sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Anamnese _ fim



Na parte correspondente ao estudo da paranoia de Daniel Schreber em Massa e poder, Canetti mostra que Schreber sabia que estava louco para todos os parâmetros sociais, mesmo na fase sem retorno em que ele passou a viver inteiramente em seu delírio. A cosmogonia criada pela mente de Schreber é um dos mais assustadores e opressivos casos clínicos clássicos, uma espécie de marco fundador da psiquiatria, e o estudo de Canetti é tanto mais interessante do que o estudo famoso escrito por Freud, pois Canetti, como é sabido, era totalmente independente da ortodoxia da psicanálise, o que faz com que sua abordagem tenha uma certa liberdade esotérica. Schreber é um desses paranoicos que fazem com que aquele que tem contato com sua história sinta o temor de ser contagiado. A diferença entre a paranoia de Schreber com a paranoia de Philip K. Dick, além do defeito congênito de que foi uma causa possível no caso de Schreber, e o abuso das drogas lisérgicas associado a uma natural imaginação hiper-atrofiada no caso de Dick, é que o Dick escritor sabe se situar fora de sua personalidade delirante, enquanto o escritor Schreber é apenas um jornalista que narra suas muitas visões, simulando apenas uma fraca imparcialidade. Schreber conta sobre os raios que Deus envia por todo o universo e vem todos se convergirem nele, com uma minuciosidade inquietante que extravasa a sua excelente educação jurista e sua exímia erudição. Não tem como o leitor se sentir confortável em um discurso que aos poucos perde sua preocupação pela forma dialética de apresentar pontos de vista antagônicos, e se torna um labirinto onde no centro se posta a figura monádica da prepotência pelo poder de seu autor. Em determinado momento, na fase irreversível de sua loucura, Schreber se considera a "noiva de Deus", e evangeliza que o sentido de todos os bilhões de anos do universo tem como propósito o cortejamento de Deus pelo espírito do ente encarnado chamado Daniel Schreber. Esse namoro, essa dança de acasalamento trabalhosa do Ser Divino pela noiva Schreber, confeccionou uma realidade simulada, contra a qual Schreber se coloca em defesa, em que as pessoas, os prédios da cidadezinha alemã onde ele vive, e tudo que sempre o cercou em seus anos de vida, são disfarces e marionetes de Deus, artifícios sem vida e mecânicos cujo intuito é tomar Schreder nos braços de seu noivo plenipotenciário. Uma imagem que fica na mente do leitor é do Schreber absolutamente consumido, já fora do resgate do mundo, trancado em um quarto-cela de uma cara instituição psiquiátrica, agachado na cama, a única peça de um ambiente controlado para não o ferir, os olhos arregalados vendo infinitos fios de luz se conectando parasitariamente em seu corpo.

VALIS pouco tem a ver com Memórias de um doente dos nervos. Philip K. Dick tem uma prancha de salvamento que raramente se vê em outros paranoicos: um senso de humor paradoxalmente iconoclasta para alguém que julgava ser uma das poucas pessoas com quem Deus conversava. Há muitas passagens em VALIS de pura dissuasão simpática, nas cenas de conversas dos amigos malucos, que lembram os descontraídos diálogos de V, o romance de Pynchon. Aliás, a aproximação entre Dick e Pynchon é uma constante em VALIS (e no restante da bibliografia de Dick, pelo que ele vem constatando em leitura compulsiva). O que o leitor astuto percebe é que talvez, na poesia altiva e no anedotário típico dos romances de estrada americanos, VALIS tenha uma demência legítima escondida pelo amplo domínio da graça da narrativa de seu autor. Talvez Dick seja tão genial que ele consiga fazer a ponte entre o que tem que fazer, ou seja, um romance apesar de tudo bem digerível e cumprindo sua função de entretenimento, e ao mesmo tempo um testamento sério em que emite uma mensagem transcendente; o que faz com que o leitor pense qual desses perfis da obra ele tem que considerar realmente. É como se Dick estivesse dizendo: a graça externa da narrativa é para provocar riso e divertir, mas sua profundidade é para fazer o leitor refletir na cama, à noite. Pois é isso que se tem: VALIS fica muito tempo na cabeça do leitor. VALIS propõe questões que se fazem imprescindíveis, que saem do subconsciente aturdido pela rotina do conhecimento aceito e emplastado do leitor e se colocam no primeiro plano. Aqui Dick perpetra a mais ousada ambição do escritor: transformar o imaginário em algo tão convincente quanto a realidade, convencendo o suficiente para que passe a não ter importância onde um termina e a outra começa. De modos que aceitar que tudo seja imaginação de Dick, ou que tudo seja real, passa a não ter a menor relevância.

