou o revólver .22 que lhe restara das andanças de vendas de tecidos com seu irmão, foi de uma gentileza inusitada na despedida com todas as pessoas das quais cultivara um desprezo atroz, passou a ferro quente a roupa que mais lhe parecia condizente com a última estética do morto no caixão, e viveu em felicidade esplêndida a espera pelo dia marcado em que daria fim às suas andanças enfastiadas de quatro décadas por esse mundo. Devolveria o cheque a deus.
A maldição, doutor, ele me disse, na quinquagéssima vez em que me contava essa história, com a memória intocável dos mentirosos profissionais ou dos mártires honestos que levam o fardo da revelação transfiguradora na alma, foi ter exagerado no sarcasmo. Pois resolveu, na quinta-feira da véspera, entrar na loja de tecidos de frente ao hotelzinho para se despedir do almofadinha que era o proprietário ou gerente, um homem que tresandava integridade e a vasilina fina nos cabelos de bom pai. Nem conhecia o homem, mas o odiava. Se desmorecesse da intenção de me matar, só de ver seu olhar julgativo me olhando do lado das portas corrediças, retornaria com todo ímpeto à empreitada. Então, após deslizar na guela cinco doses da cangibrina mais odorífera para homenagear as narinas do pentecosta, foi-lhe se apresentar e se despedir tudo de uma só vez, com a mesma alegria libertária com que enchia seus pulmões da esperança da morte. Foi recebido com uma educação tão atenta pelo homem, que o levou a se sentar numa cadeirinha de estofo macio num escritório nos fundos da loja, que para não cair na armadilha de gostar dele, lhe mandou de uma vez na cara: vim aqui me despedir do senhor. Ao que o homem, com o olhar inadmoestável dos pacientes, lhe perguntou: o senhor vai para longe? Muito longe, Gahleb respondeu, lançando seu sorriso característico de imoralmente superior, completando ainda: e não pretendo voltar. Assim que voltou para o hotel, passado uma hora, uma das funcionárias da loja lhe bate à porta e lhe entrega um livro, a mando do lojista.
Era uma obra improvável escrita a quatro mãos, me contou, cujo espírito que a ditara impusera o nome de "Memórias de um Suicida". Uma obra espírita, doutor, que em qualquer outra ocasião me pareceria tola e farsesca, mas que naquela noite em que atravessei com um terror hipnótico suas quatrocentas páginas, ficou claro que era o raio-x do universo. Foi a única descoberta da minha vida: é impossivel morrer!Qualquer coisa que se faça para fugir dessa terra é cabalmente inútil. Engano pensar que um tiro na cabeça resolve tudo. O espírito não morre nunca.
Com essa convicção da desgraça de sua imortalidade, passara a viver perigosamente, como o voyer fantasista que tem apenas a imagem da amada inexistente para adorar. Quando, após três meses de internação monitorada numa clínica de desintoxicação para alcóolatras, toda a sua família lhe esperava na rodoviária, com os votos de recuperação estampados no rosto, o encontraram nos fundos do ônibus desmaiado, abraçado a duas garrafas vazias da vodka mais barata. Fuma religiosamente duas carteiras de cigarro por dia, e num de seus lances pessoais com a providência, eu mesmo me juntara a uma turma de vizinhos para arrombar a porta do boteco em que investira suas últimas economias, para retirá-lo de três dias de coma alcoólatra. Foi quando o vi pela primeira vez, entregue no leito do hospital, convertido no grandalhão imponente com uma cabeça de caracóis brancos ovelinos que sempre me fazia imaginar o quanto ficaria condizente à sua imagem de monarca destituído decepada sobre uma bandeija. A primeira coisa que falei àquele louco em franco processo de mitificação popular decidiu o tom sarcático de nossa amizade: a próxima vez que pretender realmente se matar, ao menos coloque uma porta mais resistente. Mas ao sair do hospital, um conhecido me revelou o rumo da questão: não se engane com ele, pois é o homem mais inteligente da cidade.
