quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Anamnese _ meio



Como é a lógica desses relacionamentos pautados pela descoberta sexual e a insegurança da adolescência, o namoro dos dois acabou na branda forma trágica da vaidade ferida. A vaidade dele, que depois de 4 anos da acomodação em tê-la de prontidão para aceitar todas as suas grandiloquências de macho jovem à procura de sustentação heroica no mundo, ela teve aquele amadurecimento puramente feminil em sua tecnicidade de passar a enxergar esse mundo sem mais os amparos de algo que não fosse o mais lúcido pragmatismo. Algo que fora fomentado lentamente às custas dos desmandos sofridos na relação por esses 4 anos inglórios de aprendizado sobre a natureza frágil revertida para o desespero raivoso do adolescente masculino, e que só conservava a aparência de que houvesse brotado nela do dia para a noite. A lembrança nele, já passado agora dos 40 anos, ainda era latente, da tarde em que ela o escorraçou de sua casa e que ele viu nela a primeira versão daquilo que veria em uma série de mulheres que ele teria pela frente, a terrível perda do eufemismo quanto ao valor dele, a inexorável visão radioscópica de toda sua miséria tiranizadora. Soube no instante em que a coisa apareceu no rosto dela que ele estava extirpado em estado definitivo de sua vida. Ela não só não mais nutria o mínimo amor por ele, como tinha uma perene certeza de que o que houve entre eles estava longe de ser amor, mesmo o amor passível do aprimoramento social que ela acalentava em seus propósitos agora mais deterministas; aliás, ele viu nela a verdade de que se ele morresse assim que dobrasse a esquina, para ela pouco importaria. Saiu da casa com uma roupagem espiritual de um mendigo que perde sua deixa para passar a noite no último albergue da cidade, e dobrando a esquina não chegou a morrer para provar a consonância daquela lógica terrível sobre o coração das mulheres, algo que encolhido em seus ombros pouco protetores jamais achava merecedor de descobrir naquela altura da sua juventude, mas o que lhe aconteceu equivaleu em humilhação à morte, pois torceu o pé em um desnível da calçada. A torção foi tão forte que o pé inchou de imediato, e foi mancando sentindo dores lancinantes até sua casa, Sua mãe teve que chamar um tio para levá-lo ao hospital, pois seu tornozelo parecia uma batata-doce ultra-turbinada com os mais descarados agrotóxicos geneticamente modificadores. Ele passou o primeiro dos três meses de descontaminação da rotina de ter ela à seu bel prazer ao alcance de um telefonema, com o pé engessado e de cama, pois apesar da indiferença total de sua mãe quanto à sua previsão de morte ele tinha a certeza de que vivia seus últimos dias. Algo iria acontecer, algo indefinível a não ser pela áurea factível de que seria catalizado pela imagem de frieza dela que não lhe daria a importância de entrar pela porta de seu quarto e executar o homicídio, mas cambiaria o mal por zonas aéreas mais sutis. Ele descobriu ao final daqueles três meses, em que a lembrança dela desapareceu até um nível inofensivo de enquadro estatístico pessoal, que a maldição do homem é levar um tempo infinitamente superior ao da mulher para descobrir sobre a efemeridade dessa ridicularia inventada como amor, que elas descobrem isso no ponto ideal em que a cumplicidade no relacionamento extrapola o limite do inercialmente aceitável, e descobrem isso com a certeza concisa de uma visão mais fundamentada no mercado financeiro de um casamento futuro do que do baixo revanche contra o tempo perdido com aquele cônjuge obsoleto e incompleto, onde enxergam o conforto doméstico e a real proteção de um homem maduro para exercerem seus destinos de mães plenas. Por isso ela o esqueceu limpidamente naquela tarde, sem tempo para ódios e rancores. Enquanto os homens trafegam pela lâmina imaginária da eterna adaga romântica dos livros de aventura que moldaram seu espírito pueril eternamente preso a ilusões, e sofrem por três meses as agruras do pior inferno da abstinência, quando não se matam ou cometem as maiores barbaridades. Três meses, ele computava com surpresa; só esperar três meses e temos uma reativação da harmonia judiciária social, e foi-se sua vontade de invadir a casa dela e fazê-la de refém, e em consequência ter coragem de se matar diante o certo olhar dela da estatura de sua descomunal inconveniência.

