terça-feira, 15 de abril de 2014

Desinibidas cordialidades selvagens



Há uma umidade impregnando os móveis, um cheiro de mar, um frio de prenúncios antigos que me faz encolher um pouco mais no conforto da poltrona, uma certa tendência ao desequilíbrio do mobiliário que se envolve nas sombras de um pequeno cômodo de madeira relegado ao movimento de ressaca. E há, acima dessas sinestesias de ataques aveludados que partem da leitura iniciada de Moby Dick, a impressão maior de uma irreprimível simpatia por tudo que é humano e falível, por tudo que não é cartorial e sedimentado nas leis do andamento cotidiano, por tudo que se sente mortal e festivamente atraído pela atrevida natureza exultante e pelas mais sutis e desinibidas cordialidades selvagens. As cem páginas lidas de Moby Dick me contagiam de uma felicidade armorial pelo gênero humano; e são páginas tão delicadas, tão explosivas em ternura e humor, tão ao mesmo tempo excessivamente viris e abnegadamente femininas (como são equilibradas no mais desconcertante contraste as grandes obras primas), que meu preconceito embutido de homem do século XXI hora e outra interrompe a leitura para procurar na fortuna crítica do livro se há uma revelação surpreendente que diga que Melville afinal não seria contemporâneo das mesmas percepções da verdade acelerada de nosso tempo e um reacionário plenamente dotado de conhecimento da modernidade para incorrer-se eruditamente contra ela; e não um autor afundado e apagado pelas hordas do classicismo de quase duzentos anos de idade, sequestrado pelos obsoletos professores das academias e transformado em emblema de uma obsolescência que só serve às efemérides institucionais. O primeiro parágrafo do livro, uma dessas aberturas sinfônicas carregadas de uma dor desesperada e de uma esperança de cura que só podem cultivar os espíritos que perderam tudo_ até mesmo as formas mais correntes de saúde que permitem a esperança_, dá ao leitor a identificação lacônica de que o narrador se chama Ishmael; informa-se ao leitor isso com um misto de intimidade e de distanciamento, de alguém que se encontra tão exaurido da vida urbana, adoentado no gosto pela desvanecente apreciação de velórios, que mesmo a menção à sua existência passada no rebanho de cumpridores de horários lhe cansa, lhe tira o ânimo da palavra. "Chamam-me Ishmael", não é só a primeira frase mais bela da literatura, mas todo o desentrelinhamento da história do livro; há um mundo aqui de intuições e previsões que nem as 700 páginas dedicadas de Melville à trama seriam suficientes para exprimir.

Quem é Ishmael?, um professor, um cidadão culto vindo de uma casta abastada, um homem que traz um passado velado que tangencia uma culpa enorme, um crime atroz, uma afronta gravíssima contra si mesmo; alguém amaldiçoado pela falta de amor e de concordância social de todo tipo que fica claro, no meio de todas essas indefinições, que está além do que poderia causar o sofrimento provocado por uma mulher. Não aparecem mulheres nas primeiras cem páginas de Moby Dick, se descontarmos a esposa do estalajadeiro que ajuda ao narrador a desobstruir a porta do quarto onde está seu amigo canibal neozelandês; e provavelmente o livro segue assim. E nessas primeiras páginas há um ardiloso andamento de comédia de costumes, um terreno fértil para gargalhadas (eu mesmo fui tomado duas vezes rindo à solta, tanto que minha esposa veio ao quarto perguntando o que era_ e tive que explicar a ela sobre o carrinho de mão com a sacola de roupas que Queequeg lançou às costas), uma leveza que parece engrandecer a suspeita da terrível verdade existencial que Melville se prepara para nos dizer a seguir, da obsessão que virá nas próximas páginas, do inexpugnável demônio que saltará tanto na figura da baleia quanto do fanático marinheiro que a persegue. Ishmael, que é tão transparente quanto a seus pensamentos e sem outros esconderijos na alma, vai mostrando a progressiva cura quanto mais iminente está a sua fuga para a vida no mar, e assim o leitor é regalado pelas cenas de amizade entre Ishmael e o canibal neozelandês Queequeg, uma simpatia mútua tocante e desprovida do mínimo julgamento por parte do leitor. O homem de hoje, possuído pelo cinismo a tal ponto que tem seus sentimentos atrofiados pelos dois lados do devastador senso comum, veria tal amizade como uma aproximação apologética ao homossexualismo, um gracejo que traceja uma situação condenatória para a literatura moldada pelo conservadorismo de século 19; o leitor atual não se conteria em levantar toda uma série de castelos sociológicos em cima do direito e do dever de Melville em falar com palavras mais claras sobre homossexualismo e homossexualidade, tal qual critica acerbadamente que Guimarães Rosa não tenha feito seu romance ainda mais grandioso desistindo do disfarce dos gêneros. Daí, para mim que me sinto como uma criança diante as páginas desse livro maravilhoso, eu me vejo encarnado em Ishmael e o compreendo sem filtros, sem artimanhas. Que beleza whitmaniana (o que seria usar um sinônimo em cima daquilo que já o tem por legitimidade: melvilliana) o abraço de Ishmael e Queequeg, o dormir junto, o colocar cabeça de encontro gentilmente à cabeça do amigo, da promessa de que a vida de um fica vinculada inexoravelmente à vida do outro!; que círculo xamânico de liberdade os protege quando andam pelos portos e ruas infestadas de gente da cidade grande sob os olhares discriminadores e zombeteiros! O que Ishmael propõe é a fuga da literalidade ortodoxa do mundo em terra, das inúteis e burras batalhas, da rotina cancerígena, da brutalidade conformadamente mecânica e repetitiva que o mais inteligente ser do planeta fez como modus sagrado para reger a si mesmo; as tantas ideias comunais e procissões vulgares; as tantas afrontas para apagar o espírito; a multidão de palavras; as regras para não se ver. 





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