segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O Desabafo do Diabo (algo sobre Dostoiévski)

Este é um texto meu, um tanto ingênuo e escrito com exagero passional, mas do qual gosto. Trouxe-me alguma felicidade em seu rápido momento de escrita. E, afinal, se não for o próprio pai para ver com olhos amorosos o que os outros veem apenas como manha permissiva, o que seria da saúde espiritual dos filhos?



Como Borges disse, o conhecimento de Dostoievski é tão inesquecível quanto o primeiro beijo e a visão do mar. Os grandes escritores se tornam mais próximos quando temos o privilégio de os encontrarmos ainda bem cedo, no começo da adolescência, seja porque assim os amamos com a falta de reservas e a capacidade abnegada do amor que tem o inocente e despreparado aprendiz, seja porque eles acabam por nos oferecer uma paternidade diante a crueza, e uma comunhão na verdade de que o motivo real do mundo se compõe dos fatores que a paternidade que temos em casa tem por obrigação nos salvaguardar: a injustiça, a violência, as aflições, o medo, a dor, o desprezo, o abandono, a apequenização, a anulação, a morte, o descompromisso omissivo, a indiferença. Como os exercícios de piano que uma criança prodígio desenvolve até se tornar um ás da música, o grande escritor transforma o leitor numa réplica bastante proficiente de suas angústias; contamina aquele que ainda não o entende, por falta da idade adequada, com sua ótica exclusiva, inconformista, que mais parece prejudicar do que beneficiar, até que a pessoa se torna expert na desilusão e desafeto com a vida. O grande escritor deixa aquele anel escuro e fundo no leitor, que eu vejo todo dia circundando meus olhos, e confere uma nova forma de andar, mais desguarnecida e auto-vigiada, como se a nos dizer ao pé do ouvido: “não te aprumes tanto, afinal tu és igual aos outros, falível diante a oportunidade certa”. Nada que favoreça a espécie, portanto. Por isso que a literatura apareceu bem tarde na história humana, depois que conseguimos colocar a família, a agropecuária e a moradia fixa nas bases da existência_ e estas, à custa de muito sangue, como não deveria deixar de ser. Um precursor neandertal de Dostoievski, mesmo circunstancialmente entendível, teria sido uma ameaça a nossa espécie. No começo de nossas rodas em torno da fogueira, poderíamos pressentir, sem entender, com uma funda angústia, o grito da queda cortando o céu, mas ainda não poderíamos ouvir o desabafo do Diabo. A alta literatura não dá muita bola para Darwin e a lei do mais forte; a depender dela, o mais elogiável para nós é a extinção, e seu único constituinte benéfico é que a ministra aos poucos, terapeuticamente: a extinção de nossos orgulhos, de nossa pretensão de certeza, de nossos diplomas, da nossa centralidade no mundo, de nosso deus. (Deleitando-se sempre de nossa incapacidade em aprender com essa fugaz chance oferecida de recuperação.) Sua técnica é contrária a de algumas primitivas tribos africanas que deportavam para o asilo os velhos e os aleijados, para que as tribos inimigas não lhes atribuíssem fraqueza: apetece-lhe os velhos e os aleijões, principalmente os que levam as distorções na alma.

Aprendi com outro escritor_ o imenso Montaigne_ a escrever falando de mim, me colocando no meio do texto onde melhor pareça adequado. Por isso: conheci Dostoievski aos quinze anos, namorando as lombadas douradas do volume duplo de Crime e Castigo, que via na estante do quarto de um amigo de escola. O Q.I. deste amigo_ que ele gostava sempre de deixar mal escondido sob uma soberba mal disfarçada_ era altíssimo, provado na obtenção do premio máximo no programa Flávio Cavalcanti. Era ruivo, com uma voz que não passava da garganta e só saía como um sopro rouco; e sua inteligência lhe servia desde já a procurar a sobrevivência no academicismo ou na política, porque qualquer outra opção seria desastrosa. Eu tinha ganhado um prêmio de redação, num concurso do qual não sabia que participava_ uma comissão de corregedores interrompera a aula de biologia e, diante toda a turma, tentou de todos os artifícios para que eu confessasse que havia copiado o texto. Diante minha cara estupefata de quem não sabia se ficava elogiado ou se os mandava para a puta que os pariu, conformaram-se, e como o bobo da vez, voltei para as carteiras do fundo com uma medalha barata no pescoço. Daí esse amigo, que sempre me avaliava como um estúpido inofensivo, um dos protegidos por certo tempo pela misericórdia divina, se aproximou de mim, e me tuteou. Pedi-lhe emprestado os dois inacessíveis volumes de Crime e Castigo, e cabulei uma semana inteira de aula lendo-os numa biblioteca. Foi uma das semanas mais felizes da minha vida. Como um trabalhador que batia o ponto de manhazinha, me fechava na carteira mais reservada da biblioteca do campus universitário, e ia para a Rússia, sentia o frio, dividia a cama com aqueles miseráveis e ofendidos em seus quartos escuros e atulhados (ninguém descreve com tanto peso quartos escuros e atulhados, como Dostoievski), estive naquele apartamento nefasto e segurei a mão que golpeou a velha locatária, senti a umidade e o degredo da cela siberiana; apertei nas mãos, como se fosse uma tábua de náufrago, a bíblia me oferecida pela mulher por entre o arame farpado; saí para a liberdade tardia com aquela mesma nostalgia de que deixava algo de inexplicavelmente acolhedor para trás, junto àqueles seres de ninguém, àqueles homens que eram cada um menos que um, e fui tomado por uma felicidade conformada, terna e sobre-humana, na companhia da última mulher que me aceitava, ela também deformada e envelhecida por suas próprias dores intensas para me ver sem a máscara que o desespero havia me confeccionado.