Dois anos do rompimento se passaram e ela voltou a procurá-lo. Na mesma cama de casal da mãe dele, em um final de semana em que ele assegurou que estaria sozinho em casa, ela se despiu, sem aceitar um beijo e numa nova impressionante demonstração de funcionalismo sem palavras irrelevantes. e montou nele como o diplomamento definitivo de que era a sua forma agora piedosa de cumprir o assassinato que ele esperara com fervor naqueles três meses. Piedosa porque tendo se passado tanto tempo, isso não iria prejudicar mais ninguém, nem seu noivo que ele descobriria anos depois que ela tinha na ocasião e que por suas contas regressivas soube que se casaria alguns meses depois, pois se tratava de um expurgo de algum resquício trivial mas que precisava daquele sacrifício para não ganhar tamanhos inesperados no futuro. Quando terminou, ele perguntou se fariam mais dali para frente, perguntou por coqueteria pois sabia que não precisariam mais daquilo, e ela respondeu que só tornariam a fazer quando ela quisesse. E agora, ele intuiu essa mensagem, quase vinte anos depois, lendo o blog dela, de que aquela seria a hora de fazerem aquilo de novo, bastava que ele lhe mandasse um e-mail. Ele tinha certeza de que ela lhe mandara uma mensagem no mesmo grau aéreo de ninfa racionalizada desprovida de vaguidão sobre eles que ela passou a ser quando o extinguira, agora pelo ambiente cibernético que eles jamais imaginariam que existiria e poderia algum dia facilitar aquela sutileza de uma nova experiência sobre o desejo. Ele ficou dias imaginando o reencontro. Na ordem impecável dela, claro que ela não iria querer que ele fosse à Brasília. Seria na capital, no antigo hotel decadente do centro em que frequentavam no acirrado atendimento à libido exagerada daqueles anos que não respeitava nem o calor massacrante das segundas-feiras, um hotel que vai ver ainda era comandado pela mulher lésbica que toda vez fazia um elogio mais que cerimonial da beleza dela. Cada um em seu carro, ou talvez ela quisesse repetir as circunstâncias de ser ela a sempre buscá-lo no carro do pai, em algum lugar. Subiriam pelo elevador hollywoodiano de portas sanfonadas, que sempre o fazia lembrar de que era um ambiente ideal para um assassinato noir, e iriam para o mesmo quarto que a lésbica lhes reservava, o que o fazia imaginar que ali houvesse alguma câmera escondida e a gorda mulher gravasse as cenas da nudez dela e dos intensos entremeios corporais dos dois para assistir reservadamente mais tarde. Esse era apenas o mobiliário da cena, o que menos importava. O que ele mais tentava ver era como estariam um para o outro, a que exponencial chegaria o espanto de se verem no interstício súbito de ter se passado duas décadas sem que algum dos dois tivesse se visto nem erraticamente. Pelas fotos ela estava ainda bonita, mas ele não desconsiderava o uso ostensivo de óculos escuros e acúmulos estudados de adornos dela ao aparecer nessas fotos como um amaneiramento da realidade sob uma luz não previamente controlada. Em uma das fotos ele detectou um cansaço da pele, um detalhe praticamente escondido que talvez tivesse sido percebido por ela, mas que ela tenha aceito como uma introdução digna para que os olhares mais atentos já antecipassem sobre o que a técnica não podia acobertar sem artificialismo. E como ela o veria? Não sentia a mínima preocupação sobre isso_ mesmo se tudo fosse além do simplesmente teórico, coisa que enfim jamais aconteceria_, mas sabia que se alguma coisa pudesse ofender a sua já estoica vaidade, seria se ele recaísse, por instinto ou pelas armadilhas da falta de apreço real pelas situações que era algo costumeiro nele, naquela fragilidade em busca de refúgio de seus vinte anos. Se a mulher-concha, o símbolo valquiriano que ele inadvertidamente esperava que surgisse para cantar a sua predisponência à glória naquela época, retornasse como sabia que retornam em drogados curados já há muitos anos os sintomas de suas mais vigorosas viagens lisérgicas. E ele percebesse através disso que ainda não conhecia nada sobre si mesmo; que imenso desamparo seria naquele quarto de hotel vagabundo, após o coito_ que não teria, talvez, essa sinonímia tão cartorial com fins de corrigir qualquer ato indesejável de fuga para denominações que quisesse fazer uma ponte de conexão para aqueles paroxismos perigosos do sexo que eles tinham na época do amor_ ele descobrir capaz de emular o vício postural de se encolher sobre as axilas dela, ou passar a falar algumas daquelas tolices que antes eram toleradas por terem um funil de tempo a ser contado onde as possibilidades mais absurdas poderiam ainda evadir-se da gravidade de fundo. Ele não saberia o que fazer depois que saísse dali e reativasse sua vida normal, caso sucumbisse nesse deslize. Um ritual que se prestaria a quê? Nada disso seria pelo sexo, pelo culto aos anos em que tiveram o sexo de forma mais visceral que ele entenderia ser possível na vida, e somente para alguns privilegiados, e que depois, ele sabia, por mais que se obtivessem a aproximação cada um por si em seus outros relacionamentos, jamais seria o mesmo. Não seria por isso. Seria pelo quê? Haveria, afinal, uma última descoberta a ser feita através do sexo? Seria esse o ponto ao qual os levariam um aprimoramento tardio de uma revelação que eles se deixavam ter pela presciência de que seria algo arrebatador acima do que eles tiveram naqueles anos de juventude? Algo não fluvial, não enzimático, não febril, mas um conhecimento apto para suas idades, perfeitamente encaixável na circunstância complexamente vetorial de tudo que aprenderam em suas vidas de zelosos pais e cidadãos dessensibilizados da antiga leviana loucura. Serviria para confirmar que estavam certos, um ato sexual para terminar com um sorriso de sabedoria e uma despedida terna dessa vez para sempre, conscientes definitivos de que haviam sim encontrado o verdadeiro amor racional nos braços de outros, que cada um comprovava que o outro havia sido um canal onde o lodaçal do imaginário da traição nada tinha a ver com a plenitude tranquila obtida.

