quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Imunes ao calor do dia



Uma das coisas que me fascina em minha esposa é sua incrível capacidade de resiliência. Resiliência passou a ser a minha palavra mais linda do idioma português, após conhecê-la no livro Colapso, do Jared Diamond. Significa o talento natural e paciência mística e fé incrustada para a regeneração, dar a volta por cima. Mas não só isso, pois para tais significados já existem palavras funcionais de menor impacto. Resiliência remete sub-liminarmente a uma constituição espiritual inviolável, a um acordo antiquíssimo, a um severo nível de concentração que para tal a consciência e a racionalidade em nada contribuem. Essa resiliência a Dani herdou da família, pois a família dela vive saindo de situações de desgraças imensuráveis das quais eu sempre penso: agora quero ver como eles vão fazer, não tem volta. E sempre tem volta. Não dá para avaliar qual foi o último exemplo, mas o mais bonito foi o da irmã da Dani ter dado à luz a uma menina perfeita semana passada, batizada de Ester. Essa irmã sofre de epilepsia, teve ataques violentos durante a gravidez e seguia tomando remédios cujas dosagens eram milimetricamente calculadas para que não acontecesse como em sua primeira gravidez, em que levou o bebê por oito meses no útero e esse foi retirado morto. Em minha mente resiliência se correlaciona, sem que eu saiba explicar, a algo de japonês e judaico.

Um dos textos mais lidos desse blog trata da morte de meu sogro. Ele estava com câncer metastático fazia seis a sete anos, trabalhando e levando a vida normalmente, quando foi brutalmente atropelado. Tem setores da família da Dani que cultuam uma estética pelo grotesco. Antes isso me irritava, eu saía da sala quando tios e sogra e cunhadas começavam a falar sobre morte, assassinatos e doenças. A segunda fase para a minha aceitação dessa inconveniência foi o humor; eu chamo a mãe da Dani de repórter policial, e digo à Dani que para se saber o que vai ser publicado nos tabloides sanguinários é só perguntar em primeira mão para sua mãe. Depois passei a ver isso como um sintoma de uma inocência inofensiva. Depois, quando vi que podia me surpreender ainda mais, passei a cogitar se tal morbidez não se ligava diretamente à resiliência. Como se esse voodoísmo por narrativas de morte fizesse parte da ancestral dança secreta que a família fazia em seu recolhimento efusivo em superar a morte, em tirar um sarro dela. Vi o vídeo da morte do seu Gercino, meu sogro, que o esposo da irmã da Dani postara do Facebook, e fiquei progressivamente indignado ao ver que teve a aceitação da família. Eles retiraram o vídeo após a Dani ter-lhes dito sobre minha indignação. Quando minha sogra nos visitou alguns dias após, na mesa de almoço anunciou com seu ritmo de imprensa marrom que o atropelamento tinha sido tão violento que o laudo médico dizia que seu marido fora castrado. E falava isso com perfeito distanciamento, sem que fosse um desrespeito, sem que mostrasse qualquer abalo em seu luto. Sentado à mesa, com o garfo parado no ar, cogitei se não havia um caráter mexicano a ser afixado à minha compreensão de resiliência.

E aí a coisa extrapolou para um nível absurdo. Um dia, o pedreiro contratado para soldar as brechas no telhado do sótão da casa da minha sogra, para que as pombas parassem de fazer dali sua latrina, desceu as escadas e perguntou, lívido e de olhos arregalados: "Dona Maria, o seu Gercino costumava ficar muito no sótão?", e diante a resposta afirmativa, concluiu: "É que acabo de vê-lo sentado lá em cima". Mesmo com a veemência risonha da dona Maria de que era uma coisa comum todos da casa verem o espírito do morto, o pedreiro se negou a continuar os reparos. A Dani me falou que seu Gercino continuava a morar naquela casa gigantesca que ele levou dez anos para construir e morreu antes de ter dado o passo final instalando o portão. Um dia após a morte, o espelho do quarto da dona Maria, de madrugada, explode. No inventário, a dona Maria sonha com o morto lhe dizendo onde estava o documento perdido para concluir as formalidades cartoriais, e ela acha a papelada caída atrás do armário, conforme apontado. Assim vai, são vários exemplos. (O cunhado da Dani, sócio do seu Gercino em uma pequena empresa, entra em seu carro para ir para o trabalho de manhã, e retorna aos gritos para casa ao ver o morto sentado diligentemente no banco do passageiro.) Para ver o morto, basta subir até o sótão. De madrugada, todos escutam seus passos e o arrastar de coisas lá em cima.