Ao contrário de Schreber, a preocupação por tomar a percepção por todos os ângulos possíveis é um dever para Dick. Tanto que ele se exonera de ser o personagem principal e cria um alter-ego chamado Horselover Fat, no começo do livro fazendo um interessante jogo de desfocamento entre Dick e Fat para avalizar sua honestidade quanto ao que ele mesmo investiga sobre as características de um e outro. Dick também é um personagem, o personagem narrador, que olha a Fat com misto de ternura, preocupação, descrença. É um belo recurso, um recurso muito humano e tocante: Dick em nenhum momento age com prepotência; sua paranoia, considerando bem por baixo esse diagnóstico limitante, em nada se aproxima das necessidades de poder de Schreber, o que em fundamento clínico já põe por terra que seja paranoia. Sua visão sobre si mesmo (tanto sobre Fat quanto sobre o personagem Dick) é revestida de humildade, ele não se julga Deus, nem mesmo dá por completo que tenha recebido algo legítimo de Deus_ no diálogo inesquecível que Fat mantêm na incrível cena final do livro, alguém lhe diz que ele pode acreditar no que escuta pois a mensagem foi enviada exclusivamente para ele, ao que Fat responde: se foi só para mim, então não é verdadeira. Dick aqui é o mais preparado para receber uma mensagem do sublime no campo da literatura desde Tolstói, e ele tem o ceticismo de Tolstói. Ambos, Tolstói e Dick, são os místicos do existencialismo, os que, por mais que são seduzidos para a propensão da Verdade revelada (principalmente no caso de Dick), professam a máxima de Pascal de que sua religião é a da dúvida sincera. Um dos generosos assombros de VALIS é que, depois de todo road movie místico, no final há uma forte inclinação de Dick para a conclusão de que talvez tudo tenha sido um estelionato tecnológico, uma pura ação humana (mais uma estratégia de um grande narrador após o leitor se sentir convencido?).

Dick é tão sagaz que ele se comunica com o cliniquês clichezístico da psiquiatria ao revigorar a palavra anamnese. Um termo sem graça e banal que equivale a um questionário de sintomas do doente, ele purifica ao trazer de volta sua etimologia, e a conceitua como "supressão do esquecimento". O que ele vê que ocorreu com Fat foi uma supressão de sua capacidade de esquecer. Ele repete as portas da percepção de Blake ("quando o homem conseguir abrir as portas da percepção, verá as coisas como realmente são: infinitas"), e o escritor de ficção científica que é funde a origem das religiões, com seus usos primitivos de psicotrópicos, com a ciência que diz que o cérebro é o mais potente catalizador não usado do universo.

Em um dos filmes de Jornada nas Estrelas, os astronautas da Entreprise chegam à borda do universo e encontram uma entidade que diz ser Deus. Aos poucos a voz de Deus vai demonstrando uma melifluidade que fica um tanto mais terrível por a tripulação da Entreprise se ver na dúvida de se a manifestação de Deus não teria mesmo aquela superior indiferença, aquela plenipotência absoluta que revela em contraste quanto o ser humano é minúsculo. O paradoxo do crente que perde a fé ao se confrontar com a prova de que tudo em que ele acredita é verdade (frase de VALIS). Em VALIS o leitor é levado ao que ele espera mas duvidava que o autor fosse capaz de oferecer com tamanha mestria: uma cena com a mesma intensidade e estupefação de Star Treck. Dick cumpre seu papel: o que é verdade afinal de contas? Quem é o louco? 