Ele havia tido um sonho com ela, há tempos, há muito e muito tempo. Se havia algo que ele tinha certeza sobre seus relacionamentos é que não a amava, nunca a amara, e não guardava nenhum rancor ou vergonha dela. Daí o estranhismo desse sonho. Se ele fosse atender às tantas especulações levantadas por Dick, não se tratara de um sonho, mas de uma percepção de uma realidade paralela em que havia um outro Charlles e uma outra Lorena. Às vezes ele chegava a simular acreditar nisso, principalmente porque ele não conseguia definir quando havia sido acometido pelo sonho, e nem quanto tempo ele durara. Simplesmente um dia acordou com a lembrança pormenorizada em vários detalhes de que ele e ela voltaram a namorar quando ambos já tinham mais de trinta anos, quase beirando os quarenta. Depois que o pai dela morrera, depois que ele se separara de uma outra mulher, depois que ela se separara do marido, subitamente, eles voltaram a se encontrar e, num mundo alternativo outonal, em que as árvores da rua da casa dela pareciam mais fractais em seu dourado enferrujado de velhas bijuterias circadianas, e os troncos respiravam com pulmões centenários cansados, ele ia buscá-la. Era tudo muito triste e calado, mas eles ficaram juntos. Ele sucumbira ao desejo dela de ter uma vida de casada com um homem distinto, aceitando conquistar a distinção às custas de tudo, e ela aceitara em troca a necessidade dele que não fora totalmente desfeita nos três meses e pelo inchaço do tornozelo. Ele procurava se lembrar bem, situar graficamente, o momento naquela realidade paralela, em que morreu em um leito de hospital, entubado e asfixiado pela própria incapacidade de respirar um minuto a mais nesse mundo em que ele fora conquistando o direito de pertencer, tendo atendido a todas a genuflexões exigidas que isso lhe custara.






3 comentários:

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  2. Começaste empolgado, meu caro Charlles!

    Um feliz ano novo a ti e aos teus!

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    1. Opa! Um feliz ano novo para você também, meu caro Carlinus! Muita saúde e bons livros pela frente, para você e sua família.

      Forte abraço.

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