Fui á fazenda onde mora meu velho amigo Galeb, consultá-lo sobre o caso. Ele é um espírita convicto. Fazia bem uns oito meses que não o via. Aos sessenta e três anos, seus joelhos lhe martirizam pelo reumatismo. Junto a ele, na mesma casa, mora agora o dono da propriedade, Breno, um amigo de infância. Sentamos os três no alpendre, tomando café turco, ouvindo os sons da natureza. Breno vem de uma família espírita, Ele narra que seus graves problemas de convivência com um dos filhos vem do fato de que na encarnação passada eles foram inimigos fatais. Diz que tem sérios problemas de saúde, que muito provavelmente não dura mais que três anos. Tem uma cirurgia cardíaca de alto risco agendada para fevereiro, mas não tem medo algum. Tem que pagar pelos tantos crimes de egoísmo e ganância que vem cometendo nesta vida. Eu me surpreendo que seja o mesmo Breno que fala essas coisas, o mesmo cara que eu evitava porque seus assuntos eram sempre os mesmos, dinheiro, dinheiro, dinheiro. Separado da terceira esposa, só tem para cuidar de si o Galeb, e o aponta e diz com a mesma língua ferina que um usa com o outro: "um bêbado abandonado há anos pela família e que talvez vá embora antes, e eu vou ter que enterrá-lo". O Galeb conta como foi o seu natal, que pegou o ônibus para a casa do filho mas tinha bebido remédios fortes para as dores nas articulações e acabou dormindo e perdendo o ponto. Voltou os vinte quilômetros ultrapassados de carona, e assim que chegou na casa do filho, com tantas pessoas e o tumulto da celebração compulsória do natal, voltou para a fazenda mal o dia clareou. Na casa do filho, amuou em um canto e dormiu, enquanto todos ceavam. Os dois passam a impressão de que falam a partir de uma outra realidade, de uma outra aquisição de tempo. Minha imaginação condicionada por essas história todas me faz pensar se não fui eu mesmo parar em uma espécie de limbo, em uma zona intermediária. Lembro de uma cena em Absalão, Absalão! em que o coronel e seu capataz, que o assassinou, estão ambos sentados em uma continuidade da existência além da morte, imunes ao calor do dia e de todas as aflições terrestres. O capataz diz ao coronel: eles mataram a gente, mas não pegaram a gente, né coroné? Assim minha imaginação sugere que os dois estão ali à minha frente, falando sobre suas mortes, sobre suas incapacidades extremas de suportarem mais viver nesse mundo. Que o nível moral da humanidade nunca esteve tão deplorável, que o mundo dos próximos 50 anos será textualmente um inferno. Uma parte coerente minha aponta que eles falam de barriga cheia, pois moram em um paraíso, cercados com quinhentos pés de mangas de quinhentas qualidades diferentes. Eu conto sobre as aparições do seu Gercino. Eles riem com descansada ternura, como seu eu falasse de uma criança. Isso é a coisa mais comum que existe, me dizem, e seguem naquele papo todo de que existem mais almas errantes do que seres encarnados. Dizem para eu pedir aos familiares que rezem pelo meu sogro, para que ele se aperceba e aceite de que não faz mais parte desse plano, de que aceite que espíritos guias venham lhe buscar, pois estes só podem intervir se solicitados. Eu me despeço deles, e o Galeb me leva até o quarto para me entregar o livro que na última visita eu lhe emprestara. Nessa hora, vendo a cama desfeita e a bagunça acentuada de uma casa com dois homens solteiros, me lembro imediatamente da conversa fiada que corre na cidade sobre os dois. O Galeb me pergunta o por que do riso, eu eu digo que andam dizendo que ele e o Breno assumiram um namoro homossexual. Diante tanto esoterismo, voltar à maledicência corriqueira parece um alívio, e eu analiso com maldade o lençol desfeito e as botas atiradas pelo chão. Imagino aqueles dois senhores atracados naquela cama à noite, sem atrite e sem problemas coronários que os impeçam de se proteger contra o frio desolador da idade e da atmosfera. Galeb diz alguma coisa que não contra-ataca nem nada, de seu jeito que pouco se fode para a opinião alheia. Fica algo insinuante de que talvez uma forma muito verdadeira de intimidade existe mesmo entre eles. Tem um certo grau de interação estoica entre dois homens, que o cu importa bem pouco, ele me diz.

Quando volto para casa, a Dani me diz que a Ester, a filha de sua irmã, havia nascido. Foram duas semanas os médicos dando remédios para que a gestante não desse à luz antes do tempo, para que o bebê não tivesse que ficar na UTI. E agora, a foto da menininha pelo Facebook, toda rosada e gordinha. Não me contenho e digo:

_ Caramba, como seu pai deve estar feliz!

5 comentários:

  1. Muito bom!
    Mas eu não acredito que o seu Galeb diz as coisas que você escreve aqui. O que é mais uma prova de que você é um puta escritor.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Para assegurar o elogio, já nem sei mais se Galeb disse mesmo tal coisa. :-)

      Mas o cara é uma figura, e é especialista em criar aforismos.

      Excluir
  2. "Sentado à mesa, com o garfo parado no ar, cogitei se não havia um caráter mexicano a ser afixado à minha compreensão de resiliência."
    que frase é essa? mas bá!

    ResponderExcluir
  3. cara, não possivel. vc deve estar escrevendo um romance sobre a imponderavel vidinha besta nossa de cada dia. só pode...

    ResponderExcluir