13 comentários:

  1. Charlles, e aos camaradas do blog, feliz 2015! O ano só começa com uma postagem aqui.

    Comecei ontem a ler o primeiro volume da autobiografia de Canetti, que é simplesmente sublime. Sempre estranhei que um prosista de um romance só ganhasse o Nobel, mas vejo que o prêmio foi justíssimo. O livro é muito delicioso. Me arrependi de não ter comprado a trilogia toda de uma vez. Não cheguei à página 100 e já decidi que farei com ele esse ano o que no último fiz com Marías, ou seja, comprar uma ruma de livros dele e ler obcecadamente. Seguirei o guia de leitura que há no final da edição da Cosac de Auto-de-fé.

    Ontem estive lendo os textos e comentários sobre Canetti aqui, no blog de Guina e no de Milton, e achei uma grande coincidência abrir o blog hoje e dar de cara com o nome dele. Enquanto houver Canettis pra ler, o ano vai ser bom.

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    1. E só fica ainda melhor nos dois volumes seguintes da trilogia, Paulo. Tudo que tiver assinatura do Canetti é certeza de algo fenomenal. A cia de bolso lançou Consciência das palavras, um livro de ensaios fabuloso.

      Minha programação era ler os três títulos com intervalo entre eles, mas é impossível. É uma das maravilhas da literatura.

      Feliz 2015!

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    2. Falando no Canetti, vocês tem ideia de quando vão publicar a quarta parte das memórias dele ?

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    3. Acabei de ver que já foi publicado no ano de 2009 e foi traduzido como "festa sob as bombas" e publicado pela editora estação liberdade.

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    4. Esse livro não chega a ser a quarta parte da biografia do Canetti. Eu tenho essa edição da Liberdade. É mais uma compilação de anotações e do rascunho para um possível livro sobre os anos londrinos feitos pelo autor. Como obra póstuma lançada incompleta, sofre dos defeitos dessa condição. Nas primeiras páginas há uma raivosa visão sobre T. S. Eliot, que Canetti considerava medíocre. Claro que não concordo, e nem Canetti concordaria em ter esses rascunhos publicados. Vale como uma espiada generosa nos confins secretos da gaveta do escritor.

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    5. Pelo o que o tradutor disse o texto estava muito mal escrito, inclusive ainda estando estenografado e não passado para uma linguagem corrente, e de fato ele menciona que o publicaram sem autorização do Canetti, ele fala isso nesse vídeo. https://www.youtube.com/watch?v=Czm2_LyvjA0.

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    6. Pelo que eu estou vendo aqui com o volume em mãos, o livro foi lançado em 2003, e em 2009 no Brasil. Portanto, nove anos após a morte de Canetti. Tem fotos muito boas de Canetti, Veza e o grupo de amigos. A capa e a contracapa apresentam fotos magistrais: Canetti sentado em um banco de madeira de um cemitério inglês; a capa apresenta a foto de frente, na contra-capa outra foto tirada das costas de Canetti. Vale muito, apesar de seus defeitos, como qualquer livro dele (recomendo As vozes de Marrakech, lançado aqui pela Cosac, com uma antológica parte, lembrada por Magris em Danúbio, de um jumento que, espancado pelo dono, mostra uma ereção como resistência).