Ao contrário do homem de Rousseau, o homem de Dostoievski morria bom, por ter desgastado todo o rancor e a maldade, mesmo sem tempo para se aperceber disto.

Eu já não queria me parecer com o Morten Harket. Olhava aquela foto do Dostoievski, que acabava de se recobrar de um ataque epiléptico, sentado de mãos cruzadas nos joelhos, e queria ficar eu também com aquele aristocrático ar de degradação, aquele ar de que o corpo já não lhe resistia à força do espírito, como se o espírito fosse mortalmente radioativo e a carne fosse se cancerizando por dentro diante tanta energia.

Passei a não usar o dinheiro para o lanche na escola, investindo nas edições de bolso da ediouro do mestre. Li em seguida “Notas do Subsolo”, e aquilo me deixou estarrecido. Aquele narrador tinha uma negrura apenas aparente: uma leitura atenta veria que era um buraco negro indevassável muito mais intenso, que, ou se auto-engolia até que ressurgisse no ralo criado de uma avessa existência, ou desaparecia soltando um imenso grito de não aceitação no vácuo. Um inaudível, de tão absolutamente estridente, berro contra o nada. Aquele narrador é tudo, menos niilista. Aquele narrador não se prestaria a se decretar ateu, mesmo que o fosse, por ter a lucidez do despropósito de um órfão ufanar-se de sua orfandade. Aquele narrador preferiria o suicídio, para aferir o limite de sua falta de sentido, sendo esta a sua única criação possível (a autodestruição), para zombar daquele deus inexistente, partindo para o nada mais cedo, como quem repudia a falta de delicadeza de não haver uma opção melhor. Sem esse narrador, Camus teria sido abortado no útero de sua mãe, e Kafka jamais teria o sangue resfriado até a linfa de um inseto.

Marshall Berman (em “Tudo que é sólido desmancha no ar”) explica a famosa cena de “Notas do Subsolo”, em que o narrador se impõe o confronto com um militar que mal se dá por sua presença, sendo ao narrador uma vitória apenas o sofrível não abaixar a cabeça ao passar ao lado deste homem imponente, seguro de si, cheio de infalibilidade e respeito_ Berman explica como o confronto silencioso e tenso entre o homem oitocentista (o militar) e o moderno (o narrador), contrapondo a certeza de valores que estufava de segurança o primeiro, com a perturbação, incertezas, e experiência com o horror da história, que atiraria o segundo no fundo buraco da desesperança.

Eu vejo essa batalha_ que só é uma batalha para o narrador, pois o militar está satisfeito demais consigo para sequer notar seu confrontador_, como uma batalha espiritual. O narrador é o homem_ ou antes, a entidade_, cuja miséria da existência o destituiu de qualquer galardão. Suas roupas estão em frangalhos, seus sapatos furados, deixando seus pés em contato com a lama do caminho. Se houve atrativos em sua figura, sua amargura transformou a juventude em rugas secas pelo rosto, em dentes devastados. Ninguém imaginaria que possui um intelecto potente, um conhecimento primoroso. É perigosamente demoníaco; sua atitude em não abaixar a cabeça é, porém, intimamente religiosa; refaz numa rua movimentada de Moscou a insuspeita encarnação do Louco de Deus; traz para o meio da multidão composta de famílias felizes, a sua invisibilidade de hastear a meio mastro a bandeira do Absurdo. Em algum momento infinitamente distante, a parte de seu espírito que anteriormente acreditava e ouvia _ a criança!_ aceitou com júbilo o preceito de deixar tudo para trás e seguir a Verdade. Só que_ como naqueles cortes cinematográficos súbitos_ já não acredita, já nem se lembra do menor fiapo de algodão do sonho. As palavras deixaram de ser sagradas, perderam a inicial maiúscula distintiva. As palavras, como sua voz, como seu olhar, estão em caixa baixa.

O narrador pretende manter a cabeça alta diante o conformismo cego e feliz, a explicação fácil e doce, ao determinismo, a diferença elitista entre o bem posicionado e o ninguém. Quando mantém a cabeça altiva diante essas certezas e boa digestão, que tanto reduziriam o homem no século que despontava, ele se faz merecedor de um deus, o único entre todos os condenados daquele domingo festivo que no efêmero instante antes do provável desaparecimento, alcançou a plenitude que o distinguia, tornou-se sobrenatural… mais: o único homem. O raivoso, soberbo, livre, indomável homem, que poderia comportar o primeiro instante da criação.

                                      

2 comentários:

  1. Fico muito feliz ao encontrar esse espaço que te concedeste, q tanto reclamávamos no blog do milton [arbo, oi]. voltarei para ler os iniciais e todos q antecedem este aqui.

    Li esse russo depois dos 20 e cinco, uma pena. mas é claro q me impressiona agora. devasta. e é boa a menção a camus: aquela consciência extrema, exaustiva e exaustante do homem do subsolo, já a tinha subentendido em personagens do argelino. é essa a consciência q me assombra, não importando aqui as proporções.
    é possível q te tome como tutor. nunca houve responsabilidade alguma envolvida nisso... e saio, pois nem sei mais o q digo.

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  2. Rômulo,que prazer, cara! Seja bem vindo.Tutor,isso não. Você que tem muito interesse pela literatura,como sempre demonstrou no blog do Milton,pode contribuir com o diálogo.

    Grande abraço!

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