Realmente, não só o mais inteligente da cidade, como o mais inteligente que eu já conheci. Sabe cifras impressionantes de cada região do mundo, e conhece a história com detalhes assombrosos que faz duvidar que tenha apenas o que no Líbano de sua infância, antes do exílio para o Brasil, corresponde à quarta série. É um espetáculo inigualável vê-lo reduzir a cinzas os crentes de plantão ou os padres eruditos. Uma de suas maiores vitórias, segundo conta, foi ter, no espaço de duas horas em que se sentara num viagem de ônibus ao lado de um seminarista, feito o futuro apóstolo desistir da batina ao fazê-lo pensar com seriedade se seria possível Sansão matar sozinho um exército inimigo com uma simples queixada de jumento. Ser alvo de sua lingua passara a ter um carater elogioso equivalente a ser retratado com dois narizes num quadro de Picasso.
É a verdadeira contradição, o oxímoro ambulante: o suicida que faz uma fé semanal na lotérica, o alcoolatra abstêmico que vive na moralidade de sua chácara de guariroba afastada da cidade, o religioso que acredita num deus indiferente e imisericordioso, o devasso que propaga o fim do homem pela expiação dos pecados. Se eu ganhasse o prêmio de dois milhões na loteria, ele diz, Deus poderia parar de tentar me ajudar, eu seria uma dor de cabeça a menos para ele. E mais, doutor, me diz ele de propósito, sabendo quanto me desgosta esse epíteto torto, Deus poderia até trabalhar contra.
Para não deixar por menos o doutor, eu lhe pergunto como vai a charmuta daquela sua zelosa mãe turca que atravessara todo o oceano em um cargueiro fedorento para vir disseminar o benefício da melhora genética de nossa espécie nativa.
Do alto de nossa amizade de dez anos, esse outro chazerai convicto não deixa por menos:
_ Vai tudo como vão as demais coisas desse mundo, filhinho, na santa paz do capeta!
Te imaginei indo morar num lugar tão longe que era meio Macondo. Vi bolas de folhas rolando sobre a areia e fantasmas vivendo à vontade. Como esse cachorro preto, parente do que eu vi quando passei perto de um terreno que serviu de desova pra um corpo, e ninguém sabia ainda. Quanto ao teu amigo, seria completamente impossível pra mim. Minha simpatia por figuras auto-destrutivas é literária; na vida real, sempre fomos incompatíveis. Minha atitude natureba e correta os afasta. Sem falar que por ser mulher...
ResponderExcluirEu também não gosto de derrotados, se eu posso dizer assim. Trata-se de um cara que eu amo bastante, já escrevi sobre ele aqui, e, depois que saí dessa fase e me tornei "normal", o vejo apenas esporadicamente ao ano. Aliás, me fez lembrar que preciso ir lá, pela próxima semana, para revê-lo.
ExcluirLendo o teu outro texto onde você falava da falta de perspectiva que você e teus amigos tinham quando eram jovens, pensei em como eu era cheia de perspectivas nessa fase. Tudo naquela época me parecia muito claro. Essas coisas me dão a impressão de que estou fazendo o caminho contrário...
ResponderExcluirEstou convicto que eu deva ser um tanto mais velho que você, pequena gafanhota! Minha juventude se deu em bares com nomes sem significados mas profundamente musicais, como Urueu-AuAu, onde íamos ver bandas locais falar sobre o fim da infância. Épocas de sombras. Mas a maior parte de meus amigos se tornaram iguais a mim: bem sucedidos na vida, com carro do ano na garagem da casa de dois andares e um sorriso de felicidade quase insuportável no rosto.
ExcluirEste não é aquele personagem de outra crônica que comparei a Bolaño, pela excentricidade existencial e um meio social inóspito?
ResponderExcluirEle mesmo.
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