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  2. Charlles,
    O que eu não entendo é ler esse seu belíssimo elogio a esse núcleo escuro do irracional do nosso universo e saber que você não foi tocado nem um pouco pelo ensaio de Foucault sobre o que ele chama de Déraison.
    Você cita Kafka, Beethoven, Dick. Schreber et al. na figura de sibilinas desse irracional. Foucault listaria aí outros ainda, De Sade, Baudelaire, Nietzsche, Artaud.
    Você chegou a ler mesmo o diário escrito por Schreber no manicômio? Lembro de ter lido em Lacan (que também devota um bocado do seu Seminário III, em quase um ano do seu curso ao caso Schreber e à sua psicose) que Schreber teria escrito o seu memoir sob o mais profundo efeito da sua psicose. Uma espécie de relato lúcido (no sentido de que a sua escrita é lucidamente compreensível) daquele universo paralelo que ele fora transportado e de onde ele recebia as mensagens cifradas de um deus acessível só a ele. Lembro que Lacan tira daí a tese de que o inconsciente é mesmo estruturado tal qual uma linguagem, e que mesmo casos severos de psicose podem ser estruturantes de cadeias de significantes.
    Enfim, fiquei agora tomado de vontade de ler o comentário de Canetti sobre o caso Schreber, e de retornar a glossa de Freud. Nunca cheguei a ler o memoir do próprio Schreber. Esse tipo de contato extremado com a déraison me bota um pouco de medo.
    Ah, e antes que me esqueça. Esse fenômeno da mão amaldiçoada que você descreve existe. Trata-se de um desses males não catalogados pelos manuais de patologia tradicionais. Como eu sei disso? Também sofro desse mal já tem alguns anos. Espero que no seu caso isso seja passageiro.

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    1. Mas esse Foucault eu gosto, Luiz. Algum dia terei que relê-lo.

      O livro do Schreber tem uma edição brasileira, mas não o li. Massa e poder tem um longo capítulo sobre Schreber, e penso mesmo que seria imprescindível que você lesse.

      Hoje assisti no History Channel um documentário sobre Nikola Tesla. Na verdade foi no programa meio sensacionalista do Alienígenas do espaço (não consigo entender como uma nave ultra-tecnológica alienígena, que atravessa meio universo, utilizando conductos como buracos negros e buracos de minhoca, enfrentando asteroides e temperaturas colossais, que se dobra toda no espaço-tempo, chega à Terra e inventa de dar um defeito e cair em uma serra de um deserto americano. Isso, por óbvio que pareça, não é nem comentado nesses programas, que substituem essa explicação pelas estatísticas de que centenas de discos voadores caem na Terra), mas mesmo assim muito interessante. Tesla entra nesse assunto todo.




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    2. Outra coisa que eu não disse no texto: a cosmogonia de Dick é profundamente cristã. Uma interessantíssima correlação que ele faz é entre o símbolo do peixe do cristianismo primitivo com o desenho da dupla hélice do dna de Watson e Crick.

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    3. Tenho um preconceito grande com Asimov e com toda a turma mais highbrow scifi americana. Daí o meu completo desinteresse por Dick. Nunca me chamou a atenção a pergunta se robôs sonham ou não e nunca tive pesadelos com o pretenso advento próximo do I.A., consciências artificiais despertando e coisinhas do gênero. Isso tudo me parece temas que fazem of James Cameron melar a calcinha dele. E já que eu e Cameron somos brigados desde Terminator, que se salva graças ao nosso novo John Wayne Austríaco-Californiano, passo qualquer que livro ou filme que cheira esse tipo de coisinhas.
      O gênero cyberpunk já me cativou um pouco no cinema. E só.
      No mais scifi highbrow é Borges e Bioy Casares. Quando scifi ainda não era scifi nem nerd. Detesto o universo nerd também.
      Mas você tenta defender aí no seu texto que o Dick é uma espécie de Artaud. E na sua resenha ele me parece bem menos nerd do que as capas dos seus romances de pulp fiction scifi fazem crer.

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    4. Só li Bradbury e alguns contos de Asimov. Não gosto de sci-fi. Li Ubik e se sci-fi sempre foi isso, acho que posso muito bem passar a gostar. Dick é um escritor bem acima desses medalhões do gênero. Há descrições ali que não ficam nada a dever a Joseph Conrad.

      Pretendo ler, bem futuramente, 2001, para ver o quanto do magnífico filme está lá. Temo que a leitura matize os mistérios instigantes do filme. VALIS e 2001 não são ficção científica.

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  3. https://www.youtube.com/watch?v=5SVXnlkJqWI#_=_

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